domingo, 31 de julho de 2011
FAZ HOJE 80 ANOS
Sereno aguarda o fim que pouco tarda.
Que é qualquer vida? Breves sóis e sono.
Quanto pensas emprega
Em não muito pensares.
Ao nauta o mar obscuro é a rota clara.
Tu, na confusa solidão da vida,
A ti mesmo te elege
(Não sabes outro) o porto.
RICARDO REIS, 31 DE JULHO DE 1931
sábado, 30 de julho de 2011
FAZ HOJE 97 ANOS
Cada coisa a seu tempo tem seu tempo.
Não florescem no inverno os arvoredos,
Nem pela primavera
Têm branco frio os campos.
À noite, que entra, não pertence, Lídia,
O mesmo ardor que o dia nos pedia.
Com mais sossego amemos
A nossa incerta vida.
À lareira, cansados não da obra
Mas porque a hora é a hora dos cansaços,
Não puxemos a voz
Acima de um segredo
E casuais, interrompidas sejam
Nossas palavras de reminiscência
(Não para mais nos serve
A negra ida do sol),
Pouco a pouco o passado recordemos
E as histórias contadas no passado
Agora duas vezes
Histórias, que nos falem
Das flores que na nossa infância ida
Com outra consciência nós colhíamos
E sob uma outra espécie
De olhar lançado ao mundo.
E assim, Lídia, à lareira, como estando,
Deuses lares, ali na eternidade,
Como quem compõe roupa
O outrora componhamos
Nesse desassossego que o descanso
Nos traz às vidas quando só pensamos
Naquilo que já fomos
E há noite lá fora.
RICARDO REIS, 30 DE JULHO DE 1914
sexta-feira, 29 de julho de 2011
FAZ HOJE 88 ANOS
Cada um cumpre o destino que lhe cumpre,
E deseja o destino que deseja;
Nem cumpre o que deseja,
Nem deseja o que cumpre.
Como as pedras na orla dos canteiros
O Fado nos dispões, e ali ficamos;
Que a Sorte que nos fez postos
Onde houvemos de sê-lo.
Não tenhamos melhor conhecimento
Do que nos coube que de que nos coube.
Cumpramos o que somos.
Nada mais nos é dado.
RICARDO REIS, 29 DE JULHO DE 1923
quinta-feira, 28 de julho de 2011
FAZ HOJE 76 ANOS
Através da radiofonia
A melancólica voz
De não sei que melodia,
Ou de quem a canta a sós
Ante um microfone morto
Como que chega ao porto
Quando chega até nós.
Quantos, como eu,
Sentem agora
A atracção de banalidade e céu
Dessa canção
Que foi marcada nos jornais para esta hora
Mas punge o coração.
Ah, nem há hora, nem há emissora.
Num aparelho surdo a que cantar
Que possa enganar
O que o coração chora,
Que possa evitar
Que se levante o véu
Do que se passa nesta hora
Entre a banalidade e o céu.
Que estúpida canção
É, palavra a palavra,
O que esse francês vem cantar
Da sua lavra.
Enchem-se-nos os olhos de lágrimas.
Por que não?
Mas não, não quero chorar.
Um poeta ter lágrimas
Perante um cantar!
Que vergonha para a poesia!
Mas o coração
Com o que quero nada quer,
E vai na esteira de essa voz e melodia
Sem eu saber.
FERNANDO PESSOA, 28 DE JULHO DE 1935
quarta-feira, 27 de julho de 2011
FAZ HOJE 86 ANOS
I
Que triste, à noite, no passar do vento,
O transvasar da imensa solidão
Para dentro do nosso coração,
Por sobre todo o nosso pensamento.
No sossego sem paz se ergue o lamento
Como da universal desolação,
E o mistério, e o abismo e a morte são
Sentinelas do nosso isolamento.
'Stamos sós com a treva e a voz do nada.
Tudo quanto perdemos mais perdemos.
De nós aos que se foram não há 'strada.
O vácuo encarna em nós, na vida; e os céus
São uma dúvida certa que vivemos.
Tudo é abismo e noite. Morreu Deus.
II
'Stou só. A atra distância, que infinita
A alma separa de outra, se alargou.
Em mim, porém, meu ser se unificou.
Sou um universo morto que medita.
Se estendo a mão na solidão aflita,
Nada há entre ela e aquilo que tocou.
Satélite de um astro que findou,
Rodeio o abismo, 'strela erma e maldita.
