sábado, 31 de agosto de 2013

FAZ HOJE 83 ANOS




Enfia a agulha,
E ergue do colo
A costura enrugada.
Escuta: (volto a folha
Com desconsolo).
Não ouviste nada.

Os meus poemas - este
E outros que tenho -
São só a brincar.
Tu nunca os leste,
E nem mesmo estranho
Que ouças sem pensar.

Mas dá-me um certo agrado
Sentir que tos leio
E que ouves a valer.
Faz um certo quadro.
Dá-me um certo enleio...
E eu leio a esquecer.


FERNANDO PESSOA, 31 DE AGOSTO DE 1930


sexta-feira, 30 de agosto de 2013

FAZ HOJE 80 ANOS



Não sei se é sonho, se realidade,
Se uma mistura de sonho e vida,
Aquela terra de suavidade
Que na ilha extrema do sul se olvida.
É a que ansiamos. Ali, ali
A vida é jovem e o amor sorri.

Talvez palmares inexistentes,
Áleas longínquas sem poder ser,
Sombra ou sossego dêem aos crentes
De que essa terra se pode ter.
Felizes, nós? Ah, talvez, talvez,
Naquela terra, daquela vez.

Mas já sonhada se desvirtua
Só de pensá-la cansou pensar,
Sob os palmares, à luz da lua,
Sente-se o frio de haver luar.
Ah, nesta terra também, também
O mal não cessa, não dura o bem.

Não é com ilhas do fim do mundo,
Nem com palmares de sonho ou não,
Que cura a alma seu mal profundo,
Que o bem nos entra no coração.
É em nós que é tudo. É ali, ali,
Que a vida é jovem e o amor sorri.


FERNANDO PESSOA, 30 DE AGOSTO DE 1933


quinta-feira, 29 de agosto de 2013

FAZ HOJE 98 ANOS




Bocas roxas de vinho,
Testas brancas sob rosas,
Nus, brancos antebraços
Deixados sobre a mesa;
Tal seja, Lídia, o quadro
Em que fiquemos, mudos,
Eternamente inscritos
Na consciência dos deuses.


Antes isto que a vida
Como os homens a vivem
Cheia da negra poeira
Que erguem das estradas.


Só os deuses socorrem
Com seu exemplo aqueles
Que nada mais pretendem
Que ir no rio das coisas.

RICARDO REIS, 29 DE AGOSTO DE 1915


quarta-feira, 28 de agosto de 2013

FAZ HOJE 78 ANOS



O sono que desce sobre mim,
O sono mental que desce fisicamente sobre mim,
O sono universal que desce individualmente sobre mim -
Esse sono
Parecerá aos outros o sono de dormir,
O sono da vontade de dormir,
O sono de ser sono.

Mas é mais, mais de dentro, mais de cima:
É o sono da soma de todas as desilusões,
É o sono da síntese de todas as desesperanças,
É o sono de haver mundo comigo lá dentro
Sem que eu houvesse contribuído em nada para isso.

O sono que desce sobre mim
É contudo como todos os sonos.
O cansaço tem ao menos brandura,
O abatimento tem ao menos sossego,
A rendição é ao menos o fim do esforço,
O fim é ao menos o já não haver que esperar.

Há um som de abrir uma janela,
Viro indiferente a cabeça para a esquerda
Por sobre o ombro que a sente,
Olho pela janela entreaberta:
A rapariga do segundo andar de defronte
Debruça-se com os olhos azuis à procura de alguém.
De quem?,
Pergunta a minha indiferença.
E tudo isso é sono.

Meu Deus, tanto sono!...


ÁLVARO DE CAMPOS, 28 DE AGOSTO DE 1935

terça-feira, 27 de agosto de 2013

FAZ HOJE 82 ANOS




Minha mulher, a solidão
Consegue que eu não seja triste.
Ah, que bom é ao coração
Ter este lar que não existe!

Recolho a não ouvir ninguém,
Não sofro o insulto de um carinho,
E falo alto sem que haja alguém:
Nascem-me os versos no caminho.

Senhor, se há bem que o céu conceda
Submisso à opressão do Fado,
Dá-me eu ser só, - veste de seda -,
E falar só - leque agitado.


FERNANDO PESSOA, 27 DE AGOSTO DE 1930


segunda-feira, 26 de agosto de 2013

FAZ HOJE 83 ANOS




Às vezes entre a tormenta,
Quando já humedeceu,
Raia uma nesga no céu,
Com que a alma se alimenta.

