domingo, 30 de junho de 2019

FAZ HOJE 105 ANOS





DOIS EXCERTOS DE ODES

(fins de duas odes, naturalmente)

I

Vem, noite antiquíssima e idêntica,
Noite Rainha nascida destronada,
Noite igual por dentro ao silêncio, Noite
Com as estrelas lantejoulas rápidas
No teu vestido franjado de infinito.

Vem, vagamente,
Vem, levemente,
Vem sozinha, solene, com as mãos caídas
Ao teu lado, vem
E traz os montes longínquos para ao pé das árvores próximas,
Funde num campo teu, todos os campos que vejo,
Faze da montanha um bloco só do teu corpo,
Apaga-lhes todas as diferenças que de longe eu vejo
Todas as estradas que a sobem,
Todas as várias árvores que a fazem verde-escuro ao longe,
Todas as casas brancas e com fumo entre as árvores,
E deixa só uma luz, e outra luz e mais outra,
Na distância imprecisa e vagamente perturbadora,
Na distância subitamente impossível de percorrer.

Nossa Senhora
Das cousas impossíveis que procuramos em vão,
Dos sonhos que vêm ter connosco ao crepúsculo, à janela,
Dos propósitos que nos acariciam
Nos grandes terraços dos hotéis cosmopolitas
Ao som europeu das músicas e das vozes longe e perto,
E que doem por sabermos que nunca os realizaremos...
Vem, e embala-nos,
Vem e afaga-nos,
Beija-nos silenciosamente na fronte,
Tão levemente na fronte que nem saibamos que nos beijam
Senão por uma diferença na alma
Um vago soluço partindo melodiosamente
Do antiquíssimo de nós
Onde têm raiz todas essas árvores de maravilha
Cujos frutos são os sonhos que afagamos e amamos
Porque os sabemos fora de relação com o que há na vida.

Vem soleníssima,
Soleníssima e cheia
De uma oculta vontade de soluçar,
Talvez porque a alma é grande e vida é pequena,
E todos os gestos não saem do nosso corpo
E só alcançamos onde o nosso braço chega,
E só vemos até onde chega o nosso olhar.

Vem dolorosa,
Mater-Dolorosa das Angústias dos Tímidos,
Turris-Eburnea das Tristezas dos Desesperados,
Mão fresca sobre a testa em febre dos Humildes,
Sabor de água sobre os lábios secos dos Cansados.
Vem, lá do fundo
Do horizonte lívido,
Vem e arranca-me
Do solo de angústia e inutilidade
Onde vicejo.
Apanha-me do meu solo, malmequer esquecido,
Folha a folha lê em mim não sei que sina
E desfolha-me para teu agrado,
Para teu agrado silencioso e fresco.
Uma folha de mim lança para o Norte,
Onde estão as cidades de Hoje que eu tanto amei;
Outra folha de mim lança para o Sul,
Onde estão os mares que os Navegadores abriram;
Outra folha minha atira ao Ocidente,
Onde arde ao rubro tudo o que talvez seja o Futuro,
Que eu sem conhecer adoro;
E a outra, as outras, o resto de mim
Atira ao Oriente
Ao Oriente de onde vem tudo, o dia e a fé,
Ao Oriente pomposo, fanático e quente,
Ao Oriente budista, bramânico, sintoísta
Ao Oriente que é tudo o nós não temos,
Que é tudo o que nós não somos,
Ao Oriente onde, - quem sabe? -, Cristo talvez ainda hoje viva,
Onde Deus talvez exista realmente e mandando tudo...

Vem sobre os mares,
Sobre os mares maiores,
Sobre os mares sem horizontes precisos,
Vem e passa a mão pelo dorso da fera,
E acalma-a misteriosamente,
Ó domadora hipnótica das coisas que se agitam muito!

Vem, cuidadosa,
Vem, maternal,
Pé ante pé, enfermeira antiquíssima, que te sentaste
À cabeceira dos deuses das fés já perdidas,
E que viste nascer Jeová e Júpiter,
E sorriste porque tudo te é falso e inútil.

Vem, Noite silenciosa e extática,
Vem envolver na noite manto branco
O meu coração...
Serenamente como uma brisa na tarde leve,
Tranquilamente como um gesto materno afagando,
Com as estrelas luzindo nas tuas mãos
E a lua máscara misteriosa na tua face,
Todos os sons soam de outra maneira
Quando tu vens.
Quando tu entras baixam todas as vozes,
Ninguém te vê entrar,
Ninguém sabe quando entraste,
Senão de repente, vendo que tudo se recolhe,
Que tudo perde as arestas e as cores,
E que no alto céu ainda claramente azul
Já crescente nítido, ou círculo branco, ou mera luz nova que vem,

A lua começa a ser real.

II

Ah o crepúsculo, o cair da noite, o acender das luzes, nas grandes cidades,
E a mão de mistério que abafa o bulício,
E o cansaço de tudo em nós que nos corrompe
Para uma sensação exacta e precisa e activa da Vida!
Cada rua é um canal de uma Veneza de tédios
E que misterioso o fundo unânime das ruas,
Das ruas ao cair da noite, ó Cesário Verde, ó Mestre,
Ó do "Sentimento de um Ocidental"!

Que inquietação profunda, que desejo de outras cousas,
Que não são países, nem momentos, nem vidas,
Que desejo talvez de outros modos de estados de alma
Humedece interiormente o instante lento e longínquo!

Um horror sonâmbulo entre luzes que se acendem,
Um pavor terno e líquido, encostado às esquinas
Como um mendigo de sensações impossíveis
Que não sabe quem lhas possa dar...

