quarta-feira, 31 de agosto de 2011

FAZ HOJE 96 ANOS





GLÁDIO


A sombra de todos os luares
Nossa tristeza escureceu...
Ergue-te, gládio
E acontece-te no céu!


Com tua vinda venha Deus.
A Pátria em dor chora por ti.
Enche a manhã dos vagos céus
Do teu advento que sorri.


No teu cavalo branco vindo
Tua divina lenda traz
Realizada no advindo
Silêncio que nos quebra e traz


Tristes, doloridos, sobre a Hora
Que se ergue como um cadafalso
E ao pé dela a nossa dor chora
Em choro lento e cego e falso


FERNANDO PESSOA, 31 DE AGOSTO DE 1915







terça-feira, 30 de agosto de 2011

FAZ HOJE 78 ANOS





Não sei se é sonho, se realidade,
Se uma mistura de sonho e vida,
Aquela terra de suavidade
Que na ilha extrema do sul se olvida.
É o que ansiamos. Ali, ali
A vida é jovem e o amor sorri.


Talvez palmares inexistentes,
Álea longínquas sem poder ser,
Sombra ou sossego dêem aos crentes
De que essa terra se pode ter.
Felizes, nós? Ah, talvez, talvez,
Naquela terra, daquela vez.


Mas já sonhada se desvirtua,
Só de pensá-la cansou pensar,
Sob os palmares, à luz da lua.
Sente-se o frio de haver luar.
Nessa terra, também, também
O mal não cessa, não dura o bem.


Não é com ilhas do fim do mundo,
Nem com palmares de sonho ou não,
Que cura a alma seu mal profundo,
Que o bem nos entra no coração.
É em nós que é tudo. É ali, ali,
Que a vida é jovem e o amor sorri.


FERNANDO PESSOA, 30 DE AGOSTO DE 1933

segunda-feira, 29 de agosto de 2011

FAZ HOJE 82 ANOS





DILUENTE


A vizinha do número catorze ria hoje da porta
De onde há um mês saiu o enterro do filho pequeno.
Ria naturalmente com a alma na cara.
Está certo: é a vida.
 A dor não dura porque a dor não dura.
Está certo.
Repito: está certo.
Mas o meu coração não está certo.
O meu coração romântico faz enigmas do egoísmo
 da vida.


Cá está a lição, ó alma da gente!
Se a mão esquece o filho que saiu dela e morreu,
Quem se vai dar ao trabalho de se lembrar de mim?
Estou só no mundo, como um pião de cair.
Posso morrer como o orvalho seca
Por uma arte natural da natureza solar.
Posso morrer à vontade da deslembrança,
Posso morrer como ninguém...
Mas isto dói,
Isto é indecente para quem tem coração
Isto...
Sim, isto fica-me nas goelas como uma sanduíche de lágrimas...
Glória? Amor?O anseio de uma alma humana?
Apoteose às avessas...
Dêem-me Água de Vidago que eu quero esquecer a vida!


ÁLVARO DE CAMPO, 29 DE AGOSTO DE 1929



domingo, 28 de agosto de 2011

FAZ HOJE 84 ANOS




Não venhas sentar-te à minha frente, nem ao meu lado;
Não venhas falar, nem sorrir.
Estou cansado de tudo, estou cansado,
Quero só dormir.


Dormir até acordado, sonhando
Ou até sem sonhar,
Mas envolto num vago abandono brando
A não ter que pensar


Nunca soube querer, nunca soube sentir, até
Pensar não foi certo em mim.
Deitei fora entre urtigas o que era minha fé,
Escrevi numa página em branco, "Fim".


As princesas incógnitas ficaram desconhecidas,
Os tronos prometidos não tiveram carpinteiro,
Acumulei em mim um milhão difuso de vidas,
Mas nunca encontrei parceiro.


Por isso, se vieres, não te sentes ao meu lado, nem fales.
Só quero dormir, uma morte que seja
Uma coisa que me não rale nem com que tu te rales -
Que ninguém deseja nem não deseja.


Pus o o meu Deus no prego. Embrulhei em papel pardo
As esperanças e as ambições que tive,
E hoje sou apenas um suicídio tardo,
Um desejo de dormir que ainda vive.


Mas dormir a valer, sem dignificação nenhuma,
Como um barco abandonado,
Que naufraga sozinho entre as trevas e a bruma
Sem lhe saber o passado.


