domingo, 31 de março de 2013

FAZ HOJE 111 ANOS




Mote:

Teus olhos contas escuras,
São duas, Avé Marias
Dum rosário d’amarguras
Que eu rezo todos os dias.

                                                 (Augusto Gil)

Glosa:

Quando a dor me amargurar,
Quando sentir penas duras,
Só me podem consolar
Teus olhos, contas escuras.

Deles só brotam amores;
Não há sombra d’ironias;
Esses olhos sedutores
São duas Avé Marias.

Mas se a ira os vem turvar
Fazem-me sofrer torturas
E as contas todas rezar
Dum rosário d’amarguras.

Ou se os alaga a aflição
Peço p’ra ti alegrias
Numa fervente oração
Que rezo todos os dias!

FERNANDO PESSOA, 31 DE MARÇO DE 1902

(Nota: Trata-se de um poema escrito quando o Poeta tinha apenas 14 anos )

sábado, 30 de março de 2013

FAZ HOJE 82 ANOS





Não tenho quinta nenhuma. 
Se a quero ter p’ra sonhar,  
Tenho que a extrair da bruma 
Do meu mole meditar.  

E então, desfazendo a névoa 
Que há sempre dentro de nós, 
Progressivamente elevo-a 
Até uma quinta a sós. 

Vejo os tanques, vejo as calhas 
Por onde a água vai pequena, 
Vejo os caminhos com falhas, 
Vejo a eira erma e serena. 

E, contente deste nada 
Que em mim mesmo faço externo, 
Gozo a frescura relvada 
Da não-quinta em que me interno. 

Vilegiatura impossível, 
Dou-lhe nós para lembrar, 
E esqueço-a ao primeiro nível 
Do meu mole meditar. 


FERNANDO PESSOA,30 DE MARÇO DE 1931

sexta-feira, 29 de março de 2013

FAZ HOJE 84 ANOS




Aqui está-se sossegado.
Longe do mundo e da vida,
Cheio de não ter passado,
Até o futuro se olvida.
Aqui está-se sossegado.

Tinha os gestos inocentes,
Seus olhos riam no fundo.
Mas invisíveis serpentes
Faziam-na ser do mundo.
Tinha os gestos inocentes.

Aqui tudo é paz e mar.
Que longe a vista se perde
Na solidão a tornar
Em sombra o azul que é verde!
Aqui tudo é paz e mar.

Sim, poderia ter sido...
Mas vontade nem razão
O mundo têm conduzido
A prazer ou conclusão.
Sim, poderia ter sido.

Agora não esqueço e sonho.
Fecho olhos, oiço o mar
E de ouvi-lo bem, suponho
Que vejo azul a esverdear.
Agora não esqueço o sonho.


Não foi propósito, não.
Os seus gestos inocentes
Tocavam no coração
Como invisíveis serpentes.
Não foi propósito, não.

Durmo, desperto e sozinho.
Que tem sido a minha vida?
Velas de inútil moinho -
Um movimento sem lida...
Durmo, desperto e sozinho.

Nada explica nem consola.
Tudo está certo depois.
Mas a dor que nos desola,
A mágoa de um não ser dois -
Nada explica nem consola.


FERNANDO PESSOA, 29 DE MARÇO DE 1929

quinta-feira, 28 de março de 2013

FAZ HOJE 83 ANOS




Quem vende a verdade, e a que esquina? 
Quem dá a hortelã com que temperá-la? 
Quem traz para casa a menina 
E arruma as jarras da sala? 

Quem interroga os baluartes 
E conhece o nome dos navios? 
Dividi o meu estudo inteiro em partes 
E os títulos dos capítulos são vazios... 

Meu pobre conhecimento ligeiro, 
Andas buscando o estandarte eloquente 
Da filarmónica de um Barreiro 
Para que não há barco nem gente. 

Consequências naturais do malogro... 
Novidades a dar aos mortos... 
Tenho o meu coração frio e rouco 

Tapeçarias de parte nenhuma 
Quadros virados contra a parede... 
Ninguém conhece, ninguém arruma 
Ninguém dá nem pede. 

Ó coração epitélico e macio, 
Colcha de crochet do anseio morto, 
Grande prolixidade do navio 
Que existe só para nunca chegar ao porto. 


FERNANDO PESSOA, 28 DE MARÇO DE 1930

quarta-feira, 27 de março de 2013

FAZ HOJE 84 ANOS



INSÓNIA                                                                                                                                                                                                                                


Não durmo, nem espero dormir.
Nem na morte espero dormir.