Não há porta no cárcere sem fim
Em que me vivo preso. Nunca houve
Porta neste meu ser que finda em mim.
Vivo até no passado a solidão.
Na erma noite agora o vento chove
E um novo nada enche-me o coração...
FERNANDO PESSOA, 27 DE JULHO DE 1925
terça-feira, 26 de julho de 2011
FAZ HOJE 81 ANOS
Dói-me quem sou. E em meio da emoção
Ergue a fronte de torre um pensamento.
É como se na imensa solidão
De uma alma a sós consigo, o coração
Tivesse cérebro e conhecimento.
Numa amargura artificial consisto,
Fiel a qualquer ideia que não sei,
Como um fingido cortesão me visto
Dos trajes majestosos em que existo
Para a presença artificial do rei.
Sim, tudo é sonhar quanto sou e quero.
Tudo das mão caídas se deixou.
Braços dispersos, desolado espero.
Mendigo pelo fim do desespero,
Que quis pedir esmola e não ousou.
FERNANDO PESSOA 26 DE JULHO DE 1930
segunda-feira, 25 de julho de 2011
FAZ HOJE 95 ANOS
Há uma vaga mágoa
No meu coração...
Como que um som de água
Suma solidão...
Um som ténue de água...
Memoro o que, morto,
Ainda vive em mim...
Memoro-o, absorto
Num sonho sem fim,
Estéril e absorto.
Será que me basta
Esta vida em vão?
Que nada se afasta
Da sua solidão...
Nem de mim me afasta?
Não sei. Sofro o acaso
Da mágoa em meu ser...
Cismo, e há em mim o ocaso
Do que quis viver -
Sempre só o ocaso.
FERNANDO PESSOA, 25 DE JULHO DE 1916
domingo, 24 de julho de 2011
FAZ HOJE 81 ANOS
Brisa sem ser da aurora,
Só por nascer o dia,
A um coração que chora
Não trazes alegria
Mas a dor vai-se embora
Dizes que se conhece
Pelo dia que vem
Que tudo passa e esquece
E que a manhã também.
Se um dia nasce a ‘sperança
Nasce dele também.
É como uma criança.
Talvez não traga o bem.
Mas a aurora não cansa.
Ah, enquanto há o momento
Em que inda não há nada,
Sossegue o pensamento
E a alma durma acordada
Sob o embalar do vento
Tão fresco sobre a face
E as pálpebras de sono,
Se isto nunca passasse!
Depois há o dia, o dono:
Este dia que nasce
FERNANDO PESSOA, 24 DE JULHO DE 1930
sábado, 23 de julho de 2011
FAZ HOJE 101 ANOS
IN ARTICULO MORTIS
Que nos importa que a lua morta tenha ou não tenha traços
Do antigo mundo que viveu rindo?
Que seja cinza o que era calor ao calor dos nossos braços?
De nada nos serve... Fechemos os olhos, cruzemos os braços.
E desesperemos, sorrindo.
A vida é pouco e a dor é muito. Ao luar e à noite esquecemos
O nosso ser de sob o sol;
E já que a corrente nos leva silente, abandonemos os remos;
E visto, o falar a acção nos lembrar, calemo-nos, escutemos;
Talvez cante o rouxinol.
E daí quem sabe na noite o que cabe? Da solidão infinda
Talvez raie um sol e um dia,
E à barca que erra... talvez uma terra lhe espere obscura a vinda.
Talvez não seja o rouxinol que cante. Esperemos ainda,
E talvez seja a cotovia.
FERNANDO PESSOA, 23 DE JULHO DE 1910
sexta-feira, 22 de julho de 2011
FAZ HOJE 97 ANOS
Tu, de quem o Sol é sombra,
De quem cadáver o mundo,
Meus passos guia, a que ensombra
O sentir-te ermo e profundo!
Presença anónima e ausente
De quem a alma é o véu,
A meus passos de inconsciente
Dá o consciente que é teu!
Para que, passadas eras
Do tempo, ou alma ou razão,
Meus sonhos sejam esferas
Meu pensamento visão.
FERNANDO PESSOA, 22 DE JULHO DE 1914
quinta-feira, 21 de julho de 2011
FAZ HOJE 77 ANOS
Não sei se é triste
Se é de alegrar
Saber que existe
Sob o luar
Poder sonhar.
Sei só que a lua
Nada me traz
Mas a aura sua
Na água que jaz
Feliz me faz.
Paira um encanto –
Não sei de quê…
E do meu pranto
Que ninguém vê
Fica uma fé.
