segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011

FAZ HOJE 82 ANOS


ABAT JOUR

A lâmpada acesa
(Outrem a acendeu)
Baixa uma beleza
Sobre o chão que é meu.

No quarto deserto
Salvo o meu sonhar,
Faz no chão incerto
Um círculo a ondear.

E entre a sombra e a luz
Que oscila no chão
Meu sonho conduz
Minha inatenção.

Bem sei... Era dia
E longe daqui...
Quanto me sorria
O que nunca vi!

E no quarto silente
Com a luz a ondear
Deixei vagamente
Até de sonhar...

FERNANDO PESSOA, 28 DE FEVEREIRO DE 1929

FAZ HOJE 86 ANOS

O merecer e o receber não têm
Comum medida. Uma é a lei que déramos,
Outra a que o deuses deram. Merecemos
De um lado e do outro recebemos, nem
Um lado é mais que o outro lado do outro.
Ignotas causas geram ignorados
Efeitos conhecidos.Entrevemos,
E a parte que do todo ao olhar nos cabe
Não reproduz o todo em menos, é
Parte diversa dele.No que vemos
Nada vemos de todo, é só o que vemos.

RICARDO REIS, 28 DE FEVEREIRO DE 1925

domingo, 27 de fevereiro de 2011

FAZ HOJE 78 ANOS


Rasteja mole pelos campos ermos
O vento sossegado.
Mais parece tremer de um tremor próprio,
Que do vento, o que é erva.
E as nuvens no céu, brancas e altas,
Se movem, mais parecem
Que gira a terra rápida e elas passam,
Por muito altas, lentas,
Aqui neste sossego dilatado
Me esquecerei de tudo,
Nem hóspede será do que conheço
A vida que deslembro.
Assim meus dias seu decurso falso
Gozarão verdadeiro.


RICARDO REIS, 27 DE FEVEREIRO DE 1933

FAZ HOJE 78 ANOS

Quanto faças, supremamente faze.
Mais vale, se a memória é quanto temos,
Lembrar muito que pouco.
E se o muito no pouco te é possível,
Mais ampla liberdade de lembrança
Te tornará teu dono.


RICARDO REIS, 27 DE FEVEREIRO DE 1933

FAZ HOJE 98 ANOS

O POENTE

A hora é de cinza e de fogo.
Eu morro-a dentro de mim.
Deixemos a crença em rogo,
Saibamos sentir-nos Fim.

Não me toques, fales, olhes...
Distrai-te de eu 'star aqui.
Quero que antes desfolhes
A minha idéia de ti...

Quero despir-me de ter-te,
Quero morrer-me de amar-te.
Tua presença converte
Meu esquecer-te em odiar-te.

Quero estar só nesta hora...
Sem Tragédia... Frente a frente
Com a minha alma que chora
Sob o céu indiferente,

Basta estar, sem que haja ao lado
Exterior da minha alma
Meu saber-te ali, irado
De ti, mancha nesta calma

Ânsia de me não possuir,
De me não ter mais que meu,
De me deixar esvair
Pela indiferença do céu.


FERNANDO PESSOA, 27 DE FEVEREIRO DE 1913

FAZ HOJE 102 ANOS

O sono - oh, ilusão! - o sono? Quem
Logrará esse vácuo ao qual aspira
A alma que, de esperar em vão, delira,
E já nem forças para querer tem?

Que sono apetecemos? O de alguém
Adormecido na feliz mentira
De sonolência vaga, que nos tira
Todo o sentido no qual a dor nos vem?

Ilusão tudo! Qu'rer um sono eterno,
Um descanso, uma paz, não é senão
O último anseio desesp'rado e vão.

Perdido, resta o derradeiro inferno
De tédio intérmino, esse de já não
Nem aspirar a ter aspiração.


FERNANDO PESSOA, 27 DE FEVEREIRO DE 1909

sábado, 26 de fevereiro de 2011

FAZ HOJE 91 ANOS


Não tornarei a ver as rosas
Do meu jardim de agora
Delas, que estão aqui, me invade
Já a futura saudade
Que o meu presente chora.

A morte que terá já sinto
Na sua vida, vida vã
Sentindo-a e assim já morte,
Rosas do meu jardim de agora -
Murcharam amanhã!

Não sei se é certo que a saudade
Tem jeito de viver
Antes que o tempo a deva dar,
Quem de si mesmo a (...)


FERNANDO PESSOA, 26 DE FEVEREIRO DE 1920

FAZ HOJE 91 ANOS

Revive ainda um momento
Na 'sperança que perdi,
Flor do meu pensamento,
Hálito do que morri...

Inútil, irreal sorriso
Na penumbra de pensar...
Eu da vida que preciso?
O sonho com que a negar.