Espera-me uma insónia da largura dos astros,
E um bocejo inútil do comprimento do mundo.

Não durmo; não posso ler quando acordo de noite,
Não posso escrever quando acordo de noite,
Não posso pensar quando acordo de noite -
Meu Deus, nem posso sonhar quando acordo de noite!

Ah, o ópio de ser outra pessoa qualquer!

 Não durmo, jazo, cadáver acordado, sentindo,
E o meu sentimento é um pensamento vazio.
Passam por mim, transtornadas, coisas que me sucederam
- Todas aquelas de que me arrependo e me culpo -;
Passam por mim, transtornadas, coisas que me não sucederam
- Todas aquelas de que me arrependo e me culpo -;
Passam por mim, transtornadas, coisas que não são nada,
E até dessas me arrependo, me culpo, e não durmo.

Não tenho força para ter energia para acender um cigarro.
Fito a parede fronteira do quarto como se fosse o universo.
Lá fora há o silêncio dessa coisa toda.
Um grande silêncio apavorante noutra ocasião qualquer,
Noutra ocasião qualquer em que eu pudesse sentir.

Estou escrevendo versos realmente simpáticos -
Versos a dizer que não tenho nada que dizer,
Versos a teimar em dizer isso,
Versos, versos, versos, versos, versos...
Tantos versos...
E a verdade toda, e a vida toda fora deles e de mim!

Tenho sono, não durmo, sinto e não sei em que sentir.
Sou uma sensação sem pessoa correspondente,
Uma abstracção de autoconsciência sem de quê,
Salvo o necessário para sentir consciência,
Salvo - sei lá salvo o quê...

Não durmo. Não durmo. Não durmo.
Que grande sono em toda a cabeça e em cima dos olhos e na alma!
Que grande sono em tudo excepto no poder dormir!

Ó madrugada, tardas tanto... Vem...
Vem, inutilmente,
Trazer-me outro dia igual a este, a ser seguido por outra noite igual a esta...

Vem trazer-me a alegria dessa esperança triste,
Porque sempre és alegre, e sempre trazes esperança,
Segundo a velha literatura das sensações.
Vem, traz a esperança, vem, traz a esperança.
O meu cansaço entra pelo colchão dentro.
Doem-me as costas de não estar deitado de lado.
Se estivesse deitado de lado doíam-me as costas de estar deitado de lado.

Vem, madrugada, chega!

Que horas são? Não sei.
Não tenho energia para estender uma mão para o relógio,
Não tenho energia para nada, nem para mais nada...
Só para estes versos, escritos no dia seguinte.
Sim, escritos no dia seguinte.
Todos os versos são sempre escritos no dia seguinte.

Noite absoluta, sossego absoluto, lá fora.
Paz em toda a Natureza.
A humanidade repousa e esquece as suas amarguras.
Exactamente.
A humanidade esquece as suas alegrias e amarguras.
Costuma dizer-se isto.
A humanidade esquece, sim, a humanidade esquece,
Mas mesmo acordada a humanidade esquece.
Exactamente. Mas não durmo.

ÁLVARO DE CAMPOS, 27 DE MARÇO DE 1929

terça-feira, 26 de março de 2013

POEMA SEM DATA





Acordar da cidade de Lisboa, mais tarde do que as outras,
Acordar da rua do Ouro
Acordar do Rossio, às portas dos cafés,
Acordar
E no meio de tudo a gare, a gare que nunca dorme
Como um coração que tem que pulsar através da vigília e do sono.

Toda a manhã que raia, raia sempre no mesmo lugar,
Não há manhãs sobre cidades, ou manhãs sobre o campo
À hora em que o dia raia, em que a luz estremece a erguer-se
Todos os lugares são o mesmo lugar, todas as terras são a mesma,
E é eterna e de todos os lugares a frescura que sobe por tudo


Uma espiritualidade feita com a nossa própria carne.
Um alívio de viver de que o nosso corpo partilha,
Um entusiasmo por o dia que vai vir, uma alegria por o que pode
acontecer de bom,
São os sentimentos que nascem  de estar olhando para a madrugada,
Seja ela a leve senhora dos cumes dos montes,
Seja ela a invasora lenta das ruas das cidades que vão leste-oeste,
Seja.

A mulher que chora baixinho
Entre o ruído da multidão em vivas...
O vendedor de ruas, que tem um pregão esquisito,
Cheio de individualidade para quem repara...
O arcanjo isolado, escultura numa catedral,
Siringe fugindo aos braços estendidos de Pã,
Tudo isto tende para o mesmo centro,
Busca encontrar-se e fundir-se
Na minha alma.