FERNANDO PESSOA, 21 DE JULHO DE 1934
quarta-feira, 20 de julho de 2011
FAZ HOJE 98 ANOS
Ó praia de pescadores,
Neste pleno dia mole...
Acalmam todas as dores
Quando se estendem ao sol.
Procuro sereno o jeito
De receber toda a luz
E esta praia onde me deito
É quente e macia cruz.
Como uma vela ou uma rede
Ou numa vela deitado
E acalma em mim toda a sede
De me querer sossegado...
E ali p'ra além dos meus pés
Ruge o mar próximo e eterno...
Tenho toda a alma rés-vés
De um vago sorriso terno
Que envolve em oca bondade
O céu vazio que fito
Se relembro, é sem saudade...
E adormeço se medito...
Até que sob mim a areia
É mar e eu sinto embalar-me
O som bom da maré cheia
A trazer-me e a levar-me.
E barco do nulo sorvo
Com todo o corpo o saber
Que o sentir-me não é estorvo
A sentir ou nada ser.
E de tanto olhar o céu
Sinto-me ele - o sol me doura.
Tiro o ser eu como a um véu
E estou para fora da Hora...
FERNANDO PESSOA, 20 DE JULHO DE 1913
terça-feira, 19 de julho de 2011
FAZ HOJE 76 ANOS
Sim, um momento
Ainda passas
Pelo meu vago pensamento,
E lembrar-te seria um tormento
Se imaginar fosse desgraça.
Sim, nessa hora
Em que falámos mais a olhar
Do que a falar,
Resultou esta irónica demora
Que tenho agora ao te lembrar.
Apareceste
Em minha vida
Como uma coisa que estava lá fora.
Desapareceste.
Mais tarde soube da tua ida.
Contudo, contudo,
Conseguiste
Prender-me um pouco o coração.
É um coração triste
E não se entende com tudo
Nem tem jeito
Para se fazer amar
Ou para o imaginar,
Salvo quando
Teu olhar
Teimosamente brando
Me fazia saltar
O coração dentro do peito.
Onde ia eu?
Já me esquecia.
Sim, meu coração foi teu
Naquele dia,
Naquele dia ou noutro dia...
Nem se houvesse outra terra ou outro céu
Qualquer coisa aconteceria.
FERNANDO PESSOA 19 DE JULHO DE 1935
segunda-feira, 18 de julho de 2011
FAZ HOJE 90 ANOS
A noite é calma, o ar é grave,
Na sombra cai um luar vago...
Subtil, e sem-razão suave
Da vida estagna como um lago
Na sensação, e a alma esquece
Ao fim dos parques da emoção,
Ao som da brisa que estremece
As águas dessa solidão.
Nesta hora, como se entretecendo
De uma meada em mãos com sono
Que vão compondo e desfazendo
Em afagos desse abandono,
Com sensações de mão que as tece
A mão que as tece adorno a alma
E o gesto, com teço, esquece
E o fundo da alma não tem calma.
Outrora, ao pé dos balaústres
Vizinhos a se ver o mar
E a noite, sonhos vãos e ilustres
Deram futuro ao meu sonhar.
Hoje, amargo de só ficar-me
Daqueles sonhos tê-los tido
Vivo de inútil recordar-me
Qual fosse outro o eu vivido.
Outrora fui quem hoje me amo,
E não amava quem eu era.
Sem voz, oculto, por mim chamo.
Choveu na minha primavera.
A noite, sem saber de mim,
Com sua vaga brisa tece
Meadas de destino e fim
Em dedos em que a alma esquece.
Conheço o fundo ao gozo e à dor
Sem ter da dor e gozo havido
Mais que a sobra sem vulto ou cor,
E dos passos o coro e o ruído.
Ó noite, ó luar, ó brisa incerta,
Não me deis mais que eu nada ser.
Só me fiquei a janela aberta
Da vida, e a sinto sem saber.
FERNANDO PESSOA, 18 DE JULHO DE 1921
domingo, 17 de julho de 2011
FAZ HOJE 97 ANOS
Breve o o inverno virá com a sua branca
Nudez vestir os campos.
As lareiras serão as nossas pátrias
E os contos que contarmos
Assentados ao pé do seu calor
Valerão as canções
Com que outrora entre as verdes ervas rijas
Dizíamos ao sol
O ave atque vale triste e alegre
Solenes e carpindo.
Por ora o outono está connosco ainda.
Se ele nos não agrada
A memória do estio cortejemos
Com a esp'rança hiemal.