Vago luar de promessa,
Resto de sombra a morrer
Na antemanhã que começa
Ah, ter-te, e nunca viver.


FERNANDO PESSOA, 26 DE FEVEREIRO DE 1920

FAZ HOJE 80 ANOS

Cheguei à janela,
Porque ouvi cantar:
É um cego e a guitarra
Que estão a chorar.

Ambos fazem pena,
São uma coisa só
Que anda pelo mundo
A fazer ter dó.

Eu também sou cego
Cantando na estrada,
A estrada é maior,
E não peço nada.


FERNANDO PESSOA, 26 DE FEVEREIRO DE 1931

sexta-feira, 25 de fevereiro de 2011

FAZ HOJE 94 ANOS



A MARINHA

Mas o vento do Norte,
O vento do norte cheio de espuma e frio
Soprou sobre a tua sorte e sobre a minha sorte
E a nossa sorte, como uma areia levada, fugiu.
Perdeu-se na noite,
Perdeu-se na noite e no longe com o vento a soprar
E só fica na minha memória a memória do açoite
Do vento na noite que levou a minh'alma a uivar, a uivar...

Pela praia nocturna, meu amor perdido, pela praia...
Pela praia nocturna sob um céu sem lua e sem calma
Nós demos as mãos
E esquecemos a vida, e o mundo, a nossa própria alma...
O som do mar embalava, o seu ruído brusco perdia
A rudeza, o ser só exterior, vinha aureolar
Aquilo invisível em nós que nos alava e prendia
E o resto era a noite longínqua e o suspiro do mar.

Passamos por tantas terras dentro das emoções!
Buscamos tão órfãos a porta e a mãe da nossa alma!
Mas as mão que se tinham presas sentiram os corações
Acharam-se no nosso silêncio e na noite talvez calma.

Nós éramos o Amor.Fora de nós o oceano
Levou na noite de trás para diante o sossego do ruído
Que tarda como nós, mas não morre, embalou o meu engano
Que era certo agora em nós e no nosso absorto sentido.

Sempre estava connosco salvo a abdicação do mundo
Que toca na alma na noite e no céu e no mar
Mas o nosso amor era uma ilha no oceano sem fundo
Do consolo da vida, das ondas lá longe e do vento a esperar.

Nada jurámos.A alma era tudo, o corpo da hora
Velou-se na sombra da noite absoluta e no mar que tremia...
Quem havia além de nós com alma e com vida agora?
Fora de nós de quente e humano e certo, o que havia?

Não tínhamos vivido antes daquele momento
Antes tinha sido o nosso corpo e a nossa alma...
Vindo de uma outra bando o nosso pensamento
Que era uma calma morte e a dita da noite sem calma.

Tudo pensámos menos o amor, e só ela havia...
Cada um era só ele; o outro não era preciso...
As mãos tornando-se leves na alma que não as sentia
E tudo estava em cada um por ser o outro, o indeciso...

Pela primeira vez nada sobrava ou faltava -
Pela primeira vez nada era aos nossos pés
Nada era nada sobre o não que ali estava
Pela primeira vez, pela primeira vez

Uma pessoa impossível feita de morte dos dois
Passeava sozinha, era o nada tudo, ali na areia...
E o mundo era uma ilusão, com seus dias e com seus sóis,
E a alma era falsa com a sua dor e a alegria em que anseia.

Não bem alma, não bem vida,apenas amor...
Não bem nós, nem o mundo, uma outra coisa real...
E o espaço vazio em que isso era verdadeiro, um sabor
A unidade suprema, além do bem e do mal.

FERNANDO PESSOA, 25 DE FEVEREIRO DE 1917



FAZ HOJE 94 ANOS

O som da gaita de foles trai
Uma emoção que não quer dizer...
Ao seu encontro minha alma vai,
Vai a minha alma para sofrer...

Não me dás sonhos, música rude
Não me dás nada, só a areia dura...
Ah, não haver onde amar se estude!
Nunca saber quem é a ventura!

Não busques dar-me da tua dor!
Não queiras (...)
Tua música chora o meu amargor!
E o que lhe falta é a mim que falta

Por mais que (...) desenroles
Tua música, nada de teu me invade...
Ó tocador de gaita de foles,
Onde é que está a felicidade?

O que é que eu tinha quando criança
E hoje nem tenho nem sei buscar?

FERNANDO PESSOA, 25 DE FEVEREIRO DE 1917

FAZ HOJE 91 ANOS

Mataram à machadada
A criança a brincar.
No meu coração não há nada.
Só a sensação magoada
De isso em mim se passar.

Deram à criança brinquedos
Para lhos tirar.
Em mim há fins e medos,
A criança é nos meus segredos
Da alma que morreu amar.