Eu adoro todas as coisas
E o meu coração é um albergue aberto toda a noite.
Tenho pela vida um interesse ávido
Que busca compreendê-la sentindo-a muito.
Amo tudo, animo tudo, empresto humanidade a tudo,
Aos homens e às pedras, às almas e às máquinas.
Para aumentar com isso a minha personalidade.

Pertenço a tudo para pertencer cada vez mais a mim próprio
E a minha ambição era trazer o universo ao colo
Como uma criança a quem a ama beija.

Eu amo todas as coisas, umas mais do que as outras —
Não nenhuma mais do que outra, mas sempre mais as que estou vendo
Do que as que vi ou verei.
Nada para mim é tão belo como o movimento e as sensações.
A vida é uma grande feira e tudo são barracas e saltimbancos.
Penso nisto, enterneço-me mas não sossego nunca.

Dá-me lírios, lírios
E rosas também.

ÁLVARO DE CAMPOS, Sem data

segunda-feira, 25 de março de 2013

FAZ HOJE 82 ANOS




No meio da noite
Enquanto a dormir
Jaz tudo em meu torno
Sem eu o ouvir,

No meio da noite
Medito o que sou...
Às vezes o vento
Quando começou

De repente cessa
E é inútil ouvir
Pois tudo acabou
Sem se conseguir.


FERNANDO PESSOA, 25 DE MARÇO DE 1931

domingo, 24 de março de 2013

FAZ HOJE 82 ANOS




Num dia silencioso 
E num quarto interior 
Como soa doloroso 
Um pregão de vendedor!

Devendo ter a alegria
Da rua e do céu que tem,
A voz soa longe, fria
Da própria vida a que vem.

Talvez o mal seja meu, 
Que a voz, onde soa e está, 
Não sabe que eu sinto e que eu 
Sinto sempre o que não há. 

Sinto que é a vida, que, enorme 
Ao coração se me exprime. 
É a vida, mas a dizer-me 
Que dela não me aproxime. 


FERNANDO PESSOA, 24 DE MARÇO DE 1931

sábado, 23 de março de 2013

FAZ HOJE 100 ANOS





CORTEJO FÚNEBRE


Corre-me nas veias um fogo de abandono... 
Tenho uma auréola de névoa em meu olhar... 
Embala o meu silêncio oco de sono 
Uma sombra consciente de (o) embalar... 
Dobre a finados sem sinos 
 Nos meus ócios peregrinos 

Roçam mãos no meu corpo onde eu as não vejo 
Passam asas no soslaio da minha atenção, 
Um invisível bafo falha um beijo 
Perto da minha face atenta em vão!!! 
 Lá vai lento e lento o enterro 
 Do que eu tinha de áureo no erro 

Só me resta o fitar-me no espelho da verdade 
E acompanhar-me com a ilusão de que vivi 
Mas uma raiva súbita me invade: 
Não saber eu quem sou, e o que é aqui! 
 Nestes pós de fria terra 
 A minha sombra me enterra.


FERNANDO PESSOA, 23 DE MARÇO DE 1913

sexta-feira, 22 de março de 2013

FAZ HOJE 99 ANOS




Mãos brancas (meras mãos sem corpo e sem braços) 
Acariciando um negro veludo... 
Os olhos do guerreiro vistos por cima do escudo 

(Cartas de luto sobre regaços) 
E nunca desfraldado o estandarte 
De modo a ver-se que cores e imagens tem... 
Mãos sem lágrimas, mãos que nunca seriam de mãe... 
Ah, não ser eu toda a gente e toda a parte!" 

Dói púrpuras o silêncio, e que lírios a hora! 
E nos tabernáculos das ocasiões um rito de timbres colora 
Os vitrais das passadas desilusões... 

Cessou no Oposto o ruído de vagas batalhas 
Ficou todo o espaço sendo, com túmulos (brancos) a Hora,
Um suspirar de guizos, com fimbrias de falhas... 

Abrem-se de par em par impossíveis portões 
E desabrocha a ira nos olhos de Artur 
Dos vultos, na sombra, de leões... 

Mas os dias acontecem oráculos neutros 
E não há rituais, Princesa, senão de imperfeições... 


FERNANDO PESSOA, 22 DE MARÇO DE 1914

quinta-feira, 21 de março de 2013

FAZ HOJE 79 ANOS




Vibra, clarim, cuja voz diz 
Que outrora ergueste o grito real 
Por D. João, Mestre de Avis, 
E Portugal! 

