quarta-feira, 31 de agosto de 2016

FAZ HOJE 86 ANOS




É boa! Se fossem malmequeres!
E é uma papoula
Sozinha, com esse ar de 'queres?'
Veludo da natureza tola.

Coitada!
Por ela
Saí da marcha pela estrada.
Não a ponho na lapela.

Oscila ao leve vento, muito
Encarnada a arroxear.
Deixei no chão o meu intuito.
Caminharei sem regressar.

FERNANDO PESSOA, 31 DE AGOSTO DE 1930


terça-feira, 30 de agosto de 2016

FAZ HOJE 83 ANOS



Não sei se é sonho, se realidade,
Se uma mistura de sonho e vida,
Aquela terra de suavidade
Que na ilha extrema do sul se olvida.
É o que ansiamos. Ali, ali
A vida é jovem e o amor sorri.

Talvez palmares inexistentes,
Álea longínquas sem poder ser,
Sombra ou sossego dêem aos crentes
De que essa terra se pode ter.
Felizes, nós? Ah, talvez, talvez,
Naquela terra, daquela vez.

Mas já sonhada se desvirtua,
Só de pensá-la cansou pensar,
Sob os palmares, à luz da lua.
Sente-se o frio de haver luar.
Nessa terra, também, também
O mal não cessa, não dura o bem.

Não é com ilhas do fim do mundo,
Nem com palmares de sonho ou não,
Que cura a alma seu mal profundo,
Que o bem nos entra no coração.
É em nós que é tudo. É ali, ali,
Que a vida é jovem e o amor sorri.

FERNANDO PESSOA, 30 DE AGOSTO DE 1933


segunda-feira, 29 de agosto de 2016

FAZ HOJE 87 ANOS




DILUENTE

A vizinha do número catorze ria hoje da porta
De onde há um mês saiu o enterro do filho pequeno.
Ria naturalmente com a alma na cara.
Está certo: é a vida.
A dor não dura porque a dor não dura.
Está certo.
Repito: está certo.
Mas o meu coração não está certo.
O meu coração romântico faz enigmas do egoísmo
da vida.

Cá está a lição, ó alma da gente!
Se a mão esquece o filho que saiu dela e morreu,
Quem se vai dar ao trabalho de se lembrar de mim?
Estou só no mundo, como um pião de cair.
Posso morrer como o orvalho seca
Por uma arte natural da natureza solar.
Posso morrer à vontade da deslembrança,
Posso morrer como ninguém...
Mas isto dói,
Isto é indecente para quem tem coração
Isto...
Sim, isto fica-me nas goelas como uma sanduíche de lágrimas...
Glória? Amor? O anseio de uma alma humana?
Apoteose às avessas...
Dêem-me Água de Vidago que eu quero esquecer a vida!

ÁLVARO DE CAMPOS, 29 DE AGOSTO DE 1929


domingo, 28 de agosto de 2016

FAZ HOJE 81 ANOS




O sono que desce sobre mim,
O sono mental que desce fisicamente sobre mim,
O sono universal que desce individualmente sobre mim -
Esse sono
Parecerá aos outros o sono de dormir,
O sono da vontade de dormir,
O sono de ser sono.

Mas é mais, mais de dentro, mais de cima:
É o sono da soma de todas as desilusões,
É o sono da síntese de todas as desesperanças,
É o sono de haver mundo comigo lá dentro
Sem que eu houvesse contribuído em nada para isso.

O sono que desce sobre mim
É contudo como todos os sonos.
O cansaço tem ao menos brandura,
O abatimento tem ao menos sossego,
A rendição é ao menos o fim do esforço,
O fim é ao menos o já não haver que esperar.

Há um som de abrir uma janela,
Viro indiferente a cabeça para a esquerda
Por sobre o ombro que a sente,
Olho pela janela entreaberta:
A rapariga do segundo-andar de defronte
Debruça-se com os olhos azuis à procura de alguém.
De quem?,
Pergunta a minha indiferença.
E tudo isso é sono.

Meu Deus, tanto sono!...

ÁLVARO DE CAMPOS, 28 DE AGOSTO DE 1935


sábado, 27 de agosto de 2016

FAZ HOJE 83 ANOS



Dá-me a verdade: dou-te a vida.
A vida esquece como a água passa,
E é coisa morta a coisa que é esquecida.
Dá-me a verdade!
Como o que nunca foi, a vida esvoaça.

Ter o que é certo nas incertas mãos!
Saber bem o que nunca pode ser!
Tudo isto nos faz ermos e irmãos
No nada que nós somos.
Dá-me poder sentir, saber querer!

Instante inútil entre ser e estar,
Momento vácuo entre sonhar ou não,
Tudo isto pode ser e não ficar.
Dá-me a verdade!
Mas deixa-me a mentira no coração!

FERNANDO PESSOA, 27 DE AGOSTO DE 1933


sexta-feira, 26 de agosto de 2016

FAZ HOJE 85 ANOS




Às vezes entre a tormenta,
Quando já humedeceu,
Raia uma nesga no céu,
Com que a alma se alimenta.

E às vezes entre o torpor
Que não é tormenta da alma,
Raia uma espécie de calma
Que não conhece o langor.