FERNANDO PESSOA, 25 DE FEVEREIRO DE 1920

FAZ HOJE 94 ANOS


Um piano na minha rua...
Crianças a brincar...
O sol de domingo e a sua
Alegria a doirar...

A mágoa que me convida
A amar todo o indefinido...
Eu tive pouco na vida
Mas dói-me tê-lo perdido.

Mas já a vida vai alta
Em muitas mudanças!
Um piano que me falta
É eu não ser as criança!

FERNANDO PESSOA, 25 DE FEVEREIRO DE 1917

quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011

FAZ HOJE 96 ANOS

UM DIA DE VERÃO


Assim que a noite as suas longas
Tranças encosta ao nosso olhar,
Deixa de novo despertar
A vida das tuas mão longas...

Hora em surdina incompleta, ar
Como uma haste partida, alongas
Meus olhos por as tua mãos longas
E sente-se a Hora parar...

A doença de cansar
Em nós o como ter agrado
Por tuas mão longas e o lado
Que elas ocultam no amplo ar...

Mãos longas e mais longo o ar...


FERNANDO PESSOA, 24 DE FEVEREIRO DE 1915

FAZ HOJE 96 ANOS


Estendo os braços para ti...
A noite cai nas nossas mãos...
Nós éramos melhor que irmãos
Na outra vida que vivi.

Teus girassóis eram a alma...
Os teus tanques nos gestos teus...
Tu inclinavas-te p'ra Deus
E a noite era uma grande palma...

Perdi-te quando me encontrei...
Não quis a vida que me deram...
Nossos beijos de outrora eram
Segundo uma divina lei...

Aparecias entre véus...
Passavas entre o trigo e a tarde...
Inda no meu coração arde
O poente que nos dera Deus...

Deixa que eu peça a Deus por ti
Para que venhas algum dia
Quando a vida estiver vazia
E eu chore o muito que vivi.

Então talvez de entre palmeiras
Tua presença abra em flor
Caminharás no meu amor
Como uma brisa por bandeiras.

Água nas cascatas desfeitas
Do meu sorriso enternecido...
Serás o íntimo sentido
Das nossas horas mais perfeitas...

Lua subindo no horizonte
Da minha imagem de ti
A tua vida estrelas e
Tantas estrelas que em vão conte.

Em teu torno, halo misterioso,
Sete planetas com anéis...
Seguindo como (...) fiéis
O teu advento silencioso.

E a vida longe, como um belo
Manto deixado em desvario...
Nós indo p'ra o Castelo Esguio
E Deus saliente do Castelo.

FERNANDO PESSOA, 24 DE FEVEREIRO, DE 1915


quarta-feira, 23 de fevereiro de 2011

FAZ HOJE 97 ANOS

Não sei que ócio e amargor de estar na vida
Me ocupa como um vácuo a alma inteira...
Ó curva muda do céu vasto, ardida,
E terminantemente possuída
Por uma espiritual canseira...

Melancólica hora que os céus bordam
Sobre a tristeza anónima da terra...
Meus olhos, postos em vão oco, transbordam
E outros sentimentos (...) acordam
E debruçam-se sobre o que em mim erra.

E eu chego até à margem da minha alma
E das altas ameias vejo Deus
Como um mar vago numa funda calma.

FERNANDO PESSOA, 23 DE FEVEREIRO DE 1914

FAZ HOJE 79 ANOS

SEGUNDO GRAU

Há um frio e um vácuo no ar.
'Stá sobre tudo a pairar,
Cinzento-preto, o luar.

Luar triste de antemanhã
De outro dia e sua vã
'Sperança e inútil afã.

É como a morte de alguém
Que era tudo que a alma tem
E que não era ninguém.

Absurdo erro disperso
No 'spaço, água onde é imerso
O cadáver do universo.

É como o meu coração
Nulo e pleno, vasto e vão,
Na antemanhã da visão.

FERNANDO PESSOA, 23 DE FEVEREIRO DE 1932

terça-feira, 22 de fevereiro de 2011

FAZ HOJE 77 ANOS

Tudo me cansa. Nada me consola.
O que fiz fi-lo em vão.
Tu, tocando arranjos de viola
Dás-me uma outra emoção.

Não me viste, mas vieste. Isso me basta.
Toca sem dor nem fim.
E a tua música, vazia, contrasta
Com o pleno de mim.

Quanto levantes baixa-me, mas antes
Quero eu teu soluçar
Que a vida toda com os seus cambiantes
De dormir sem sonhar.


