domingo, 31 de julho de 2016

FAZ HOJE 81 ANOS




O REI

O rei, cuja coroa de oiro é luz
Fita do alto trono os seus mesquinhos.
Ao meu Rei, coroaram-n'O de espinhos
E por trono lhe deram uma cruz.

O olhar fito do Rei a si conduz
Os olhares ansiosos e sozinhos.
Mas mais me fitam, e mortas sem carinhos,
Essas pálpebras mortas de Jesus.

O Rei fala, e o seu gesto tudo preenche,
O som da sua voz tudo transmuda.
Meu Rei morto tem mais que majestade:
Diz-me a verdade aquela boca muda,
E essas mãos presas dão-me a Liberdade.

FERNANDO PESSOA, 31 DE JULHO DE 1935


sábado, 30 de julho de 2016

FAZ HOJE 102 ANOS



Cada coisa a seu tempo tem seu tempo.
Não florescem no inverno os arvoredos,
Nem pela primavera
Têm branco frio os campos.
À noite, que entra, não pertence, Lídia,
O mesmo ardor que o dia nos pedia.
Com mais sossego amemos
A nossa incerta vida.
À lareira, cansados não da obra
Mas porque a hora é a hora dos cansaços,
Não puxemos a voz
Acima de um segredo
E casuais, interrompidas sejam
Nossas palavras de reminiscência
(Não para mais nos serve
A negra ida do sol),
Pouco a pouco o passado recordemos
E as histórias contadas no passado
Agora duas vezes
Histórias, que nos falem
Das flores que na nossa infância ida
Com outra consciência nós colhíamos
E sob uma outra espécie
De olhar lançado ao mundo.
E assim, Lídia, à lareira, como estando,
Deuses lares, ali na eternidade,
Como quem compõe roupa
O outrora componhamos
Nesse desassossego que o descanso
Nos traz às vidas quando só pensamos
Naquilo que já fomos
E há noite lá fora.

RICARDO REIS, 30 DE JULHO DE 1914


sexta-feira, 29 de julho de 2016

FAZ HOJE 92 ANOS




O ANDAIME

O tempo que eu hei sonhado
Quantos anos foi de vida!
Ah, quanto do meu passado
Foi só a vida mentida
De um futuro imaginado!

Aqui à beira do rio
Sossego sem ter razão.
Este seu correr vazio
Figura, anónimo e frio,
A vida vivida em vão.

A 'sprança que pouco alcança!
Que desejo vale o ensejo?
E uma bola de criança
Sobe mais que a minha 'sprança
Rola mais que o meu desejo.

Ondas do rio, tão leves
Que não sois ondas sequer,
Horas, dias, anos, breves
Passam - verduras ou neves
Que o mesmo sol faz morrer.

Gastei tudo que não tinha.
Sou mais velho do que sou.
A ilusão, que me mantinha,
Só no palco era rainha:
Despiu-se, e o reino acabou.

Leve som das águas lentas,
Gulosas da margem ida,
Que lembranças sonolentas
De esperanças nevoentas!
Que sonhos o sonho e a vida!

Que fiz de mim? Encontrei-me
Quando estava já perdido.
Impaciente deixei-me
Como a um louco que teime
No que lhe foi desmentido.

Som morto das águas mansas
Que correm por ter que ser,
Leva não só as lembranças
Mas as mortas esperanças -
Mortas, porque hão-de morrer.

Sou já o morto futuro.
Só um sonho me liga a mim -
O sonho atrasado e obscuro
Do que eu devera ser - muro
Do meu deserto jardim.

Ondas passadas, levai-me
Para o olvido do mar!
Ao que não serei legai-me,
Que cerquei com um andaime
A casa por fabricar.

FERNANDO PESSOA, 29 DE JULHO DE 1924


quinta-feira, 28 de julho de 2016

FAZ HOJE 81 ANOS



A OUTRA

Amamos sempre no que temos
O que não temos quando amamos.
O barco pára, largo os remos
E, um a outro, as mãos nos damos.
A quem dou as mãos?
À Outra.