E o comandante do navio que segue deveras
Entrevê na distância do mar
O fim do último representante das galeras,
Que não sabia nadar. 


FERNANDO PESSOA, 28 DE AGOSTO, DE 1927

sábado, 27 de agosto de 2011

FAZ HOJE 78 ANOS





Dá-me a verdade: dou-te a vida.
A vida esquece como a água passa,
E é coisa morta a coisa que é esquecida.
Dá-me a verdade!
Como o que nunca foi, a vida esvoaça.


Ter o que é certo nas incertas mãos!
Saber bem o que nunca pode ser!
Tudo isto nos faz ermos e irmãos
No nada que nós somos.
Dá-me poder sentir, saber querer!


Instante inútil entre ser e estar,
Momento vácuo entre sonhar ou não,
Tudo isto pode ser e não ficar.
Dá-me a verdade!
Mas deixa-me a mentira no coração!


FERNANDO PESSOA, 27 DE AGOSTO DE 1933

sexta-feira, 26 de agosto de 2011

FAZ HOJE 81 ANOS





Tenho pena e não respondo.
Mas não tenho culpa enfim
De que em mim não correspondo
Ao outro que amaste em mim.


Cada qual é muita gente.
Por mim sou quem me penso,
Para outros - cada um sente
O que julga, e é um erro imenso.


Ah, deixem-me sossegar.
Nem me sonhem nem me outrem.
Se eu não me quero encontrar,
Quererei que os outros me encontrem?


FERNANDO PESSOA, 26 DE AGOSTO DE 1930

quinta-feira, 25 de agosto de 2011

FAZ HOJE 77 ANOS





Estamos sempre na encruzilhada.
Cada dia é vários caminhos
Possíveis. Cada hora é mais que uma estrada.
Nós, os sozinhos
De nada,


Nem escolhemos, nem queremos:
Vamos...
E, seja a via pelo areal que vemos
Ou a floresta pela qual andamos,
Vamos para onde não sabemos,
E não sabemos onde estamos.


E a cada hora, a cada hora,
Há que virar para a direita ou esquerda
Segundo uma lei que se ignora
Ou um impulso cujo instinto se não herda.


Sempre tantos caminhos!
E nós, sem tempo para os escolher,
Apressados, ignaros e sozinhos,
Tomamos o que tem de ser.


Se é bom, se é mau o para onde ir,
Ninguém o sabe ou saberá...
Tudo é não saber e seguir:
O resto Deus dará, ou não dará.


FERNANDO PESSOA, 25 DE AGOSTO DE 1934

quarta-feira, 24 de agosto de 2011

FAZ HOJE 81 ANOS




Vem do fundo do campo, da hora,
E do modo triste como ouço,
Uma voz que canta, e se demora.
Escuto alto, mas não posso

Distinguir o que diz; é música só.
Feita de coração, sem dizer:
Murmúrio de quem embala, com um vago dó
De o menino ter de crescer.

Melodia triste sem pranto,
Grácil, antiga, feliz
Manhã de sentir a alma como um canto
De D. Diniz.

FERNANDO PESSOA, 24 DE AGOSTO DE 1930

terça-feira, 23 de agosto de 2011

FAZ HOJE 77 ANOS





Não digas nada!
Não, nem a verdade!
Há tanta suavidade
Em nada se dizer
Em tudo se entender -
Tudo metade
De sentir e de ser...
Não digas nada!
Deixa esquecer.


Talvez que amanhã
Em outra paisagem
Digas que foi vã
Toda esta viagem
Até onde quis
Ver quem me agrada...
Mas ali fui feliz...
Não digas nada.


FERNANDO PESSOA, 23 DE AGOSTO DE 1934

segunda-feira, 22 de agosto de 2011

FAZ HOJE 77 ANOS





Deixem-me o sono! Sei que já é manhã.
Mas se tão tarde o sono veio,
Quero, desperto, sentir a vã
Sensação do seu vago enleio.


Quero, desperto, não me recusar
A estar dormindo ainda,
E, entre a noção irreal de aqui estar,
Ver essa noção finda.


Quero que me não neguem quem não sou
Nem que, debruçado eu
Da varanda por sobre onde não estou
Nem sequer veja o céu.


FERNANDO PESSOA, 22 DE AGOSTO DE 1934 

domingo, 21 de agosto de 2011

FAZ HOJE 77 ANOS





Cansaço... Sim, cansaço do que fui
E do universo inteiro; sim, cansaço,
Não um cansaço morto. pois que flui...
Não qualquer coisa que haja em tempo e em espaço...