FERNANDO PESSOA, 22 DE FEVEREIRO DE 1934

FAZ HOJE 84 ANOS

Sou como uma criança nada
Num (...) solar antigo,
Longe de vila, aldeia ou de estrada,
Monótono e sombrio abrigo,
De onde se a vida nunca vê
Sem nunca se saber porquê.

Tarde p'ra dor ou alegria,
Tarde desde o primeiro dia!

Tudo - acção, fé, prazer, amor
Dão-me só dúvida e terror.

Cativo do meu próprio ser,
Submisso do meu vão destino,
Sem ter a quem possa acolher

Não posso ir, não sei partir.

Em vão, de dentro de mim mesmo
Vozes me chamam para fora
Em vão tropel, (...)a esmo,
O mundo dos outros me implora -
Em vão. Falam a quem não sabe
Que gesto ou que razão lhe cabe.

De longe passam romarias,
Ao longe o labor soa e canta
Pelas estradas.




FERNANDO PESSOA, 22 DE FEVEREIRO DE 1927

segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011

FAZ HOJE 83 ANOS

Dois é o prazer: gozar e o gozá-lo.
Ao néscio elege o parvo, o sábio ao certo.
O igual fado é diverso.
Na taça que ergo, rodo e vejo, as bolhas
Incluo no que sinto, e prazer bebo
Mais que 'stá no gosto.


RICARDO REIS, 21 DE FEVEREIRO DE 1928

FAZ HOJE 96 ANOS


Não foram as horas que nós perdemos,
Nem o comboio que não chegou.
Foi só o barco e o gesto dos remos
E a triste vida que já passou.

Tudo nos dava a impressão de havermos
Entre travessas errado a rua,
E não acharmos o amor, nem termos
Para a tristeza senão a Lua...

Tudo isso foi como se não fosse...
Antes tivesse durado menos...
Enfim, que importa? Não há a posse...
E os céus eternos só são serenos...


FERNANDO PESSOA, 21 D FEVEREIRO DE 1915

domingo, 20 de fevereiro de 2011

FAZ HOJE 83 ANOS

Doce é o fruto à vista, e à boca amaro,
Breve é a vida ao tempo e longa à alma,
A arte com que todos,
- Ora sem saber virando,o copo vil
Ora, enchendo-o, cientes - nos ousamos,
Chegada a noite, despir.


RICARDO REIS, 20 DE fEVEREIRO, DE 1928

FAZ HOJE 83 ANOS


Pesa a sentença atroz do algoz ignoto
Em cada cerviz néscia. É entrudo e riem.
Felizes, porque neles pensa e sente
A vida, e não eles.
De rosas, inda que falsas,teçam
Capelas veras. Breve e vão é o tempo
Que lhes é dado, e por misericórdia
Breve nem vão sentido.
Se a ciência é vida, sábio é só o néscio.
Quão pouco diferença a mente interna
Do homem da dos brutos! Sus! Deixai
Brincar os moribundos!


RICARDO REIS, 20 DE FEVEREIRO DE 1928

sábado, 19 de fevereiro de 2011

POEMA DATADO DE 1935


SÁ CARNEIRO

Nesse número do Orpheu que há-de ser feito
com sóis e estrelas num mundo novo.

Nunca supus que isso a que chamam morte
Tivesse qualquer espécie de sentido...
Cada um de nós, aqui aparecido,
Onde manda a lei certa e a falsa sorte,

Tem só uma demora de passagem
Entre um comboio e outro, entroncamento
Chamado o mundo, ou a vida ou o momento,
Mas seja como for, segue a viagem.

Por isso, embora num comboio expresso
Seguisses, e adiante do em que vou,
No términus de tudo, ao fim lá estou
Nessa ida que afinal é um regresso.

Porque na enorme gare onde Deus manda
Grandes acolhimentos se darão
Para cada prolixo coração
Que com seu próprio ser vive em demanda.

Hoje, falho de ti, sou dois a sós.
Há almas pares, as que se conheceram
Onde os seres são almas (...)
(...)

Como éramos só um falando! Nós
Éramos como um diálogo numa alma.
Não sei se dormes (...)calma.
Sei que, falho de ti, estou só a sós.


É como se esperasse eternamente
A tua vinda certa e combinada
Aí em baixo, no Café Arcada -
Quase no extremo deste Continente;

Aí, onde escreveste aqueles versos
Do trapézio, do vice-rei - sei eu -
Aquilo tudo que depois no Orpheu
(...)

Ah, meu maior amigo, nunca mais
Na paisagem sepulta desta vida
Encontrarei uma alma tão querida
Às coisas que em meu ser são as reais.

Não mais, não mais,e desde que saíste
Desta prisão fechada que é o mundo,
Meu coração inerte é infecundo
E o que sou é um sonho que está triste.