E entre essas dádivas memoradas
Rio em vales passemos.
RICARDO REIS, 17 DE JULHO DE 1914
sábado, 16 de julho de 2011
FAZ HOJE 77 ANOS
Tenho em mim como uma bruma
Que nada é nem contém
A saudade de coisa nenhuma,
O desejo de qualquer bem.
Sou envolvido por ela
Como por um nevoeiro
E vejo luzir a última estrela
Por cima da ponta do meu cinzeiro.
Fumei a vida. Que incerto
Tudo quanto vi ou li!
E todo o mundo é um grande livro aberto
Que em ignorada língua me sorri.
FERNANDO PESSOA, 16 DE JULHO DE 1934
sexta-feira, 15 de julho de 2011
FAZ HOJE 101 ANOS
FOLHA CAÍDA
Nasceu uma flor, amor,
No meu coração.
Murcha já de dor, amor,
Fria de ilusão.
Busquei inda assim, amor,
Pela vida real
Flor como a que em mim, amor,
Me era sem igual.
Não pude achar, amor,
- Tanto a procurei! -
E não posso amar, amor,
Porque não a achei.
FERNANDO PESSOA, 15 DE JULHO DE 1910
quinta-feira, 14 de julho de 2011
FAZ HOJE 77 ANOS
Do fundo do fim do mundo
Vieram me perguntar
Qual era o anseio fundo
Que me fazia chorar.
Eu disse: "É esse que os poetas
Têm tentado dizer
Em obras sempre incompletas
Em que puseram seu ser".
E assim com um gesto nobre
Respondi a quem não sei
Se me houve por rico ou pobre.
(...)
FERNANDO PESSOA, 14 DE JULHO DE 1934
Vieram me perguntar
Qual era o anseio fundo
Que me fazia chorar.
Eu disse: "É esse que os poetas
Têm tentado dizer
Em obras sempre incompletas
Em que puseram seu ser".
E assim com um gesto nobre
Respondi a quem não sei
Se me houve por rico ou pobre.
(...)
FERNANDO PESSOA, 14 DE JULHO DE 1934
quarta-feira, 13 de julho de 2011
FAZ HOJE 92 ANOS
Todo o passado me parece incrível.
Quem é a mim quem foi o que eu já fui?
Rio inconstante, sob meus olhos flui
Minha vida real e impossível.
Através de uma névoa eis-me insensível
Ao que vivi; o que já não se inclui
No que creio que sou, e sinto; e obstruí
Ver-me ver quem fui eu e hoje é invisível.
Cismo no que já fiz e me parece
Que incluo quem o fez mas não o sou.
Através da minha alma transparece
O que por mim viveu e se passou...
E um assombro decerto estremece
Em morto ser quem não ressuscitou.
FERNANDO PESSOA, 13 DE JULHO DE 1919
Quem é a mim quem foi o que eu já fui?
Rio inconstante, sob meus olhos flui
Minha vida real e impossível.
Através de uma névoa eis-me insensível
Ao que vivi; o que já não se inclui
No que creio que sou, e sinto; e obstruí
Ver-me ver quem fui eu e hoje é invisível.
Cismo no que já fiz e me parece
Que incluo quem o fez mas não o sou.
Através da minha alma transparece
O que por mim viveu e se passou...
E um assombro decerto estremece
Em morto ser quem não ressuscitou.
FERNANDO PESSOA, 13 DE JULHO DE 1919
terça-feira, 12 de julho de 2011
FAZ HOJE 99 ANOS
Dorme enquanto eu velo...
Deixa-me sonhar...
Quero-te para sonho,
Não para te amar.
A tua carne calma
É fria em meu querer.
Os meus desejos são cansaços.
Não quero ter nos braços
Meu sonho do teu ser.
Dorme, dorme, dorme,
Vaga em teu sorrir...
Sonho-te tão atento
Que o sonho é encantamento
E eu sonho sem sentir.
FERNANDO PESSOA, 12 DE JULHO DE 1912
Deixa-me sonhar...
Quero-te para sonho,
Não para te amar.
A tua carne calma
É fria em meu querer.
Os meus desejos são cansaços.
Não quero ter nos braços
Meu sonho do teu ser.
Dorme, dorme, dorme,
Vaga em teu sorrir...
Sonho-te tão atento
Que o sonho é encantamento
E eu sonho sem sentir.
