quarta-feira, 31 de outubro de 2012

FAZ HOJE 85 ANOS



Não: não pedi amor nem amizade
Às almas nem à vida;
Pedi-os à ilusão, à saudade,
E a uma 'sp'rança perdida.

O que me deram não compensa o nada
Do que a vida me deu:
Mas, como a um pobre, o que me deu pousada
Deu-me um pouco de céu.

Perdi já tudo: o que negou o que é
E o que o sonho me dera...
Sou hoje o sol que vagueia a pé
Entre o que foi e o que era.

Hoje, descrente até do que não há,
Vagueio em mim sem mim,
E tudo o que sonhei é um deus que está
Guardando a treva e o fim.

FERNANDO PESSOA, 31 DE OUTUBRO DE 1927

terça-feira, 30 de outubro de 2012

FAZ HOJE 81 ANOS



Sim, não tenho razão...
Deixa-me distrair-me do argumento mental,
Não tenho razão, está bem, é uma razão como outra qualquer...

Se nem creio? Nem sei.
Creio que sim.Mas repito.
O amor deve ser constante?
Sim, deve ser constante,
Só no amor ,é claro.
Digo ainda outra vez...

Que embrulhada a gente arranja na vida!
Sim, está bem, amanhã trago o dinheiro.

Ó grande sol, tu não sabes nada disto,
Alegria que se não pode fitar no azul sereno inatingível.

ÁLVARO DE CAMPOS, 30 DE OUTUBRO DE 1931

segunda-feira, 29 de outubro de 2012

FAZ HOJE 77 ANOS


Teus olhos entristecem.
Nem ouves o que digo.
Dormem, sonham, esquecem...
Não me ouves, e prossigo.

Digo o que já, de triste,
Te disse tanta vez...
Creio que nunca o ouviste
De tão tua que és.

Olhas-me de repente
De um distante impreciso
Com um olhar ausente.
Começas um sorriso.

Continuo a falar.
Continuas ouvindo
O que estás a pensar,
Já quase sorrindo.

Até que, neste ocioso
Sumir de tarde fútil,
Se esfolha silencioso
O teu sorriso inútil.

FERNANDO PESSOA, 29 DE OUTUBRO DE 1935

domingo, 28 de outubro de 2012

POEMA SEM DATA



LISBON REVISITED
              (1923)

Não: não quero nada.
Já disse que não quero nada.

Não me venham com conclusões!

A única conclusão é morrer.

Não me tragam estéticas!

Não me falem em moral!
Tirem-me daqui a metafísica!
Não  me apregoem sistemas completos, não me enfileirem conquistas
Das ciências (das ciências, Deus meu, das ciências!) -
Das ciências, das artes, da civilização moderna!

Que mal fiz aos outros todos?


Se têm a verdade, guardem-na!


Sou um técnico, mas tenho técnica só dentro da técnica.


Fora disso sou doido, com todo o direito de sê-lo.

Com todo o direito de sê-lo, ouviram?

Não me macem, por amor de Deus!


Queriam-me casado, fútil, quotidiano e tributável?

Queriam-me o contrário disto, ou o contrário de qualquer cousa?
Se eu fosse outra pessoa, fazia-lhes, a todos, a vontade.
Assim, como sou eu, tenham paciência!
Vão para o diabo sem mim,
Ou deixem-me ir sozinho para o diabo!
Para que havemos de ir juntos?

Não me peguem no braço!

Não gosto que me peguem no braço. Quero ser sozinho.
Já disse que sou só sozinho!
Ah, que maçada querem que eu seja de companhia!

Ó céu azul - o mesmo da minha infância -,

Eterna verdade vazia e perfeita!
Ó macio Tejo ancestral e mudo,
Pequena verdade em que o céu se reflecte!
Ó mágoa revisitada, Lisboa de outrora de hoje!
Nada me dais, nada me tirais, nada sois que eu me sinta.

Deixem-me em paz! Não tardo, que eu nunca tardo...

E enquanto tarda o Abismo e o Silêncio quero estar sozinho!

ÁLVARO DE CAMPOS 




          

sábado, 27 de outubro de 2012

FAZ HOJE 89 ANOS




A folha insciente, antes que própria morra
Para nós morre, Cloe,
Para nós, que sabemos que ela morre,
Assim, Cloe, assim
Antes que os próprios corpos, que empregamos
No amor, ela envelhece.
Assim, diversos, somos, inda jovens,
Só a mútua lembrança.
Ah, se o que somos é sempre isto, e apenas
Uma hora é o que somos,
Com tal fúria nessa hora nos amemos
Que arda sua lembrança
Como a vida, e nos beijemos, Cloe
Como se, findo o beijo
Único, houvesse de ruir a súbita
Mole do morto mundo.

