sexta-feira, 31 de janeiro de 2014

FAZ HOJE 84 ANOS




Aqui estou posto, onde algas e cortiça
À praia sem ninguém a maré traz;
Onde não há verdade nem justiça
Mas só o som sem nada que o mar faz.

E aqui, ao pé do antigo promontório,
Alheio em pedra bruta ao nome seu,
Volto, depois de um grande fado inglório,
À confusa substância que sou eu.

Tantas grandezas me pesaram na alma,
Tanta vicissitude me formou,
Que agora, a sós sem mim, não sei da calma
Que deveria ter, nem sei quem sou.

Fui tão estrangeiro no que fui, tão vago
Andei de mim em quanto consegui,
Que me recolho como o fim de um estrago
Do que me resta, e não é nada em si.

Pensei, fugindo às torres e às praças,
Trazer comigo eu mesmo, e aqui me achar,
Liberto de venturas e desgraças,
Tal qual eu sou, sem nada me alterar.

Mas ai!, não é em vão que se caminha
Fora da alma, entregue à vida e à sorte.
A alma que trago já não é a minha.
Sou um sobrevivente à própria morte.

Deixei quem fui nas algas e a cortiça
De um mar pior que este que se ergue aqui.
Aqui não há verdade nem justiça.
Não as achei também onde vivi.

Pesa-me a simples natureza. Anseio
Por me encontrar, e sinto-me sentir
Que só voltando ao exílio de onde veio
Minha alma poderá se conseguir.

Mas nem posso ficar nem regressar.
Vendi a alma aos dias e às noções.
Não tenho pátria em mim a que voltar,
Nem próprios pensamentos ou emoções.

Metade meu, metade alheio, agora.


FERNANDO PESSOA, 31 DE JANEIRO DE 1930



quinta-feira, 30 de janeiro de 2014

FAZ HOJE 83 ANOS




Algures no tempo ido,
Num 'spaço já esquecido,
Tive, guardada, não sei
Onde, nem se inda a terei,
Uma pequena porção
De ser feliz sem razão.

É uma espécie de fermento
Que se usa no pensamento
Para fazer bolo doce.
Com uma pequena dose
Consegue-se o que se quer.
O pior de tudo é viver.

Uma mão-cheia é bastante
Para aproveitar o instante
E dourá-lo de elegia.
Usa-se com água fria.
Outras é com água quente
(Lágrimas). É indiferente.


FERNANDO PESSOA, 30 DE JANEIRO DE 1931



quarta-feira, 29 de janeiro de 2014

FAZ HOJE 81 ANOS



A clareza falsa, rígida, não-lar dos hospitais
A alegria humana, vivaz, sobre o caso da vizinha
Da mãe inconsolável a que o filho morreu há um ano

Trapos somos, trapos amamos, trapos agimos —
Que trapo tudo que é este mundo!

ÁLVARO DE CAMPOS, 29 DE JANEIRO DE 1933



terça-feira, 28 de janeiro de 2014

FAZ HOJE 92 ANOS



No entardecer da terra
O sopro do longo outono
Amareleceu o chão.
Um vago vento erra,
Como um sonho mau num sono,
Na lívida solidão

Soergue as folhas, e pousa
As folhas, e volve, e revolve,
E esvai-se inda outra vez.
Mas a folha não repousa,
E o vento lívido volve
E expira na lividez.

Eu já não sou quem era;
O que eu sonhei, morri-o;
E até do que hoje sou
Amanhã direi, Quem dera
Volver a sê-lo!... Mais frio
O vento vago voltou.



FERNANDO PESSOA, 28 DE JANEIRO DE 1922

segunda-feira, 27 de janeiro de 2014

FAZ HOJE 97 ANOS



Olho os campos, Neera,
Verdes campos, e penso
Em que virá um dia
Em que não mais os olhe.

Isto se o meditar,
Me toldará os céus
E fará menos verdes
Os verdes campos reais.

Ah! Neera, o futuro
Ao futuro deixemos.
O que não está presente
Não existe pra nós.

Hoje não tenho nada
Senão os verdes campos
E o céu azul por cima.
Seja isto todo o mundo.

RICARDO REIS, 27 DE JANEIRO DE 1917