Porque há em nós. por mais que consignamos
Ser nós mesmos a sós sem nostalgia,
O desejo de termos companhia -
O amigo enorme que a falar amamos.

FERNANDO PESSOA, 1935



sexta-feira, 18 de fevereiro de 2011

FAZ HOJE 91 ANOS



Noite, ouvir-te o silêncio é ver o mar.
Uma calma desce em mim
E vem com ondas frescas alagar
O meu tédio sem fim.


FERNANDO PESSOA, 18 DE FEVEREIRO DE 1920

quinta-feira, 17 de fevereiro de 2011

ESTE POEMA NÃO TEM DATA

Cruzou por mim, veio ter comigo, numa rua da Baixa
Aquele homem mal vestido, pedinte por profissão que se lhe vê na cara,
Que simpatiza comigo e eu simpatizo com ele;
E reciprocamente, num gesto largo, transbordante, dei-lhe tudo quanto tinha
(Excepto, naturalmente, o que estava na algibeira onde trago mais dinheiro:
Não sou parvo nem romancista russo, aplicado,
E romantismo, sim, mas devagar...)

Sinto uma simpatia por essa gente toda,
Sobretudo quando não merece simpatia.
Sim, eu sou também vadio e pedinte,
E sou-o também por minha culpa.
Ser vadio e pedinte não é se vadio e pedinte:
É estar ao lado da escala social,
É não ser adaptável às normas da vida,
Ás normas reais ou sentimentais da vida -
Não ser Juiz do Supremo, empregado certo, prostituta,
Não ser pobre a valer, operário explorado,
Não ser doente de uma doença incurável,
Não ser sedento de justiça, ou capitão de cavalaria,
Não ser, enfim, aquelas pessoas sociais dos novelistas
Que se fartam de letras porque têm razão para chorar lágrimas,
E se revoltam contra a vida social porque têm razão para isso supor.

Não: tudo menos ter razão!
Tudo menos importar-me com a humanidade!
Tudo menos ceder ao humanitarismo!
De que serve uma sensação se há uma razão exterior para ela?

Sim, ser vadio e pedinte, como eu sou,
Não é ser vadio e pedinte, o que é corrente:
É ser isolado na alma, e isso é que é ser vadio,
É ter que pedir aos dias que passem, e nos deixem, e isso é que é ser pedinte.

Tudo o mais é estúpido como um Dostoievski ou um Gorki.
Tudo mais é ter fome ou não ter que vestir.
E, mesmo que isso aconteça, isso acontece a tanta gente
Que nem vale a pena ter pena da gente a quem isso acontece.
Sou vadio e pedinte a valer, isto é,no sentido translato,
E estou-me rebolando numa grande caridade por mim.

Coitado do Álvaro de Campos!
Tão isolado na vida! Tão deprimido nas sensações!
Coitado dele, enfiado na poltrona da sua melancolia!
Coitado dele que com lágrimas (autênticas) nos olhos,
Deu hoje, num gesto largo, liberal e moscovita,
Tudo o que tinha na algibeira em que tinha pouco, àquele
Pobre que não era pobre, que tinha olhos tristes por profissão.
Coitado do Álvaro de Campos, com quem ninguém se importa!
Coitado dele que tem tanta pena de si mesmo!

E, sim, coitado dele!
Mais coitado dele que de muitos que são vadios e vadiam,
Que são pedintes e pedem,
Porque a alma humana é um abismo

Eu é que sei. Coitado dele!

Que bom poder-me revoltar num comício dentro da minha alma!
Mas até nem parvo sou!
Nem tenho a defesa de poder ter opiniões sociais.
Não tenho, mesmo, defesa nenhuma: sou lúcido.

Não me queiram converter a convicção: sou lúcido.
Já disse: sou lúcido.
Nada de estéticas com coração: sou lúcido.
Merda! Sou lúcido.

ÁLVARO DE CAMPOS


quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011

FAZ HOJE91 ANOS

No limiar que não é meu
Sento-me e deixo o irreflectido olhar
Encher-se, sem eu ver, de campos e céu.
Se é tarde ou cedo, deixo de notar.
Nada me diz de si qualquer coisa que eu
Possa gozar.

Pelos campos sem fim
Sinto correr, porque na face o sinto,
Um vago vento, estranho todo em mim.
Não sei se penso, ou em que dor consinto
Que seja minha ou desespero sem fim,
Que minto.

Na inútil hora
Eu, mais inútil que ela, sem sentir
Fito com um olhar que já nem chora
A Dor ou desdém, dolo ou infiel sorrir,
O absurdo céu onde nenhuma causa mora
Para eu fruir.