FERNANDO PESSOA, 12 DE JULHO DE 1912
segunda-feira, 11 de julho de 2011
FAZ HOJE 97 ANOS
Quero, Neera, que os teu lábios laves
Na piscina tranquila
Para que contra a tua febre e a triste
Dor que pões em viver,
Sintas a fresca e calma natureza
Da água, e reconheças
Que não têm penas nem desassossegos
As ninfas das nascentes
Nem mais soluços do que o som da água
Alegre e natural.
As nossos dores, não, Neera, vêm
Das cousas naturais.
Datam da alma e do infeliz ofício
Da vida com os homens.
Aprende pois, ó aprendiza jovem
Das clássicas delícias,
A não pôr mais tristeza que um suspiro
No modo como vives,
Nascente pálida, deitando a água
Da tua vã beleza
Sobre a estiolada fé das nossas mãos
Medrosas de ter gozo
Demasiado preso à desconfiança
Que vem da tua sobra,
Não para essa vã mnemónica
Do futuro fatal.
Cantos, risos e flores alumiem
Nosso mortal destino,
Para o ermo ocultar fundo, nocturno
De nosso pensamento,
Curvado, já em vida sob a ideia
Do plutónico jugo,
Cônscio já da lívida 'sperança
Do caos redivivo.
RICARDO REIS, 11 DE JULHO DE 1914
Na piscina tranquila
Para que contra a tua febre e a triste
Dor que pões em viver,
Sintas a fresca e calma natureza
Da água, e reconheças
Que não têm penas nem desassossegos
As ninfas das nascentes
Nem mais soluços do que o som da água
Alegre e natural.
As nossos dores, não, Neera, vêm
Das cousas naturais.
Datam da alma e do infeliz ofício
Da vida com os homens.
Aprende pois, ó aprendiza jovem
Das clássicas delícias,
A não pôr mais tristeza que um suspiro
No modo como vives,
Nascente pálida, deitando a água
Da tua vã beleza
Sobre a estiolada fé das nossas mãos
Medrosas de ter gozo
Demasiado preso à desconfiança
Que vem da tua sobra,
Não para essa vã mnemónica
Do futuro fatal.
Cantos, risos e flores alumiem
Nosso mortal destino,
Para o ermo ocultar fundo, nocturno
De nosso pensamento,
Curvado, já em vida sob a ideia
Do plutónico jugo,
Cônscio já da lívida 'sperança
Do caos redivivo.
RICARDO REIS, 11 DE JULHO DE 1914
domingo, 10 de julho de 2011
FAZ HOJE 81 ANOS
Passei toda a noite, sem saber dormir, vendo sem espaço a figura dela
E vendo-a sempre de maneiras diferentes do que a encontro a ela.
Faço pensamentos com a recordação do que ela é quando me fala,
E em cada pensamento ela varia de acordo com a sua semelhança.
Amar é pensar.
E eu quase que me esqueço de sentir só de pensar nela.
Não sei bem o que quero, mesmo dela, e eu não penso senão nela.
Tenho uma grande distracção animada.
Quando desejo encontrá-la,
Quase que prefiro não a encontrar,
Para não ter de a deixar depois.
E prefiro pensar dela, porque dela como é tenho qualquer medo.
Não sei bem o que quero, nem quero saber o que quero.
Quero só pensar nela.
Não peço nada a ninguém, nem a ela, senão pensar.
ALBERTO CAEIRO, 10 DE JULHO DE 1930
E vendo-a sempre de maneiras diferentes do que a encontro a ela.
Faço pensamentos com a recordação do que ela é quando me fala,
E em cada pensamento ela varia de acordo com a sua semelhança.
Amar é pensar.
E eu quase que me esqueço de sentir só de pensar nela.
Não sei bem o que quero, mesmo dela, e eu não penso senão nela.
Tenho uma grande distracção animada.
Quando desejo encontrá-la,
Quase que prefiro não a encontrar,
Para não ter de a deixar depois.
E prefiro pensar dela, porque dela como é tenho qualquer medo.
Não sei bem o que quero, nem quero saber o que quero.
Quero só pensar nela.
Não peço nada a ninguém, nem a ela, senão pensar.
ALBERTO CAEIRO, 10 DE JULHO DE 1930
sábado, 9 de julho de 2011
FAZ HOJE 81 ANOSP
Meu pobre amigo, não tenho compaixão para te dar.
A compaixão custa, sobretudo sincera, e em dias de chuva.
Quer dizer: custa sentir em dias de chuva.
Sintamos a chuva e deixemos a psicologia para outra espécie de céu.