RICARDO REIS, 27 DE OUTUBRO DE 1923

sexta-feira, 26 de outubro de 2012

FAZ HOJE 93 ANOS


Não sei o que chora
Em mim o que penso.
Não é minha a hora
E o tédio é imenso.

Que é feito da vida
Dos outros, em mim?
A brisa é diluída
E a mágoa sem fim.

Seja a hora serena
E pálida, ou não,
Mas Deus tenha pena
Do meu coração!

FERNANDO PESSOA, 26 DE OUTUBRO DE 1919

quinta-feira, 25 de outubro de 2012

FAZ HOJE 79 ANOS




Nada... Passaram as nuvens e eu fiquei...
No ar limpo não há rasto.
Surgiu a lua de onde já não sei,
Num claro luar vasto.

Todo o espaço da noite fica cheio
De um peso sossegado...
Onde porei meu futuro, e o enleio
Que o liga ao meu passado?

E o grande céu é puro
Mas não há onde estou
Mais que a vereda onde eu, obscuro,
Arrasto quem não sou.

FERNANDO PESSOA, 25 DE OUTUBRO DE 1933

quarta-feira, 24 de outubro de 2012

FAZ HOJE 85 ANOS



Quando está frio no tempo do frio, para mim é como se estivesse agradável,
Porque para o meu ser adequado à existência da cousas 
O natural é agradável só por ser natural.

Aceito as dificuldades da vida porque são o destino,
Como aceito o frio excessivo no alto do inverno -
Calmamente, sem me queixar, como quem meramente aceita,
E encontra uma alegria no facto de aceitar -
No facto sublimemente científico e difícil de aceitar o natural inevitável.

Que são para mim as doenças que tenho e o mal que me acontece
Senão o inverno da minha da minha pessoa e da minha vida?
O inverno irregular, cujas regras de aparecimento desconheço,
Mas que existe para mim em virtude da mesma fatalidade sublime,
Da mesma inevitável exterioridade a mim,
Que o calor da terra no alto verão
E o frio da terra no cimo do inverno.

Aceito por personalidade.
Nasci  sujeito como os outros a erros e a defeitos,
Mas nunca ao erro de querer saber demais,
Nunca ao erro de querer compreender só com a inteligência,
Nunca ao defeito de exigir do mundo
Que fosse qualquer cousa que não fosse o mundo.

ALBERTO CAEIRO, 24 DE OUTUBRO DE 1917

terça-feira, 23 de outubro de 2012

FAZ HOJE 81 ANOS



Chove. Que fiz eu da vida?
Fiz o que ela fez de mim...
De pensada, mal vivida...
Triste de quem pensa assim!

Numa angústia sem remédio
Tenho febre na alma, e, ao ser
Tenho saudade, entre o tédio,
Só do que nunca quis ter...

Quem eu pudera ter sido,
Que é dele? Entre ódios pequenos
De mim; 'stou em mim dividido.
Se ao menos chovesse menos!



FERNANDO PESSOA, 23 DE OUTUBRO DE 1931

segunda-feira, 22 de outubro de 2012

faz hoje 77 anos



PEDROUÇOS

Quando eu era pequeno não sabia
Que cresceria.
Pelo menos não o sentia.

Naquela idade o tempo não existe.
Cada dia é a mesma mesa
Com o mesmo quintal ao fundo;
Quando se sente tristeza
Está tristeza, mas não se está triste.

Eu era assim
E todas as crianças deste mundo
Assim foram antes de mim.

O quintal grande estava dividido
Por uma frágil grade, alta, de tiras
Cruzadas, de madeirinha,
Em horta e jardim.

Meu coração anda esquecido,
Mas não minha visão. De ela não tires
Tempo, esse quadro onde o feliz que eu fui
Dá-me uma felicidade ainda minha!

Inútil o teu curso flui
Para quem das lembranças se acarinha. 


FERNANDO PESSOA, 22 DE OUTUBRO DE 1935

domingo, 21 de outubro de 2012

FAZ HOJE 77 ANOS



Todas as cartas de amor são
Ridículas.
Não seriam cartas de amor se não fossem
Ridículas.

Também escrevi em meu tempo cartas de amor,
Como as outras,
Ridículas 

As cartas de amor, se há amor,
Têm de ser
Ridículas,

Mas, afinal,
Só as criaturas que nunca escreveram
Cartas de amor
É que são
Ridículas. 

Quem me dera no tempo em que escrevia
Sem dar por isso
Cartas de amor
Ridículas.

A verdade é que hoje
As minhas memórias
Dessas cartas de amor
É que são 
Ridículas.

