quinta-feira, 6 de janeiro de 2011

FAZ HOJE 82 ANOS

FAZEM HOJE 88 ANOS
1)

Sonho. Não sei quem sou neste momento.
Durmo sentindo-me. Na hora calma
Meu pensamento esquece o pensamento,
Minh’alma não tem alma.


Se existo, é um erro eu o saber. Se acordo
Parece que erro. Sinto que não sei.
Nada quero, nada tenho, nem recordo.
Não tenho ser nem lei.


Lapso da consciência entre ilusões,
Fantasmas me limitam e contêm.
Dorme, incônscio de alheios corações,
Coração de ninguém!


2)

Não sou nada, nada posso, nada sigo.
Trago por ilusão, o meu ser comigo.
Não compreendo compreender, nem sei
Se hei-de ser, sendo nada, o que serei.


Fora disto, que é nada, sob o azul
Do largo céu um vento vão do sul
Acorda-me e estremece no verdor.
Ter razão, ter vitórias, ter amor


Murcham na haste morta de ilusão.
Sonhar é nada, e não saber é vão.
Dorme na sombra, incerto coração


FERNANDO PESSOA 6 DE JANEIRO DE 1923


FAZ HOJE 81 ANOS

Passo, na noite da rua suburbana,
Regresso da conferência com peritos como eu.
Regresso só, e poeta agora, sem perícia nem engenharia.
Humano até ao som dos meus sapatos solitários no princípio da noite
Onde ao longe a porta da tenda tardia se encobre com o último taipal.
Ah, o som do jantar nas casas felizes!
Passo, e os meus ouvidos vêem para dentro das casas.
O meu exílio natural enternece-se no escuro
Da rua meu lar, da rua meu ser, da rua meu sangue.
Ser a criança economicamente garantida,
Com a cama fofa e o sono da infância e a criada!
Ó meu coração sem privilégio!
Minha sensibilidade da exclusão!
Minha mágoa externa de ser eu!


Quem fez lenha de todo o berço da minha infância?
Quem fez trapos de limpar o chão dos meus lençóis de menino?
Quem expôs por cima das cascas e do cotão das casas
Nos caixotes de lixo do mundo
As rendas daquela camisa que usei para me baptizarem?
Quem me vendeu ao Destino?
Quem me trocou por mim?

Venho de falar precisamente em circunstâncias positivas.
Pus pontos concretos, como um numerador automático.
Tive razão como uma balança.
Disse como sabia.


Agora, a caminho do carro eléctrico do términus de onde se volta à cidade,
Passo, bandido, metafísico, sob a luz dos candeeiros afastados,
E na sombra entre dois candeeiros afastados tenho vontade de não seguir.
Mas apanharei o eléctrico.
Soará duas vezes a campainha lá do fio invisível da correia puxada
Pelas mãos de dedos grossos do condutor por barbear.
Apanharei o eléctrico. 
Ai de mim: apesar de tudo sempre apanhei o eléctrico…
Sempre, sempre, sempre…
Voltei sempre à cidade,
Voltei sempre à cidade depois de especulações e desvios,
Voltei sempre com vontade de jantar.
Mas nunca jantei o jantar que soa atrás das persianas
Das casas felizes dos arredores por onde se volta ao eléctrico,
Das casas conjugais da normalidade da vida!
Pago o bilhete através dos interstícios,
E o condutor passa por mim como seu fosse a Crítica da Razão Pura
Paguei o bilhete. Cumpri o dever. Sou vulgar.
E tudo isto são coisas que nem o suicídio cura.


ÁLVARO DE CAMPOS, 6 DE JANEIRO DE 1930

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