Não: um cansaço intérmino de tudo
Que, como um rio, vai por margens mudas
Num grande, antigo movimento mudo
Sob estrelas silenciosas e agudas.


Um cansaço de quanto possa haver,
De quanto, até, se possa desejar,
Lentamente indo, sem se ver correr,
Para a esperança de não haver mar.


FERNANDO PESSOA, 21 DE AGOSTO DE 1934

sábado, 20 de agosto de 2011

FAZ HOJE 81 ANOS





Se sou alegre ou sou triste?...
Francamente, não o sei.
A tristeza em que consiste?
Da alegria o que farei?


Não sou alegre nem triste.
Verdade, não sei quem sou.
Sou qualquer alma que existe
E sente o que Deus fadou.


Afinal, alegre ou triste?
Pensar nunca tem bom fim...
Minha tristeza consiste
Em não saber bem de mim...
Mas a alegria é assim...


FERNANDO PESSOA, 20 DE AGOSTO DE 1930

sexta-feira, 19 de agosto de 2011

FAZ HOJE 77 ANOS





Como a noite chegasse e ninguém vinha,
Tranquei a porta contra o mundo;
E a minha casa plácida e mesquinha
Ficou comigo num silêncio fundo...


Ébrio de só, falando a sós comigo,
Despreocupadamente passeando,
Fui verdadeiramente aquele amigo
Que em cada amigo já me vai faltando.


Mas bateram à porta de repente
E todo um poema se apagou num salto...
Era o vizinho, que o almoço assente
Para amanhã me lembrou. Não, não falto.


E, de novo, trancados porta e ser,
Tentei restituir ao coração
O passeio, o entusiasmo,e o desejo
Com que era ébrio do que os outros são.


Mas nada. Os móveis naturais da casa,
As paredes certeiras a me olhar,
Como alguém que deixou de olhar a brasa
E não viu brasa já ao ir olhar.


FERNANDO PESSOA, 19 DE AGOSTO DE 1934

quinta-feira, 18 de agosto de 2011

FAZ HOJE 76 ANOS





Sei bem que não consigo
O que não quero ter,
Que nem até prossigo
Na estrada até querer.


Sei que não sei da imagem
Que era o saber que foi
Aquela personagem
Do drama que me dói.


Sei tudo. Era presente
Quando abdiquei de mim...
E o que a minha alma sente
Ficou nesse jardim...


FERNANDO PESSOA, 18 DE AGOSTO DE 1935

quarta-feira, 17 de agosto de 2011

FAZ HOJE 81 ANOS





A liberdade, sim a liberdade!
A verdadeira liberdade!
Pensar sem desejos nem convicções.
Ser dono de si mesmo sem influência de romances!
Existir sem Freud nem aeroplanos,
Sem cabarets, nem na alma, e sem velocidades, nem no cansaço!
A liberdade do vagar, do pensamento são, do amor às coisas naturais
A liberdade de amar a moral que é preciso dar à vida!
Como o luar quando as nuvens abrem
A grande liberdade cristã da minha infância que rezava
Estende de repente sobre a terra inteira o teu manto de prata para mim...
A liberdade, a lucidez, o raciocínio coerente,
A noção jurídica da alma  dos outros como humana,
A alegria de ter estas coisas, e poder outra vez
Gozar os campos sem referência a coisa nenhuma
E beber água como se fosse todos os vinhos do mundo!


Passos todos passinhos de criança...
Sorriso de velha bondosa...
Apertar da mão do amigo sério...
Que vida que tem sido a minha!
Quanto tempo de espera no apeadeiro!
Quanto viver pintado em impresso da vida!


Ah, tenho uma sede sã. Dêem-me a liberdade,
Dêem-ma no púcaro velho de ao pé do pote
Da casa do campo da minha infância...
Eu bebia e ele chiava,
Eu era fresco e ele era fresco,
E como não tinha nada que me ralasse, era livre.
Que é do púcaro e da inocência?
Que é de quem eu deveria ter sido?
Salvo este desejo de liberdade e de bem e de ar, que é de mim?


ÁLVARO DE CAMPOS, 17 DE AGOSTO DE 1930



terça-feira, 16 de agosto de 2011

FAZ HOJE 83 ANOS





THE TIMES


Sentou-se bêbado à mesa escreveu um fundo
Do Times, claro, inclassificável, lido...
Supondo (coitado!) que ia ter influência no mundo...
.......................................................................
Santo Deus!... E talvez tenha tido!