E às vezes entre o torpor
Que não é tormenta da alma,
Raia uma espécie de calma
Que não conhece o langor.

E, quer num quer noutro caso,
Como o mal feito está feito,
Restam os versos que deito,
Vinho, no copo do acaso.

Porque verdadeiramente
Sentir é tão complicado
Que só andando enganado
É que se crê que se sente.

Sofremos? Os versos pecam.
Mentimos? Os versos falham.
E tudo é chuvas que orvalham
Folhas caídas que secam.


FERNANDO PESSOA, 26 DE AGOSTO DE 1930


domingo, 25 de agosto de 2013

FAZ HOJE 79 ANOS



Estamos sempre na encruzilhada.
Cada dia é vários caminhos
Possíveis. Cada hora é mais que uma estrada.
Nós, os sozinhos
De nada,

Nem escolhemos, nem queremos:
Vamos...
E, seja a via pelo areal que vemos
Ou na floresta pela qual andamos,
Vamos para onde não sabemos,
E não sabemos onde estamos.

E a cada hora, a cada hora,
Há que virar para a direita ou esquerda
Segundo uma lei que se ignora
Ou um impulso cujo instinto se não herda.

Sempre tantos caminhos!
E nós, sem tempo para os escolher,
Apressados, ignaros e sozinhos,
Tomamos o que tem que ser.

Se é bom, se é mau o por onde ir,
Ninguém o sabe ou saberá...
Tudo é não saber e seguir:
O resto Deus dará, ou não dará.



FERNANDO PESSOA, 25 DE AGOSTO DE 1934

sábado, 24 de agosto de 2013

FAZ HOJE 83 ANOS



Vem do fundo do campo, da hora,
E do modo triste como ouço,
Uma voz que canta, e se demora.
Escuto alto, mas não posso

Distinguir o que diz; é música só,
Feita de coração, sem dizer:
Murmúrio de quem embala, com um vago dó
De o menino ter de crescer.

Melodia triste sem pranto,
Grácil, antiga, feliz
Manhã de sentir a alma como um canto
De D. Dinis.


FERNANDO PESSOA, 24 DE AGOSTO DE 1930


sexta-feira, 23 de agosto de 2013

FAZ HOJE 79 ANOS



Não digas nada!
Não, nem a verdade!
Há tanta suavidade
Em nada se dizer
E tudo se entender -
Tudo metade
De sentir e de ser...
Não digas nada!
Deixa esquecer

Talvez que amanhã
Em outra paisagem
Digas que foi vã
Toda essa viagem
Até onde quis
Ver quem me agrada...
Mas ali fui feliz…
Não digas nada.



FERNANDO PESSOA, 23 DE AGOSTO DE 1934

quinta-feira, 22 de agosto de 2013

FAZ HOJE 79 ANOS




O sol que doura as neves afastadas
No inútil cume de altos montes quedos
Faz no vale luzir rios e estradas
E torna as verdes árvores brinquedos...

Tudo é pequeno, salvo o cume frio,
De onde quem pensa que de ali não nos vê
Vê tudo mínimo, num desvario
De quem da altura olhe quanto é.


FERNANDO PESSOA, 22 DE AGOSTO DE 1934

quarta-feira, 21 de agosto de 2013

FAZ HOJE 92 ANOS



Nos meus desejos existe
Longinquamente um país
Onde ser feliz consiste
Apenas em ser feliz.

Só palavras. Se estou triste
Um pouco o olhar consiste
Em dizê-lo assim, e, ao fundo,
De um mar verde a alma insiste
Em fingir de alma do mundo.

Sob um céu azul a espuma
De um mar verde abre na areia
E as barcas vão, uma a uma,
Quando se levanta a bruma
Brincar com a maré cheia.

Isto não é nada, nem
Sentido ou presença tem
No próprio sonho que o sonha
Mas dizendo-o sinto bem
A alma e a esperança risonha.


FERNANDO PESSOA, 21 DE AGOSTO DE 1921


terça-feira, 20 de agosto de 2013

FAZ HOJE 79 ANOS




Releio, triste e com um tédio feio,
Meus versos feitos nestes quatro dias.
Quasi irritadamente leio...
Que coisas ocas, que coisas frias!

Com que febre contudo os escrevi
Com que imediata suposição
De que escrevia o que deveras vi
Nesse momento no meu coração...

