Sangra-me o coração. Tudo que penso
A emoção mo tomou.
Sofro esta mágoa
Que é o mundo imoral,
regrado e imenso,
No qual o bem é só
como um incenso
Que cerca a vida,
como a terra a água.
Todos os dias, oiça
ou veja, dão
Misérias, males,
injustiças - quanto
Pode afligir o
estéril coração.
E todo anseio pelo
bem é vão,
E a vontade tão vã
como é o pranto.
Que Deus duplo nos
pôs na alma sensível
Ao mesmo tempo os
dons de conhecer
Que o mal é a norma,
o natural possível,
E de querer o bem,
inútil nível,
Que nunca assenta
regular no ser?
Com que fria
esquadria e vão compasso
Que invisível
Geómetra regrou
As marés deste mar de
mau sargaço -
O mundo fluido, com
seu tempo e 'spaço,
Que nem Deus sabe
como começou?
Mas, seja como for,
nesta descida
De Deus ao ser, o mal
teve alma e azo;
E o Bem, justiça
espiritual da vida,
É perdida palavra,
substituída
Por bens obscuros,
fórmulas do acaso.
Que plano extinto,
antes de conseguido,
Ficou só mundo, norma
e desmazelo?
Mundo imperfeito,
porque foi erguido?
Como acabá-lo, templo
inconcluído,
Se nos falta o
segredo com que erguê-lo?
O mundo é Deus que é
morto, e a alma aquele
Que, esse Deus exumado,
reflectiu
A morte e a exumação
que houveram dele.
Mas 'stá perdido
o selo com que sele
Seu pacto com o vivo
que caiu.
Por isso, em sombra e
natural desgraça,
Tem que buscar aquilo
que perdeu -
Não ela, mas a morte
que a repassa,
E vem achar no Verbo
a fé e a graça -
A nova vida do que já
morreu.
Porque o Verbo é quem
Deus era primeiro,
Antes que a morte,
que o tornou o mundo,
Corrompesse de mal o
mundo inteiro:
E assim no Verbo, que
é o Deus terceiro,
A alma volve ao Bem
que é o seu fundo.
FERNANDO PESSOA, 26
DE ABRIL DE 1934