ÁLVARO DE CAMPOS, 16 DE AGOSTO DE 1928

segunda-feira, 15 de agosto de 2011

FAZ HOJE 77 ANOS





A pompa inútil dos teus gestos quedos,
Como que à espera do ritual a dar,
Não traz ainda os segredos
Que ninguém tem para entregar.
Mas é como um prelúdio entre rochedos
Ao que é o som do mar.


Deram-me rosas para que eu viesse.
Deram-me lírios para que sonhasse.
A rosa murcha e esquece,
E o lírio cai antes que amarelasse.
Mas isso tudo é a teia que nos tece
Uma aranha que nos amasse.


Ah, em vez de rosas, lírios, ou que seja
Que me dêem o céu e o mar sem fim
E o que da aragem vaga seja
Tudo o que faz dormir assim.
E o que de tudo eu sonhe ou até veja
Que seja sempre só em mim.


FERNANDO PESSOA, 15 DE AGOSTO DE 1934

domingo, 14 de agosto de 2011

FAZ HOJE 86 ANOS





GLOSAS


Toda a obra é vã e vã a obra toda.
O vento vão, que as folhas vãs enroda,
Figura o nosso esforço e o nosso estado.
O dado e o feito, ambos os dá o Fado.


Sereno, acima de ti mesmo fita
A possibilidade erma e infinita,
De onde o real emerge inutilmente,
E cada, e só para pensares sente.


***

Nem o bem nem o mal define o mundo.
Alheio ao bem e ao mal, do céu profundo
Suposto, o Fado que chamamos Deus
Rege nem bem nem mal a terra e os céus.

Rimos, choramos através da vida.
Uma coisa é uma cara contraída
E outra uma água com um leve sal.
E o Fado fada alheio ao bem e ao mal.


*** 


Doze signos do céu o sol percorre,
E, renovando o curso, nasce e morre
Nos horizontes do que contemplamos.
Tudo em nós é ponto de onde estamos.

Ficções da nossa mesma consciência
Jazemos o instinto e a ciência.
E o sol parado nunca percorreu
Os doze signos que não há no céu.

FERNANDO PESSOA, 14 DE AGOSTO DE 1925

sábado, 13 de agosto de 2011

FAZ HOJE 94 ANOS





PENUGEM


Uma leve (veludo me envolve), vaga,
Vazia brisa
Como uma impressão imprecisa se propaga
Pela minha alma imprecisa.


Pendem, oscilando, do caule da Hora - a rosa
Rara raiou -
As flores que outrora perfumaram a luminosa
Vida que já passou.


E tudo porque uma brisa, como quem brinca, brinda
Ao meu hesitar
O insulto inútil da sua veludínea e linda
Voz de variar.


Porque sob o azul do sul um bafo, ou um afago
Que sugere, ou contém,
A ideia de vida feliz ou de morte tranquila, vago
Afago vem.


E eu dispo de mim as intenções e as memórias
Na abstracta fragância,
E a Hora é apenas terem-me contado 'stórias
Na minha infância.


FERNANDO PESSOA, 13 DE AGOSTO, DE 1917
("Num carro subindo Almirante Reis")

sexta-feira, 12 de agosto de 2011

FAZ HOJE 81 ANOS





Deixa-me ouvir o que não ouço...
Não é a brisa, ou o arvoredo;
É outra coisa intercalada...
É qualquer coisa que não posso
Ouvir senão em segredo,
E que talvez não seja nada...
Deixa-me ouvir... Não fales alto!
Um momento!... Depois o amor,
Se quiseres... Agora cala!
Ténue, longínquo sobressalto
Que substitui a dor,
Que inquieta e embala...


O quê? Só a brisa entre a folhagem?
Talvez... Só um canto pressentido?
Não sei, mas custa amar depois...
Sim, torna a mim, e a paisagem
E a verdadeira brisa, ruído...
Vejo-te: somos dois...