Quando eu morrer,
Quando me for, ignobilmente, como toda a gente,
Por aquele caminho cuja ideia se não pode encarar de frente,
Por aquela porta a que, se pudéssemos assomar, não assomaríamos,
Para aquele porto que o capitão do Navio não conhece,
Seja por essa hora condigna dos tédios que tive,
Por esta hora mística e espiritual e antiquíssima,
Por essa hora em que talvez, há muito mais tempo do que parece,
Platão sonhando viu a ideia de Deus
Esculpir corpo e existência absolutamente plausível
Dentro do seu pensamento exteriorizado como um campo.

Seja por esta hora que me leveis a enterrar,
Por esta hora que eu nem sei como viver,
Em que não sei que sensações ter ou fingir que tenho,
Por essa hora cuja misericórdia é torturante e excessiva,
Cujas sombras vêm de qualquer outra cousa que não as cousas,
Cuja passagem não roça vestes pelo chão da Vida Sensível
Nem deixa perfume nos caminhos do Olhar.

Cruza as mãos sobre o joelho, ó companheira que eu não tenho nem quero ter,
Cruza as mãos sobre o joelho e olha-me em silêncio
A esta hora em que eu não posso ver tu que tu me olhas,
Olha-me em silêncio e em segredo e pergunta a ti própria
- Tu que me conheces - quem eu sou...

ÁLVARO DE CAMPOS, 30 DE JUNHO DE 1914


sábado, 29 de junho de 2019

FAZ HOJE 100 ANOS





O sono é suave, mas o meio-sono
É mais suave ainda. Estar sabendo
Que se estará nesse lúcido abandono
É como a brisa à sombra se entretendo.

O amor é suave, mas o amor-talvez
É mais suave ainda. É como estar
Sobre a extensão alegre de um convés
A fitar sem os ver o céu e o mar.

A vida é suave, mas poder haver
Outra melhor e mais suave ainda.
É como entre a erva alta o malmequer
Que, uma vez visto, todo o campo alinda.

Assim, sob altos ramos rumorosos
Pensei, e a breve e incerta vibração
Dava-me pensamentos mais ditosos
Do que quaisquer felicidades dão.

Pouco sabemos do que há ou somos.
Nada sabemos do que nos espera.
Para uns a vida é fruta, com seus gomos.
Para outros é só a primavera.

FERNANDO PESSOA, 29 DE JUNHO DE 1919


sexta-feira, 28 de junho de 2019



   POEMA SEM DATA

 Cruzou por mim, veio ter comigo, numa rua da Baixa
  Aquele homem mal vestido, pedinte por profissão que se lhe vê na cara
  Que simpatiza comigo e eu simpatizo com ele;
  E reciprocamente, num gesto largo, transbordante, dei-lhe tudo quanto tinha
( (Excepto, naturalmente, o que estava na algibeira onde trago mais dinheiro:
   Não sou parvo nem romancista russo, aplicado,
   E romantismo, sim, mas devagar...).


I Sinto uma simpatia por essa gente toda,
  Sobretudo quando não merece simpatia.
  Sim, eu sou também vadio e pedinte,
  E sou-o também por minha culpa.
  Ser vadio e pedinte não é ser vadio e pedinte:
   É estar ao lado da escala social,
   É não ser adaptável às normas da vida,
   Às normas reais ou sentimentais da vida —
   Não ser Juiz do Supremo, empregado certo, prostituta,
   Não ser pobre a valer, operário explorado,
   Não ser doente de uma doença incurável,
   Não ser sedento de justiça, ou capitão de cavalaria
   Não ser, enfim, aquelas pessoas sociais dos novelistas
   Que se fartam de letras porque têm razão para chorar lágrimas,
   E se revoltam contra a vida social porque têm razão para isso supor.
   Não: tudo menos ter razão!
   Tudo menos importar-me com a humanidade!
   Tudo menos ceder ao humanitarismo!
   De que serve uma sensação se há uma razão exterior para ela?
  
   Sim, ser vadio e pedinte, como eu sou


  Não é ser vadio e pedinte, o que é corrente:
   É ser isolado na alma, e isso é que é ser vadio,
   É ter que pedir aos dias que passem, e nos deixem, e isso é que é ser pedinte.
  

   Tudo mais é estúpido como um Dostoievski ou um Gorki.
   Tudo mais é ter fome ou não ter que vestir.
   E, mesmo que isso aconteça, isso acontece a tanta gente
   Que nem vale a pena ter pena da gente a quem isso acontece.
   Sou vadio e pedinte a valer, isto é, no sentido translato,
   E estou-me rebolando numa grande caridade por mim.
    

   Coitado do Álvaro de Campos!
   Tão isolado na vida! Tão deprimido nas sensações!
   Coitado dele, enfiado na poltrona da sua melancolia!
   Coitado dele, que com lágrimas (autênticas) nos olhos,
   Deu hoje, num gesto largo, liberal e moscovita,
   Tudo quanto tinha, na algibeira em que tinha pouco, àquele
    Pobre que não era pobre, que tinha olhos  
    Tristes por profissão. 
    
     
    Coitado do Álvaro de Campos, com quem ninguém se importa! 
    Coitado dele que tem tanta pena de si mesmo!  
    E, sim, coitado dele!
    Mais coitado dele que de muitos que são vadios e vadiam, 
    Que são pedintes e pedem,   
    Porque a alma humana é um abismo.
   Eu é que sei. Coitado dele!              
   Que bom poder-me revoltar num comício dentro da minha alma!   
   Mas até nem parvo sou!    
   Nem tenho a defesa de poder ter opiniões sociais.
   Não tenho, mesmo, defesa nenhuma: sou lúcido.
   Não me queiram converter a convicção: sou lúcido.
   Já disse: Sou lúcido.
   Nada de estéticas com coração: Sou lúcido.
   Merda! Sou lúcido!
 
   ÁLVARO DE CAMPOS SEM DATA