Teus beijos são mel de boca,
São os que sempre pensei dar,
E agora a minha boca toca
A boca que eu sonhei beijar.
De quem é a boca?
Da Outra.

Os remos já caíram na água,
O barco faz o que a água quer.
Meus braços vingam minha mágoa
No abraço que enfim podemos ter.
Quem abraço?
A Outra.

Bem sei, és bela, és quem desejo...
Não deixa a vida que eu deseje
Mais que o que pode ser teu beijo
E poder ser eu que te beije.
Beijo, e em quem penso?
Na Outra.

Os remos vão perdidos já,
O barco vai não sei para onde.
Que fresco o teu sorriso está,
Ah, meu amor, e o que ele esconde!
Que é do sorriso?
Da Outra.

Ah, talvez mortos ambos nós,
Num outro rio sem lugar
Em outro barco outra vez sós
Poderemos recomeçar.
Que talvez sejas
A Outra.

Mas não, nem onde essa paisagem
É sob eterna luz eterna
Te acharei mais que alguém em viagem
Que amei com ansiedade terna
Por ser parecida
Com a Outra.

Ah, por ora, idos remos e rumo,
Dá-me as mãos, a boca, teu ser.
Façamos desta hora um resumo
Do que não poderemos ter.
Nesta hora, a única,
Sê a Outra!

FERNANDO PESSOA, 28 DE JULHO DE 1935


quarta-feira, 27 de julho de 2016

FAZ HOJE 85 ANOS




No céu da noite que começa
Nuvens de um vago negro brando
Numa ramagem pouco espessa
Vão no ocidente tresmalhando.

Aos sonhos que não sei me entrego
Sem nada procurar sentir
E estou em mim como em sossego,
Pra sono falta-me dormir.

Deixei atrás nas horas ralas
Caídas uma outra ilusão,
Não volto atrás a procurá-las,
Já estão formigas onde estão.

FERNANDO PESSOA, 27 DE JULHO DE 1931


terça-feira, 26 de julho de 2016

FAZ HOJE 121 ANOS



À minha querida Mamã

Ó terras de Portugal
Ò terras onde eu nasci
Por muito que goste delas
Inda gosto mais de ti.

FERNANDO PESSOA, 26 DE JULHO DE 1895


segunda-feira, 25 de julho de 2016

FAZ HOJE 100 ANOS



Há uma vaga mágoa
No meu coração...
Como que um som de água
Suma solidão...
Um som ténue de água...

Memoro o que, morto,
Ainda vive em mim...
Memoro-o, absorto
Num sonho sem fim,
Estéril e absorto.

Será que me basta
Esta vida em vão?
Que nada se afasta
Da sua solidão...
Nem de mim me afasta?

Não sei. Sofro o acaso
Da mágoa em meu ser...
Cismo, e há em mim o ocaso
Do que quis viver -
Sempre só o ocaso.

FERNANDO PESSOA, 25 DE JULHO DE 1916


domingo, 24 de julho de 2016

FAZ HOJE 95 ANOS




Não é o lago o que no lago é belo;
O azul do céu, sem a beleza, é só
Azul, e não encanto. Só de eu vê-lo
Não tira o horizonte o que me encanta
Eu sei que a flor e a árvore são pó,
Mas não o sinto (...)

Que cousa alheia interior às cousas
Assim as transfigura e não altera?
Que milagre transforma o pão em rosas
Da útil terra em graça e perfeição.
Que sentimos perfeito neste vão
(...)

Ó na noite das cousas existirem
Luar de serem belas, no nocturno
Brilhos apenas, (...)

Há um lago pequeno e abandonado
Na planície deserta, e ao sol poente
Encontro-o, e vejo-o todo mergulhado
No fulgor da beleza que o céu todo
Derrama sobre o seu (...) parado
Não sei de que misterioso modo.