Apenas, vaga,
Não uma esp'rança, mas uma saudade
Do tempo em que a saudade, como vaga,
Dava na praia da minha ansiedade,
Me torna e um surdo marulhar meu ser alaga
De vacuidade.

Sim, só pranto
Já nem choro, tornado um impreciso
Sombrio véu em torno ao desencanto
Da minha vida sem razão nem riso
Ma turva o olhar um pouco, e o campo um tanto
Torna impreciso.

Mas acordo,e com vão
Olhar ainda, mas já diferente,
Por 'star ausente dele o coração,
E eu outra vez nem mesmo descontente,
Fito o céu calmo, o campo, a alegre solidão
Inconsciente.

Nada, só o dia -
Se é tarde ou cedo continuo a errar -
Alheio a mim, a tudo dá alegria
De não ter coração com que agitar
O corpo. E quando vier a noite, tudo esfria
Mas sem chorar.

Isto, e eu comigo
Posto no eterno aquém das coisas calmas
Que a vida externa mostra ao céu amigo -
Campos ao sol, vivas flores-almas.
Isto só, e não ter o coração abrigo
Nem sol as almas!


FERNANDO PESSOA, 16 DE FEVEREIRO DE 1920

FAZ HOJE 91 ANOS

Os deuses dão a quem sofre
Só mais dor.
Guardam a esp'rança num cofre,
Dão ao cofre valor,

E depois levam-no p'ra fora
Da vista e da mão,
P'ra que chore a alma, que chora,
Chorar sempre em vão.


FERNANDO PESSOA, 16 DE FEVEREIRO DE 1020

FAZ HOJE 91 ANOS


Onde pus a esperança, as rosas
Murcharam logo.
Na casa, onde fui habitar,
O jardim, que eu amei por ser
Ali o melhor lugar,
E por quem essa casa amei -
Deserto o achei,
E, quando o tive, sem razão p'ra o ter.

Onde pus a afeição, secou
A fonte logo.
Da floresta, que fui buscar
Por essa fonte ali tecer
Seu canto de rezar -
Quando na sombra penetrei,
Só lugar achei
Da fonte seca, inútil de se ter.

P'ra quê, pois, afeição, 'sperança,
Se perco, logo
Que as uso, a causa p'ras usar,
Se tê-las sabe a não as ter?
Crer ou amar -
Até à raiz, do peito onde alberguei
Tais sonhos e os gozei,
O vento arranque e leve onde quiser
E eu os não possa achar!


FERNANDO PESSOA, 16 DE FEVEREIRO DE 1920

segunda-feira, 14 de fevereiro de 2011

FAZ HOJE 77 ANOS


Os mesmos deuses são precários...
Ninguém dos homens é alguém.
Passam os Silas e os Mários.
Todos igual a terra tem,
E os mesmos deuses são precários.
Quem sabe se eles são ninguém?

Talvez que tudo, em mal ou bem,
Um nada seja, feito vários,
Para os processos de vaivém
Que fazem mundos,para quem
Os mesmos deuses são precários.


FERNANDO PESSOA, 14 DE FEVEREIRO DE 1934

FAZ HOJE 78 ANOS



Para ser grande sê inteiro:nada
Teu exagera ou exclui.
Sê todo em cada coisa. Põe quanto és
No mínimo que fazes.
Assim em cada lago a lua toda
Brilha, porque alta vive.


RICARDO REIS, 14 DE FEVEREIRO DE 1933

domingo, 13 de fevereiro de 2011

FEZ ONTEM 77 ANOS



FRESTA


Em meus momentos escuros
Em que em mim não há ninguém,
E tudo é névoa e muros
Quanto a vida dá ou tem,

Se, um instante erguendo a fronte
De onde em mim sou soterrado,
Vejo o longínquo horizonte
Cheio de sol posto ou nado,

Revivo, existo, conheço;
E, inda que seja ilusão
O exterior em que me esqueço,
Nada mais quero nem peço:
Entrego-lhe o coração.

FERNANDO PESSOA, 12 DE FEVEREIRO DE 1934


sábado, 12 de fevereiro de 2011

FAZ HOJE 96 ANOS


Não batas palmas diante a beleza.
Não se sente a beleza demasiado.
Saibamos como os deuses
Sentir divinamente.
Ao ver o belo, lembra-te que morre.
E que a tristeza desse pensamento
Torne elevada e calma
A tua admiração.
E se é estátua ou de Píndaro alta estrofe
Em quem teus olhos vão abandonados
Não te esqueças que essa
Beleza não é viva.
Sempre o belo alguma coisa há-de faltar
Para que seja triste contemplá-lo
E que nunca se possa
Bater palmas ao vê-lo...
Calma é a beleza. Ama-a calmamente.
Os dons dos deuses como um deus aceita
E terás tua parte
Do néctar dado aos calmos.