Mas que cordéis desatados
Esses versos, os bocados
De pão de uma refeição
Em que não prestava o pão!...

E é com isto que sou poeta?
Será com estas linhas a rimar
Que serei amanhã artista ou esteta?
Nunca serei senão a seta
Que os Deuses não souberam atirar...



FERNANDO PESSOA, 20 DE AGOSTO DE 1934

segunda-feira, 19 de agosto de 2013

FAZ HOJE 83 ANOS




Deve chamar-se tristeza
Isto que não sei que seja
Que me inquieta sem surpresa,
Que nem chora nem deseja.

Sim, tristeza - mas aquela
Que nasce de conhecer
Que ao longe está uma estrela
E ao perto está não a ter.

Seja o que for, é o que tenho.
Tudo mais é tudo só.
E eu deixo ir o pó que apanho
De entre as mãos cheias de pó.


FERNANDO PESSOA, 19 DE AGOSTO DE 1930


domingo, 18 de agosto de 2013

FAZ HOJE 79 ANOS




Colhe todas as rosas que encontrares!
Colhe até as que sonhas; com um laço
De erva comprida prende-as regulares,
E assim, em feixe, traze-as no regaço!

Vem até mim com essas rosas plenas
E eu saberei, entre elas, distinguir
As que são reais, porque são mais pequenas,
E, maiores, as fora de existir.

Mas é com realidade e ilusão,
Com um feixe de flores vindo e dado,
Que conseguimos dar ao coração
O prémio inútil que lhe nega o fado.


FERNANDO PESSOA, 18 DE AGOSTO DE 1934


sexta-feira, 16 de agosto de 2013

FAZ HOJE 79 ANOS




…Como nos dias de grandes acontecimentos no centro da cidade,
Nos bairros quase-excêntricos as conversas em silêncio às portas
A expectativa em grupos...
Ninguém sabe nada.
Leve rastro de brisa…
Coisa nenhuma que é real
E que, com um afago ou um sopro
Toca o que há até que seja...
Magnificência da naturalidade.
Coração.
Que Áricas inéditas em cada desejo!
Que melhores coisas que tudo lá longe!

Meu cotovelo toca no da vizinha do eléctrico
Com uma involuntariedade fruste
Curto-circuito da proximidade...
Ideias ao acaso
Como um  balde que se entornou —

Fito-o é um balde entornado...

Jaz: jazo...

ÁLVARO DE CAMPOS, 16 DE AGOSTO DE 1934


quinta-feira, 15 de agosto de 2013

FAZ HOJE 79 ANOS




A pompa inútil dos teus gestos quedos,
Como que à espera do ritual a dar,
Não traz ainda os segredos
Que ninguém tem para entregar.
Mas é como um prelúdio entre rochedos
Ao que é o som do mar.

.Deram-me rosas para que eu viesse.
Deram-me lírios para que sonhasse.
A rosa murcha e esquece,
E o lírio cai antes que amarelasse.
Mas isso tudo é a teia que nos tece
Uma aranha que nos amasse.

Ah, em vez de rosas, lírios, ou que seja
Que me dêem o céu e o mar sem fim
E o que da aragem vaga seja
Tudo o que faz dormir assim.
E o que de tudo eu sonhe ou até veja
Que seja sempre só em mim!



FERNANDO PESSOA, 15 DE AGOSTO DE 1934

quarta-feira, 14 de agosto de 2013

FAZ HOJE 81 ANOS



Ia elegante, depressa,
Sem pressa e com um sorriso,
E eu, que sinto co'a cabeça,
Fiz logo o poema preciso.

No poema não falo dela
Nem como, adulta menina,
Vira a esquina daquela
Rua que é a eterna esquina...

No poema falo do mar,
Descrevo as ondas e a mágoa.
Leio-o e fico a relembrar
E uma figura a virar
A esquina chora-me na água.




FERNANDO PESSOA, 14 DE AGOSTO DE 1932


terça-feira, 13 de agosto de 2013

FAZ HOJE 79 ANOS



Poema após poema, íntimo, escrevia
Aquela grande obra do seu ser
Que nunca em tempo algum alguém leria
E ele via o universo a ler.

Era mais que poeta: era profeta,
E em seus versos errados e divinos
Toca a rebate o que nele era poeta,
Mas numa torre que não tinha sinos.