E uma súbita angústia da beleza,
Um súbito prazer feito de dor
Porque seja de mais à natureza
A maravilha de viver sentindo
Um novo ser em forma e cousa e cor
E na % a beleza.


FERNANDO PESSOA, 24 DE JULHO DE 1921



sábado, 23 de julho de 2016

FAZ HOJE 81 ANOS



Começa a ir ser dia.
O céu negro começa,
Numa menor negrura
Da sua noite escura,
A ter uma cor fria
Onde a negrura cessa.

Um negro azul cinzento
Emerge vagamente
De onde o Oriente dorme
Seu tardo sono informe,
E há um frio sem vento
Que se ouve e mal se sente.

Mas eu, o mal dormido,
Não sinto noite ou frio,
Nem sinto vir o dia
Da solidão vazia...
Só sinto o indefinido
Do coração vazio.

Em vão o dia chega
A quem não dorme, a quem
Não tem que ter razão
Dentro do coração,
Que quando vive nega
E quando ama não tem.

Em vão, em vão, e o céu
Azula-se de verde
Acinzentadamente.
Que é que a minha alma sente?
Nem isto, não, nem eu,
Na noite que se perde.

FERNANDO PESSOA, 23 DE JULHO DE 1935


sexta-feira, 22 de julho de 2016

FAZ HOJE 91 ANOS




Que triste, à noite, no passar do vento,
O transvasar da imensa solidão
Para dentro do nosso coração,
Por sobre todo o nosso pensamento.

No sossego sem paz se ergue o lamento
Como de universal desolação,
E o mistério, e o abismo e a morte são
Sentinelas do nosso isolamento.

"Stamos sós com a treva e a voz do nada.
Tudo quanto perdemos mais perdemos.
De nós aos que se foram não há "strada.

O vácuo incarna em nós, na vida; e os céus
São uma dúvida certa que vivemos.
Tudo é abismo e noite. Morreu Deus.

II

"Stou só. A atra distância, que infinita
A alma separa de outra, se alargou.
Em mim, porém, meu ser se unificou.
Sou um universo morto que medita.

Se estendo a mão na solidão aflita,
Nada há entre ela e aquilo que tocou.
Satélite de um astro que findou,
Rodeio o abismo, "strela erma e maldita.

Não há porta no cárcere sem fim
Em que me vivo preso. Nunca houve
Porta neste meu ser que finda em mim.

Vivo até no passado a solidão.
Na erma noite agora o vento chove
E um novo nada enche-me o coração...

III

Evoco em vão lembranças comovidas -
Quadros, afectos, rostos e ilusões
São pó - pó frio, cinza sem visões,
E são vidas ou cousas já vividas.

Quê? Até do passado sinto vivas
As cousas que fui eu. Que solidões
Me sinto!

E, sem orgulho de ser todo o Inferno
E vivo em mim a angústia insuperável
Do ermo que se sente vácuo e eterno.

FERNANDO PESSOA, 22 DE JULHO DE 1925


quinta-feira, 21 de julho de 2016

FAZ HOJE 82 ANOS




Não sei se é triste
Se é de alegrar
Saber que existe
Sob o luar
Poder sonhar.

Sei só que a lua
Nada me traz
Mas a aura sua
Na água que jaz
Feliz me faz.

Paira um encanto -
Não sei de quê...
E do meu pranto
Que ninguém vê
Fica uma fé.

FERNANDO PESSOA, 21 DE JULHO DE 1934


quarta-feira, 20 de julho de 2016

FAZ HOJE 86 ANOS




Se sou alegre ou sou triste?...
Se sou alegre ou sou triste?...
Francamente, não o sei.
A tristeza em que consiste?
Da alegria o que farei?

Não sou alegre nem triste.
Verdade, não sei que sou.
Sou qualquer alma que existe
E sinto o que Deus fadou.

Afinal, alegre ou triste?
Pensar nunca tem bom fim...
Minha tristeza consiste
Em não saber bem de mim...
Mas a alegria é assim...