RICARDO REIS,12 DE FEVEREIRO DE 1915

sexta-feira, 11 de fevereiro de 2011

FAZ HOJE 80 ANOS


Parece às vezes que desperto
E me pergunto o que vivi;
Fui claro, fui real, é certo,
Mas como é que cheguei aqui?

A bebedeira às vezes dá
Uma assombrosa lucidez
Em que como outro a gente está.
Estive ébrio sem beber talvez.

E daí, se pensar, o mundo
Não será feito só de gente
No fundo cheia de este fundo
De existir clara e ebriamente?

Entendo, como um carrossel,
Giro em meu torno sem me achar...
(Vou escrever isto num papel
Para ninguém me acreditar...)


FERNANDO PESSOA, 11 DE FEVEREIRO DE 1931


quinta-feira, 10 de fevereiro de 2011

FAZ HOJE 91 ANOS


Dói-me a alma como um dedo. Nem
Sobra da dor com que chorar.
Tem ora a vida por vil por quem
O vil mais vil pode enganar.

Orgulho? Serve p'ra que o riso
Dos outros possa ter efeito,
Esgar de mim, sou o preciso
P'ra que vaguear me tenha jeito.

Quanto me dói que não doera
Se eu fora como quem sou!
À margem, falsa primavera
Que o inverso póstumo gelou!

No silêncio onde escuto a vida
Só um riso chega ao meu ouvido.
Não queiras, alma adormecida!
Não ames, coração perdido!

FERNANDO PESSOA, 10 DE FEVEREIRO DE 1920

quarta-feira, 9 de fevereiro de 2011

FAZ HOJE 88 ANOS



Hoje, deste ócio incerto
Sem prazer nem razão,
Como a um túmulo aberto
Fecho meu coração.

Na inútil consciência
De ser inútil tudo,
Fecho-o contra a violência
Do mundo duro e surdo.


Mas que mal sofre um morto?
Contra que defendê-lo?
Fecho-o, em fechá-lo absorto,
E sem querer saber.


FERNANDO PESSOA, 9 DE FEVEREIRO DE 1923



FAZ HOJE 91 ANOS



Não creio ainda no que sinto -
Teus beijos, meu amor, que são
A aurora ao fundo do recinto
Do meu sentido coração...

Não creio ainda nessa boca
Que, por tua alma em beijos dada,
Na minha boca estaca e toca
E ali fica parada.

Não creio ainda. Poderia
Acaso a mim acontecer
Tu, e os teus beijos, e a alegria?
Tudo isso é e não pode ser.

FERNANDO PESSOA, 9 DE FEVEREIRO DE 1920

terça-feira, 8 de fevereiro de 2011

FAZ HOJE 98 ANOS



A VOZ DE DEUS

"Com dia teço a noite
Com noite escrevo o dia...
Ó Universo, eu sou-te!"
(Sombra de luz na bruma fria,
Que é este archote?
Que mão o tem e o guia?)

"Não me chamo o meu nome...
Sou de ti, mundo-não,
Ser mente em ti, eu sou-me"
(De quem é esta voz clarão?
D'O que tem por cognome
O ser da imensidão).

FERNANDO PESSOA, 8 DE FEVEREIRO DE 1913

FAZ HOJE 80 ANOS



Os deuses e os Messias que são deuses
Passam, e os sonhos vãos que são Messias.
A terra muda dura.
Nem deuses, nem Messias, nem ideias
Me trazem rosas. Minhas são as que tenho.
Se as tenho, que mais quero?


RICARDO REIS, 8 DE FEVEREIRO DE 1931

segunda-feira, 7 de fevereiro de 2011

FAZ HOJE 96 ANOS



Eu só tenho o que não quero
E a vida é pouco p'ra mim...
Não sei por que coisa espero
Nem se a quererei enfim...

Conto as horas como moedas
Que nunca penso em gastar...
E como quem rasga seda
Não uso o que quero usar.

Quem me dera poder ter
Alguma coisa na vida
Que chorar ou que querer...
Ó pobre à porta da ermida ...


FERNANDO PESSOA, 7 DE FEVEREIRO DE 1915

FAZ HOJE 79 ANOS



O dia 'splende, luminoso e vasto.
O grande rio é mar; quem o vê rio?
Com o que vejo quem eu sou contrasto,
E aqui onde há calor, 'stou onde há frio.

Desde que existo, vivo dividido
Entre três seres, em que iguais estou:
O meu ser, o meu ser que tenho sido
E o verdadeiro ser que nunca sou.

Quantas traições e desentendimentos
Entre estes meus três seres descobri!
E eu assisti a tudo, como a estradas,
Que, veículos deles, percorri.