Com que então problema sexual?
Mas isso depois dos quinze anos é uma indecência.
Preocupação com o sexo oposto (suponhamos) e a sua psicologia.
Mas isso é estúpido, filho.
O sexo oposto existe para ser procurado e não para ser compreendido.
O problema existe para estar resolvido e não para preocupar.
Preocupar-se é ser impotente.
E você devia revelar-se menos.
"La Colere de Samson", conhece?
"La femme, enfant malade et douze foi impure!"
Mas não é nada disso.
Não me mace, nem me obrigue a ter pena!
Olhe: tudo é literatura.
Vem-nos tudo de fora, como a chuva.
A maneira? Se nós somos páginas aplicadas de romance?
Traduções, meu filho.
Você sabe porque está tão triste? É por causa do Platão,
Que você nunca leu.
O seu soneto de Petrarca, que você desconhece, saui-lhe errado.
E assim é a vida.
Arregace as mangas da camisa civilizada
E cave terras exactas!
Mais vale isso que ter a alma dos outros.
Não somos senão fantasmas de fantasmas,
E a paisagem hoje ajuda muito pouco.
Tudo é geograficamente exterior.
A chuva cai por uma lei natural
E a humidade ama porque ouviu falar de amor.
ÁLVARO DE CAMPOS, 9 DE JULHO DE 1930
A compaixão custa, sobretudo sincera, e em dias de chuva.
Quer dizer: custa sentir em dias de chuva.
Sintamos a chuva e deixemos a psicologia para outra espécie de céu.
Com que então problema sexual?
Mas isso depois dos quinze anos é uma indecência.
Preocupação com o sexo oposto (suponhamos) e a sua psicologia.
Mas isso é estúpido, filho.
O sexo oposto existe para ser procurado e não para ser compreendido.
O problema existe para estar resolvido e não para preocupar.
Preocupar-se é ser impotente.
E você devia revelar-se menos.
"La Colere de Samson", conhece?
"La femme, enfant malade et douze foi impure!"
Mas não é nada disso.
Não me mace, nem me obrigue a ter pena!
Olhe: tudo é literatura.
Vem-nos tudo de fora, como a chuva.
A maneira? Se nós somos páginas aplicadas de romance?
Traduções, meu filho.
Você sabe porque está tão triste? É por causa do Platão,
Que você nunca leu.
O seu soneto de Petrarca, que você desconhece, saui-lhe errado.
E assim é a vida.
Arregace as mangas da camisa civilizada
E cave terras exactas!
Mais vale isso que ter a alma dos outros.
Não somos senão fantasmas de fantasmas,
E a paisagem hoje ajuda muito pouco.
Tudo é geograficamente exterior.
A chuva cai por uma lei natural
E a humidade ama porque ouviu falar de amor.
ÁLVARO DE CAMPOS, 9 DE JULHO DE 1930
sexta-feira, 8 de julho de 2011
FAZ HOJE 78 ANOS
EROS E PSIQUE
... e assim vede, meu Irmão, que as verdades
que vos foram dadas no Grau de Neófito, e
aquelas que vos foram dadas no Grau de Adepto
Menor, são, ainda que opostas, a mesma verdade.
Do Ritual do Grau de Mestre do Átrio
na Ordem Templária de Portugal
Conta a lenda que dormia
Uma Princesa encantada
A quem só despertaria
Um Infanta, que viria
De além do muro da estrada.
Ele tinha que, tentado,
Vencer o mal e o bem,
Antes que, já libertado,
Deixasse o caminho errado
Por o que à Princesa vem.
A Princesa Adormecida,
Se espera, dormindo espera.
Sonha em morte a sua vida,
E orna-lhe a fronte esquecida,
Verde, uma grinalda de hera.
Longe o Infante, esforçado,
Sem saber que intuito tem,
Rompe o caminho fadado.
Ele dela é ignorado.
Ela para ele é ninguém.
Mas cada um cumpre o Destino -
Ela dormindo encantada
Ele buscando-a sem tino
Pelo processo divino
Que faz existir a estrada.
E, se bem que seja obscuro
Tudo pela estrada fora,
E falso, ele vem seguro,
E, vencendo estrada e muro,
Chega onde em sono ela mora.
E, inda tonto do que houvera,
À cabeça, em maresia,
Ergue a mão, e encontra hera,
E vê que ele mesmo era
A Princesa que dormia.
FERNANDO PESSOA, 8 DE JULHO DE 1933
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