Viveu assim, feliz do que escreveu,
Morreu, deixando a obra como sobra
Da alma que fora... Mas, meu Deus, e eu?
Eu que nem tenho a fé nem tenho a obra?


FERNANDO PESSOA, 13 DE AGOSTO DE 1934


segunda-feira, 12 de agosto de 2013

FAZ HOJE 83 ANOS



Fito-me frente a frente.
Conheço que estou louco.
Não me sinto doente.
Fito-me frente a frente.

Evoco a minha vida.
Fantasma, quem és tu?
Uma coisa esquecida.
Uma força traída.

Neste momento claro,
Abdique a alma bem!
Saber não ser é raro.
Quero ser raro e claro.

FERNANDO PESSOA, 12 DE AGOSTO DE 1930


domingo, 11 de agosto de 2013

FAZ HOJE 99 ANOS



Neste dia em que os campos são de Apoio
Verde colónia dominada a ouro,
Seja como uma dança dentro em nós
O sentirmos a vida.

Não turbulenta, mas com os seus ritmos
Que a nossa sensação como uma ninfa
Acompanhe em cadências suas a
Disciplina da dança...

Ao fim do dia quando os campos forem
Império conquistado pelas sombras
Como uma legião que segue marcha
 Abdiquemos do dia,

E na nossa memória coloquemos,
Com um deus novo duma nova terra
Trazido, o que ficou em nós da calma
Do dia passageiro.

RICARDO REIS, 11 DE AGOSTO DE 1914


sábado, 10 de agosto de 2013

FAZ HOJE 84 ANOS



Aqui na orla da praia, mudo e contente do mar,
Sem nada já que me atraia, nem nada que desejar,
Farei um sonho, terei meu dia, fecharei a vida,
E nunca terei agonia, pois dormirei de seguida.

A vida é como uma sombra que passa por sobre um rio
Ou como um passo na alfombra de um quarto que jaz vazio;
O amor é um sono que chega para o pouco que se é;
A glória concede e nega; não tem verdades a fé.

Por isso na orla morena da praia calada e só,
Tenho a alma feita pequena, livre de mágoa e de dó;
Sonho sem quasi já ser, perco sem nunca ter tido,
E comecei a morrer muito antes de ter vivido.

Dêem-me, onde aqui jazo, só uma brisa que passe,
Não quero nada do acaso, senão a brisa na face;
Dêem-me um vago amor de quanto nunca terei
Não quero gozo nem dor, não quero vida nem lei.

Só, no silêncio cercado pelo som brusco do mar
Quero dormir sossegado, sem nada que desejar,
Quero dormir na distância de um ser que nunca foi seu,
Tocado do ar sem fragrância da brisa de qualquer céu.



FERNANDO PESSOA, 10 DE AGOSTO DE 1929

sexta-feira, 9 de agosto de 2013

FAZ HOJE 79 ANOS




Há tanto tempo que não sou capaz
De escrever um poema extenso!.
Há anos...

Perdi a virtude do desenvolvimento rítmico
Em que a ideia e a forma,
Numa unidade de corpo com alma,
Unanimemente se moviam...

Perdi tudo que me fazia consciente
De uma certeza qualquer no meu ser...
Hoje o que me resta?
O sol que está sem que eu o chamasse...
O dia que me não custou esforço...
Uma brisa, ou a festa de uma brisa,
Que me dão uma consciência do ar...
E o egoísmo doméstico de não querer mais nada.

Mas, ah!, minha Ode Triunfal,
O teu movimento rectilíneo!
Ah, minha Ode Marítima,
A tua estrutura geral em estrofe, antístrofe e épodo!
E os meus planos, então, os meus planos -
Esses é que eram as grandes odes!
E aquela, a última, a suprema, a impossível!



ÁLVARO DE CAMPOS, 9 DE AGOSTO DE 1934

quinta-feira, 8 de agosto de 2013

FAZ HOJE 79 ANOS



Passa um silêncio sobre a erva alta.
Cessam seus topos de cabecear…
O vento esconde-se, e a sua falta
Dá uma tristeza ao ar.

Assim quando cessou o sentimento
Que fez mover os cimos do meu ser
Não se me melhorou o pensamento
E fiquei sem querer.

Vento que dormes, ergue-te e caminha!
Emoção tarda, sente-te e revive!
E a erva volta à comoção que tinha
E eu ao amor que tive…



FERNANDO PESSOA, 8 DE AGOSTO DE 1934