FERNANDO PESSOA, 20 DE JULHO DE 1930


terça-feira, 19 de julho de 2016

FAZ HOJE 81 ANOS



Sim, um momento
Ainda passas
Pelo meu vago pensamento,
E lembrar-te seria um tormento
Se imaginar fosse desgraça.

Sim, nessa hora
Em que falámos mais a olhar
Do que a falar,
Resultou esta irónica demora
Que tenho agora ao te lembrar.

Apareceste
Em minha vida
Como uma coisa que estava lá fora.
Desapareceste.
Mais tarde soube da tua ida.

Contudo, contudo,
Conseguiste
Prender-me um pouco o coração.
É um coração triste
E não se entende com tudo
Nem tem jeito
Para se fazer amar
Ou para o imaginar,
Salvo quando
Teu olhar
Teimosamente brando
Me fazia saltar
O coração dentro do peito.

Onde ia eu?
Já me esquecia.
Sim, meu coração foi teu
Naquele dia,
Naquele dia ou noutro dia...
Nem se houvesse outra terra ou outro céu
Qualquer coisa aconteceria.

FERNANDO PESSOA, 19 DE JULHO DE 1935


segunda-feira, 18 de julho de 2016

FAZ HOJE 95 ANOS




A noite é calma, o ar é grave,
Na sombra cai um luar vago...
Subtil, e sem-razão suave
Da vida estagna como um lago
Na sensação, e a alma esquece
Ao fim dos parques da emoção,
Ao som da brisa que estremece
As águas dessa solidão.

Nesta hora, como se entretecendo
De uma meada em mãos com sono
Que vão compondo e desfazendo
Em afagos desse abandono,
Com sensações de mão que as tece
A mão que as tece adorno a alma
E o gesto, com teço, esquece
E o fundo da alma não tem calma.

Outrora, ao pé dos balaústres
Vizinhos a se ver o mar
E a noite, sonhos vãos e ilustres
Deram futuro ao meu sonhar.
Hoje, amargo de só ficar-me
Daqueles sonhos tê-los tido
Vivo de inútil recordar-me
Qual fosse outro o eu vivido.

Outrora fui quem hoje me amo,
E não amava quem eu era.
Sem voz, oculto, por mim chamo.
Choveu na minha primavera.
A noite, sem saber de mim,
Com sua vaga brisa tece
Meadas de destino e fim
Em dedos em que a alma esquece.

Conheço o fundo ao gozo e à dor
Sem ter da dor e gozo havido
Mais que a sobra sem vulto ou cor,
E dos passos o coro e o ruído.
Ó noite, ó luar, ó brisa incerta,
Não me deis mais que eu nada ser.
Só me fiquei a janela aberta
Da vida, e a sinto sem saber.

FERNANDO PESSOA, 18 DE JULHO DE 1921


domingo, 17 de julho de 2016

FAZ HOJE 102 ANOS




Não consentem os deuses mais que a vida.
Por isso, Lídia, duradouramente
Façamos-lhe a vontade
Ao sol e entre as flores.
Camaleões pousados na Natura
Tomemos sua calma e alegria
Por cor da nossa vida,
Por um jeito do corpo.
Como vidros às luzes transparentes
E deixando cair a chuva triste,
Só mornos ao sol quente;
E reflectindo um pouco.

RICARDO REIS, 17 DE JULHO DE 1914


sábado, 16 de julho de 2016

FAZ HOJE 82 ANOS




Tenho em mim como uma bruma
Que nada é nem contém
A saudade de coisa nenhuma,
O desejo de qualquer bem.

Sou envolvido por ela
Como por um nevoeiro
E vejo luzir a última estrela
Por cima da ponta do meu cinzeiro.

Fumei a vida. Que incerto
Tudo quanto vi ou li!
E todo o mundo é um grande livro aberto
Que em ignorada língua me sorri.

FERNANDO PESSOA, 16 DE JULHO DE 1934