E, quer num quer noutro caso,
Como o mal feito está feito,
Restam os versos que deito,
Vinho no copo do acaso.

Porque verdadeiramente
Sentir é tão complicado
Que só andando enganado
É que se crê que se sente.

Sofremos? Os versos pecam.
Mentimos? Os versos falham.
E tudo é chuvas que orvalham
Folhas caídas que secam.


FERNANDO PESSOA, 26 DE AGOSTO DE 1930


quinta-feira, 25 de agosto de 2016

FAZ HOJE 82 ANOS



A preguiça de pensar
É uma grande alegria,
Porque pensar é achar
Que a lareira já está fria.

Não quero pensar em nada.
Quero aquecer-me a sentir
Que na lareira apagada
Arde uma lareira de ouvir.

Que lareiras e alegrias
São coisas só de sonhar...
Aquecem por fantasias,
Mas, se pensar, são frias -
São frias por se pensar.




FERNANDO PESSOA, 25 DE AGOSTO DE 1934


quarta-feira, 24 de agosto de 2016

FAZ HOJE 85 ANOS





Entre o luar e o arvoredo,
Entre o desejo e não pensar
Meu ser secreto vai a medo
Entre o arvoredo e o luar.
Tudo é longínquo, tudo é enredo,
Tudo é não ter nem encontrar.

Entre o que a brisa traz e a hora,
Entre o que foi e o que a alma faz,
Meu ser oculto já não chora
Entre a hora e o que a brisa traz.
Tudo não foi, tudo se ignora.
Tudo em silêncio se desfaz.

FERNANDO PESSOA, 24 DE AGOSTO DE 1930


terça-feira, 23 de agosto de 2016

FAZ HOJE 82 ANOS



Ah, quero as relvas e as crianças!
Quero o coreto com a banda!
Quero os brinquedos e as danças -
A corda com que a alma anda.

Quero ver todas brincar
Num jardim onde se passa,
Para ver se posso achar
Onde está minha desgraça.

Ah, mas minha desgraça está
Em eu poder querer isto -
Poder desejar o que há.



FERNANDO PESSOA, 23 DE AGOSTO DE 1934

segunda-feira, 22 de agosto de 2016

FAZ HOJE 82 ANOS




O sol que doura as neves afastadas
No inútil cume de altos montes quedos
Faz no vale luzir rios e estradas
E torna as verdes árvores brinquedos...

Tudo é pequeno, salvo o cume frio,
De onde quem pensa que de ali não nos vê
Vê tudo mínimo, num desvario
De quem da altura olhe quanto é.

FERNANDO PESSOA, 22 DE AGOSTO DE 1934


domingo, 21 de agosto de 2016

FAZ HOJE 95 ANOS



Nos meus desejos existe
Longinquamente um país
Onde ser feliz consiste
Apenas em ser feliz.

Só palavras. Se estou triste
Um pouco o olhar consiste
Em dizê-lo assim, e, ao fundo,
De um mar verde a alma insiste
Em fingir de alma do mundo.

Sob um céu azul a espuma
De um mar verde abre na areia
E as barcas vão, uma a uma,
Quando se levanta a bruma
Brincar com a maré cheia.

Isto não é nada, nem
Sentido ou presença tem
No próprio sonho que o sonha
Mas dizendo-o sinto bem
A alma e a esperança risonha.

FERNANDO PESSOA, 21 DE AGOSTO DE 1921


sábado, 20 de agosto de 2016

FAZ HOJE 83 ANOS



Não sei se é sonho, se realidade,
Se uma mistura de sonho e vida,
Aquela terra de suavidade
Que na ilha extrema do sul se olvida.
É a que ansiamos. Ali, ali
A vida é jovem e o amor sorri

Talvez palmares inexistentes,
Áleas longínquas sem poder ser,
Sombra ou sossego dêem aos crentes
De que essa terra se pode ter
Felizes, nós? Ali, talvez, talvez,
Naquela terra, daquela vez,

Mas já sonhada se desvirtua,
Só de pensá-la cansou pensar;
Sob os palmares, à luz da lua,
Sente-se o frio de haver luar
Ah, nesta terra também, também
O mal não cessa, não dura o bem.

Não é com ilhas do fim do mundo,
Nem com palmares de sonho ou não,
Que cura a alma seu mal profundo,
Que o bem nos entra no coração.
É em nós que é tudo. É ali, ali,
Que a vida é jovem e o amor sorri.

FERNANDO PESSOA, 20 DE AGOSTO DE 1933


sexta-feira, 19 de agosto de 2016

FAZ HOJE 85 ANOS




Não quero mais que um som de água
Ao pé de um adormecer.
Trago sonho, trago mágoa,
Trago com que não querer.

Como nada amei nem fiz
Quero descansar de nada.
Amanhã serei feliz
Se para amanhã há estrada.

Por enquanto, na estalagem
De não ter cura de mim,
Gozarei só pela aragem
As flores do outro jardim.

Por enquanto, por enquanto,
Por enquanto não sei quê...
Pobre alma, choras sem pranto,
E ouves como quem vê.

FERNANDO PESSOA, 19 DE AGOSTO DE 1930