Hoje que, alheio a tudo e a mim mesmo,
Posso, à luz deste dia vasto e rico,
Verificar que fui um ser a esmo,
É ainda a esmo que o verifico.

Não tenho cura: tudo quanto fui
É quanto eu hei-de ser, sem outra pele.
Sem saber de fluir, o rio flui.
Sei que fluo, mas fluo como êle.


FERNANDO PESSOA, 7 DE FEVEREIRO DE 1932

domingo, 6 de fevereiro de 2011

FAZ HOJE 78 ANOS



Por que choras do que existe
A terra e o que a terra tem?
Tudo nosso - mal ou bem -
É fictício e só persiste
Porque a alma aqui é ninguém.

Não chores! Tudo é o nada
Onde os astros luzes são.
Tudo é lei e confusão.
Toma este mundo por 'strada
E vai como os santos vão.

Levantado de onde lavra
O inferno, em que somos réus
Sob o silêncio dos céus,
Encontrarás a Palavra,
O nome interno de Deus.

E, além da dupla unidade
Do que em dois sexos mistura
A ventura e a desventura,
O sonho e a realidade,
Serás quem já não procura;

Porque, limpo do universo,
Em Cristo Nosso Senhor,
Por sua verdade e amor,
Reunirás o disperso
E a Cruz abrirá em flor.


FERNANDO PESSOA 6 DE FEVEREIRO DE 1934

FAZ HOJE 80 ANOS


Não: não digas nada!
Supor o que dirá
A tua boca velada
É ouvi-lo já.

É ouvi-lo melhor
Do que o dirias.
O que és não vem à flor
Das frase e dos dias.

És melhor do que tu.
Não digas nada: sê!
Graça do corpo nu
Que invisível se vê.


FERNANDO PESSOA, 6 DE FEVEREIRO DE 1931

sábado, 5 de fevereiro de 2011

FAZ H0JE 98 ANOS



O mundo é um sonho velado
Por sonhos de sonhar...
Meu coração amargurado
Para quê pensar?

Para quê pensar ou crer,
Descrer, ou sorrir
De pensar, crer ou descrer
De ser ou sentir?


FERNANDO PESSOA, 5 DE FEVEREIRO DE 1913

FAZ HOJE 98 ANOS


Sonhador de sonhos,
Queres-me vender
Teus dias, risonhos
De tanto esquecer?...

Minh'alma é só mágoa
Por saber que vive...
Passo como a água,
Nuca fui ou estive.


FERNANDO PESSOA, 5 DE FEVEREIRO DE 1913

sexta-feira, 4 de fevereiro de 2011

FAZ HOJE 96 ANOS




Deus sabe melhor do que eu
Quem sou eu
Por isso a sorte que me deu
É aquela em que melhor estou.

Deus sabe quem eu sou e alinha
Minhas acções
Duma forma que não é a minha
Mas ele tem as suas razões.


FERNANDO PESSOA, 4 DE FEVEREIRO DE 1915

quinta-feira, 3 de fevereiro de 2011

FAZ HOJE 76 ANOS



REGRESSO AO LAR


Há quanto tempo não escrevo um soneto
Mas não importa: escrevo este agora.
Sonetos são infância, e, nesta hora,
E a minha infância é só um ponto preto

Que num imóbil e fatal trajecto
Do comboio que sou me deita fora.
E o soneto é como alguém que mora
Há dois dias em tudo o que projecto.

Graças a Deus, ainda sei que há
Catorze linhas a cumprir iguais
Para a gente saber onde é que está...

Mas onde a gente está, ou eu, não sei...
Não quero saber nada de nada mais
E berdamerda para o que saberei.


ÁLVARO DE CAMPOS, 3 DE FEVEREIRO DE 1935

quarta-feira, 2 de fevereiro de 2011

FAZ HOJE 98 ANOS



NA DESPEDIDA


Brisa na minha fronte,
Curva do horizonte...
O sol que não desponte!

Folhas de hera na ruína,
Fria fluidez fina...
Tinir de guizos...Ler de sina...

Minha alma é uma folha de ouro.,..
Batida fina p'lo choro...
Fina de agouro...

Frio tesouro inútil
Inconsútil
Fútil, fútil, fútil...

FERNANDO PESSOA 2 DE FEVEREIRO DE 1913

terça-feira, 1 de fevereiro de 2011

FAZ HOJE 79 ANOS


Sucata de alma vendida pelo peso do corpo,
Se algum guindaste te eleva é para te despejar...
Nenhum guindaste te eleva senão para te baixar.

Olho analiticamente,sem querer, o que romantizo sem querer...


ÁLVARO DE CAMPOS, 1 DE FEVEREIRO DE 1932