FERNANDO PESSOA, 12 DE AGOSTO DE 1930

quinta-feira, 11 de agosto de 2011

FAZ HOJE 81 ANOS





Não! Só quero a liberdade!
Amor, glória, dinheiro são prisões.
Bonitas salas? Bons estofos? Tapetes moles?
Ah, mas deixem-me sair para ir ter comigo.
Quero respirar o ar sozinho,
Não tenho pulsações em conjunto,
Não sinto em sociedade por quotas,
Não sou senão eu, não nasci senão quem sou, estou cheio de mim.
Onde quero dormir? No quintal...
Nada de paredes - só o grande entendimento -
Eu e o universo,
E que sossego, que paz não ver antes de dormir o espectro do guarda-fato
Mas o grande esplendor, negro e fresco de todos os astros juntos,
O grande abismo infinito para cima
A pôr brisas e bondades do alto na caveira tapada de carne que é a minha cara,
Onde só os olhos - outro céu - revelam o grande ser subjectivo.


Não quero! Dêem-me e liberdade!
Quero ser igual a mim mesmo.
Não me capem com ideais!
Não me vistam as camisas-de-forças das maneiras!
Não me façam elogiável ou inteligível!
Não me matem em vida!


Quero saber atirar com essa bola alta à lua
E ouvi-la cair no quintal do lado!
Quero ir deitar-me na relva, pensando "amanhã vou buscá-la..."
Amanhã vou buscá-la ao quintal ao lado...
Amanhã vou buscá-la ao quintal ao lado...
Amanhã vou buscá-la ao quintal
Buscá-la ao quintal
Ao quintal
Ao lado...


ÁLVARO DE CAMPOS, 11 DE AGOSTO DE 1930
,

quarta-feira, 10 de agosto de 2011

FAZ HOJE 77 ANOS





INTERVALO


Quem te disse ao ouvido esse segredo
Que raras deusas têm escutado -
Aquele amor cheio de crença e medo
Que é verdadeiro só se é segredado?...
Quem to disse tão cedo?


Não fui, que te não ousei dizê-lo,
Não foi um outro, porque o não sabia.
Mas quem roçou da testa o teu cabelo
E te disse ao ouvido o que sentia?
Seria alguém, seria?


Ou foi só que o sonhaste e eu te o sonhei?
Foi qualquer ciúme meu de ti
Que o supôs dito, pois eu não o direi,
Que o supôs feito, porque o só  fingi
Em sonhos que nem sei?


Seja o que for, quem foi que levemente,
A teu ouvido vagamente atento,
Te falou desse amor em mim presente
Mas que não passa do meu pensamento
Que anseia e que não sente?


Foi um desejo que, sem corpo ou boca,
A teus ouvidos de eu sonhar-te disse
A frese eterna, imerecida e louca -
A que as deusas esperam da ledice
Com que o Olimpo se apouca.


FERNANDO PESSOA, 10 DE AGOSTO DE 1934





terça-feira, 9 de agosto de 2011

FAZ HOJE 77 ANOS





Domingo irei para as hortas na pessoa dos outros,
Contente da minha anonimidade.
Domingo serei feliz - eles, eles...
Domingo...
Hoje é quinta feira da semana que não tem domingo...
Nenhum domingo...
Nunca domingo...
Mas sempre haverá alguém nas hortas no domingo que vem.
Assim passa a vida,
Sobretudo para quem sente,
Mais ou menos para quem pensa:
Haverá sempre alguém nas hortas ao domingo...
Não no nosso domingo, 
Não no meu domingo,
Não no domingo...
Mas sempre haverá outrem nas hortas e ao domingo... 


ÁLVARO DE CAMPOS, 9 DE AGOSTO DE 1934





segunda-feira, 8 de agosto de 2011

FAZ HOJE 94 ANOS





GLÁDIO


Irei mais longe que os navegadores.
Meu 'spírito 'standarte
De terras de outros mares e maiores
Fará parte.


Atmosfera das almas do futuro,
Pairante imperador,
Tornarei do meu sangue o ainda obscuro
Porvir maior.


Possuirei a 'sfígies e a tronos
O meu reino de Além,
Senhor dos Mestres, Dono-Rei dos donos,
Alma que tem


No âmbito absurdo e desmedido
Todo o mundo por vir,
Que olhará para o Deus de ela-ter-sido
Sem o seguir.


Impaciente de ser pouco e tarde,
Cinza do que já fui.
Ó meu imperial coração, arde,
Impera, flui,


Ocupa a céus e  astros o Destino
Pertence a imperial!
Feche depois meus olhos o divino
Gesto fatal!


Terei deixado o meu inteiro ser
Por toda a terra
Nada terá morrido em eu morrer.


FERNANDO PESSOA, 8 DE AGOSTO DE 1917