(Todas as palavras esdrúxulas,
Como os sentimentos esdrúxulos,
São naturalmente
Ridículas.) 

ÁLVARO DE CAMPOS, 21 DE OUTUBRO DE 1935

sábado, 20 de outubro de 2012

FAZ HOJE 79 ANOS


Eu, vindo de onde não vim,
Perdi todos os caminhos...
Só como eu era uma Rosa
Coroaram-me de espinhos.

Deram-me o nome de ungido
A mim que era só Jesus...
"É em nós que o fogo reina"
Puseram na minha cruz.

Tive suplício entre dois
Que não eram quem mostravam.
Morri como eles morreram,
Morto, ainda me matavam...

Cinco pétalas que eu tinha
Em cinco chagas abriram
Com uma lança depois
Meu coração descobriram.

Do sangue e água nasceram
Dois modos de me entender...
Para uns fui água que bebam
Para outros sangue que ser.

Minha história não é escrita
Porque a escrita está errada.
"Deus é consciência", dizem
Ao ver a minha cruz alçada.

E quando no fim do mundo
Me vierem encontrar
A minha cruz será tudo
Mas eu é que hei-de ficar.

Das rosas dessa coroa
Que desejo fui eu só
A que fica nesta cruz
A dar vida e a fazer dó.

E essa cruz, que é toda a gente,
Ficará da cor da vida
Porque só meu sangue será
A madeira redimida.

E, viva, da cor do fogo,
Quando o sonho é (...)
Será o fogo que reina
E queima a cruz que o gerou.

E a água que dei terá ido
Pelo chão a se perder.
Meu sangue terá tingido
A cruz onde fui morrer.

FERNANDO PESSOA, 20 DE OUTUBRO DE 1933

sexta-feira, 19 de outubro de 2012

FAZ HOJE 100 ANOS


                     VISÃO


Minha alma fica em si. O exterior
É o que ela de comum com os outros tem;
O ponto onde se tocam e convém
As almas e os seus sonhos.

Tudo é ver. As ideias, o abstracto
Que há em mim é também visível,
Só que vê-lo parece não ser ver
Pensar é ver.

Quando não vejo e vejo Deus...
Vejo a sombra de Deus...Além de mim
Estou então... O individual é a minha 
Imagem.

Mas tudo, em sua essência, é  ideia... A cor
É ideia,
De modo que em tudo vejo Deus
Mundo translúcido de Deus.

FERNANDO PESSOA, 19 DE OUTUBRO DE 1912

quinta-feira, 18 de outubro de 2012

FAZ HOJE 78 ANOS



A reunião foi marcada
Para a véspera de nada.
Todos traziam segredos;
Os de alguns eram só medos,
Os de outros a vida errada
Ou a esperança perdida
A que chamamos a vida.

Nas ninguém apareceu.
Uns iam achar o céu,
Outros a cair no inferno
E outros, num ritmo mais seu,
Num caminho mais eterno.

Apareci eu, só eu;
E à sessão que não havia,
Presidi e nomeei-me
Secretário, e falei-me.
Entrei na ordem do dia.

Se isto aconteceu agora,
Ou fora de toda a hora
Que possa haver neste mundo,
Não sei, nem quero saber.
Sofro um descanso profundo
Da reunião por haver.

FERNANDO PESSOA, 18 DE OUTUBRO DE 1934

quarta-feira, 17 de outubro de 2012

FAZ HOJE 79 ANOS



Pobre criança, então julgavas
Que o amor é o que não há?
Todas as almas nascem escravas
Até daquilo que haverá.
Julgavas que, por onde andamos,
Crescem as ervas que pisamos,
E não que as ervas e os ramos
Nasceram por que a vida os dá.

Cuidavas que, porque querias,
A Sorte havia de o querer,
Que só porque tu amarias
O amor te havia de manter.
Não acontece neste mundo
Nada que vá até ao fundo
Da alma. (...)

Quantas vezes, pobre criança,
Terias rido dos que são
Malucos, dos que têm 'sperança
Em mais que o pobre coração.
Mas vês - não são mais iludidos
Que esses teus pobres maus sentidos
Que estão agora nos olvidos
Desta exterior imensidão.

E assim mataste o pobre ser
Que tinhas para estares viva.

Serei amado se o quiser,
Mas só por o poder querer
É que minha alma não o quer.

Tem outras faces esta vida
Além daquela em que o sol dá.
Muita coisa viva escondida
Que só quem não quer achará.
Pobre criança que vivias
Nas margens das ribeiras frias
Onde correm sem fim os dias
E o tempo sempre correrá!