Vibra, grita aquele hausto fundo 
Com que impeliste, como um remo, 
Em El-Rei D. João Segundo 
O Império extremo! 

Vibra, sem lei ou com a lei, 
Como aclamaste outrora em vão 
O morto que hoje é vivo - El-Rei 
D. Sebastião! 

Vibra chamando, e aqui convoca 
O inteiro exército fadado 
Cuja extensão os pólos toca 
Do mundo dado! 

Aquele exército que é feito 
De quanto em Portugal é o mundo 
E enche este mundo vasto e estreito 
De ser profundo! 

Para a obra que há que prometer 
Ao nosso esforço alado em si, 
Convoca todos sem saber 
(Ë a Hora!) aqui! 

Os que, soldados da alta glória, 
Deram batalhas com um nome, 
E de cuja alma a voz da história 
Tem sede e fome. 

E os que, pequenos e mesquinhos, 
No ver e crer da externa sorte, 
Calçaram imperiais caminhos 
Com vida e morte. 

Sim, estes, os plebeus do Império, 
Heróis sem ter para que o ser, 
Chama-os aqui, ó som etéreo 
Que vibra a arder! 

E os que sonharam, enlevados 
No Outro Império que sorri 
Além do mundo e os céus fechados, 
Aqui! Aqui! 

E, se o futuro é já presente 
Na visão de quem sabe ver, 
Convoca aqui eternamente 
Os que hão-de ser! 

Todos, todos! A hora passa, 
O génio colhe-a quando vai. 
Vibra! Forma outra e a mesma raça 
Da que se esvai! 

A todos, todos, feitos num 
Que é Portugal, sem lei nem fim, 
Convoca, e, erguendo-os um a um,
Vibra, clarim! 

E outros, e outros, gente vária, 
Oculta neste mundo misto. 
Seu peito atrai, rubra e templária, 
A Cruz de Cristo. 

Glosam, secretos, altos motes, 
Dados no idioma do Mistério - 
Soldados não, mas sacerdotes, 
Do Quinto Império. 

Aqui! Aqui! Todos que são 
O Portugal que é tudo em si, 
Venham do abismo ou da ilusão, 
Todos aqui! 

Armada intérmina surgindo, 
Sobre ondas de uma vida estranha, 
Do que por haver ou do que é findo - 
É o mesmo: venha! 

Vós não soubestes o que havia 
No fundo incógnito da raça, 
Nem como a Mão, que tudo guia, 
Seus planos traça. 

Mas um instinto involuntário, 
Um ímpeto de Portugal, 
Encheu vosso destino vário 
De um dom fatal. 

De um rasgo de ir além de tudo, 
De passar para além de Deus, 
E, abandonando o gládio e o escudo, 
Galgar os céus. 

Titãs de Cristo! Cavaleiros 
De uma cruzada além dos astros, 
De que esses astros, aos milheiros, 
São só os rastros. 

Vibra, estandarte feito som, 
No ar do mundo que há-se ser. 
Nada pequeno é justo e bom. 
Vibra a vencer! 

Transcende a Grécia e a sua história 
Que em nosso sangue continua! 
Deixa atrás Roma e a sua glória 
E a Igreja sua! 

Depois transcende esse furor 
E a todos chama ao mundo visto, 
Hereges por um Deus maior 
E um novo Cristo! 

Vinde aqui todos os que sois, 
Sabendo-o bem, sabendo-o mal, 
Poetas, ou santos, ou heróis 
De Portugal. 

Não foi p'ra servos que nascemos 
Da Grécia ou Roma ou de ninguém. 
Tudo negámos e esquecemos: 
Fomos para além. 

Vibra, clarim, mais alto! Vibra! 
Grita a nossa ânsia já ciente,
Que o seu inteiro voo libra 
De poente a oriente! 

Vibra, clarim! A todos chama! 
Vibra! E tu mesmo, voz a arder, 
O Portugal de Deus proclama 
Com o fazer! 

O Portugal feito Universo, 
Que reúne, sob amplos céus, 
O corpo anónimo e disperso 
De Osíris, Deus. 

O Portugal que se levanta 
Do fundo surdo do Destino, 
E, como a Grécia, obscuro canta 
Baco divino. 

Aquele inteiro Portugal, 
Que, universal perante a luz, 
Reza, ante a Cruz universal, 
Ao Deus Jesus. 


FERNANDO PESSOA, 21 DE MARÇO DE 1934