Tudo é outro, nada é quem é.
Tudo que vemos ou sonhamos,
À luz do sonho ou da fé,
É outra cousa que pensamos.
Pobre criança, e tu pensaste,
Que te amariam, ou que amaste,
Que nada foste, e nada achaste
Salvo uma sombra que há dos ramos.


FERNANDO PESSOA, 17 DE OUTUBRO DE 1933

terça-feira, 16 de outubro de 2012

POEMA SEM DATA

Cruzou por mim, veio ter comigo numa rua da Baixa
Aquele homem mal vestido, pedinte por profissão que se lhe vê na cara,
Que simpatiza comigo e eu simpatizo com ele;
E reciprocamente, num gesto largo, transbordante, dei-lhe tudo quanto tinha
(Excepto, naturalmente, o que estava na algibeira onde trago mais dinheiro;
Não sou parvo nem romancista russo, aplicado,
E e romantismo sim, mas devagar...).

Sinto uma simpatia por essa gente toda,
Sobretudo quando não merece simpatia.
Sim, eu sou também vadio e pedinte,
 E sou-o também por minha culpa.
Ser vadio e pedinte não é ser vadio e pedinte:
É estar ao lado da escala social,
É não ser adaptável às normas da vida -
Não ser Juiz do Supremo, empregado certo, prostituta,
Não ser pobre a valer, operário explorado,
Não ser doente de uma doença incurável,
Não ser sedento de justiça, ou capitão de cavalaria,
Não ser, enfim, aquelas pessoas sociais dos novelistas
Que se fartam de letras porque têm razão para chorar lágrimas,
E se revoltam contra a vida social porque têm razão para isso supor.

Não: tudo menos ter razão!
Tudo menos importar-me com a humanidade!
Tudo menos ceder ao humanitarismo!
De que serve uma sensação se há uma razão exterior para ela? 

Sim, ser vadio e pedinte, como eu sou,
Não é ser vadio e pedinte, o que é corrente:
É ser isolado na alma. e isso é ser vadio,
E ter que pedir aos dias que passem, e nos deixem, e isso é que é ser pedinte.

Tudo o mais é estúpido como um Dostoievski ou um Gorki.
Tudo mais é ter fome ou não ter que vestir.
E, mesmo que isso aconteça, isso acontece a tanta gente
Que nem vale a pena ter pena a quem isso acontece.
Sou vadio e pedinte a valer, isto é, no sentido translato,
E estou-me rebolando numa grande caridade por mim.

Coitado do Álvaro de Campos!
Tão isolado na vida! Tão deprimido nas sensações!
Coitado dele, enfiado na poltrona da sua melancolia!
Coitado dele, que com lágrimas (autênticas) nos olhos,
Deu hoje, num gesto largo, liberal e moscovita,
Tudo quanto tinha na algibeira, onde tinha pouco, àquele
Pobre que não era pobre, que tinha olhos tristes por profissão.

Coitado do Álvaro de Campos, com quem ninguém se importa!
Coitado dele que tem tanta pena de si mesmo!
E, sim, coitado dele!
Mais coitado dele que de muitos que são vadios e vadiam,
Que são pedintes e pedem,
Porque a alma humana é um abismo!

Eu é que sei. Coitado dele!

Que bom poder-me revoltar num comício dentro da minha alma!
Mas até nem parvo sou!
Nem tenho a defesa de poder ter opiniões sociais.
Não tenho, mesmo, defesa nenhuma: sou lúcido.

Não me queiram converter a convicção: sou lúcido
Já disse: sou lúcido.
Nada de estéticas com coração: sou lúcido.
Merda! Sou lúcido.

ÁLVARO DE CAMPOS

segunda-feira, 15 de outubro de 2012

FAZ HOJE 82 ANOS



Tenho escrito mais versos que verdade.
Tenho escrito principalmente
Porque outros têm escrito.
Se nunca tivesse havido poetas no mundo,
Seria eu capaz de ser o primeiro?
Nunca!
Seria um indivíduo perfeitamente consentível,
Teria casa própria e moral.
Senhora Gertrudes!
Limpou mal este quarto:
Tire-me estas ideias de aqui!


ÁLVARO DE CAMPOS, 15 DE OUTUBRO DE 1930

domingo, 14 de outubro de 2012

FAZ HOJE 82 ANOS


Por quem foi que me trocaram
Quando estou a olhar para ti?
Pousa a tua mão na minha
E, sem me olhares, sorri.

Sorri do teu pensamento
Porque eu só quero pensar
Que é de mim que ele está feito
E que o tens para mo dar.

Depois aperta-me a mão
E viras os olhos a mim...
Por quem foi que me trocaram
Quando estás a olhar-me assim?

FERNANDO PESSOA, 14 DE OUTUBRO DE 1930