segunda-feira, 31 de outubro de 2016

FAZ HOJE 101 ANOS




Cada cousa que vejo neste mundo
Lembra-me o que perdi.
Um desejo sem forma, (...) ou fundo
Nasce em meu ser parado
Se penso naquele (...) passado
De antes de tudo que vivi...

Era luar sobre as horas...
Era lagos nos pensamentos...
Meus ócios nevoentos
Não tinham as demoras
Que têm nesta vida...
Havia portas pra conseguimentos
No próprio muro da descida.


FERNANDO PESSOA, 31 DE OUTUBRO DE 1915


domingo, 30 de outubro de 2016

FAZ HOJE 85 ANOS


Sim, não tenho razão...
Deixa-me distrair-me do argumento mental,
Não tenho razão, está bem, é uma razão como outra qualquer...

Se nem creio? Nem sei.
Creio que sim as repito.
O amor deve ser constante?
Sim, deve ser constante,
Só no amor, é claro.
Digo ainda outra vez...

Que embrulhada a gente arranja na vida!
Sim, está bem, amanhã trago o dinheiro.

Ó grande sol, tu não sabes nada disto,
Alegria que se não pode fitar no azul sereno inatingível.

ÁLVARO DE CAMPOS, 30 DE OUTUBRO DE 1931


sábado, 29 de outubro de 2016

FAZ HOJE 81 ANOS




Teus olhos entristecem.
Nem ouves o que digo.
Dormem, sonham, esquecem...
Não me ouves, e prossigo.

Digo o que já, de triste,
Te disse tanta vez...
Creio que nunca o ouviste
De tão tua que és.

Olhas-me de repente
De um distante impreciso
Com um olhar ausente.
Começas um sorriso.

Continuo a falar.
Continuas ouvindo
O que estás a pensar,
Já quase sorrindo.

Até que, neste ocioso
Sumir de tarde fútil,
Se esfolha silencioso
O teu sorriso inútil.

FERNANDO PESSOA, 29 DE OUTUBRO DE 1935


sexta-feira, 28 de outubro de 2016

FAZ HOJE 92 ANOS




Quando nos iremos, ah quando iremos de aqui?
Quando, do meio destes amigos que não conheço,
Do meio destas maneiras de compreender que não compreendo,
Do meio destas vontades involuntariamente
Tão contrárias à minha, tão contrárias a mim?!

Ah, navio que partes, que tens por fim partir,
Navio com velas, navio com máquina, navio com remos,
Navio com qualquer coisa com que nos afastemos,
Navio de qualquer modo deixando atrás esta costa,
Esta, a sempre esta costa, esta sempre esta gente,
Só válida à emoção através da saudade futura,
Da saudade, esquecimento que se lembra,
Da saudade, engano que se deslembra da realidade,
Da saudade, remota sensação do incerto
Vago misterioso antepassado que fomos,
Renovação da vida antenatal, [...]
Absurdamente surgindo, estática e constelada
Do vácuo dinâmico do mundo.

Que eu sou daqueles que sofrem sem sofrimento,
Que têm realidade na alma,
Que não são mitos, são a realidade
Que não têm alegria do corpo ou da alma, daqueles
Que vivem pedindo esmola com a vontade de perdê-la...
Eu quero partir, como quem exemplarmente parte.
Para que hei-de estar onde estou se é só onde estou?
Para que hei-de ser sempre eu se eu não posso ser quem sou,
Mas isto tudo é como uma realidade longínqua
Daqueles que não partiram ou daqueles
Cujo lar é nenhum e de memória
Quando, navio [...], deixaremos o lar que não temos?

Navio, navio, vem!
Ó lugre, corveta, barca, vapor de carga, paquete,
Navio carvoeiro, veleiro de mastro, carregado de madeira,
Navio de passageiros de todas as nações diversas,
Navio todos os navios,
Navio possibilidade de ir em todos navios
Indefinidamente, incoerentemente,
À busca de nada, À busca de não buscar,
À busca só de partir.
À busca só de não ser
À primeira morte possível ainda em vida -
O afastamento, a distância, a separar-nos de nós.

Porque é sempre de nós que nos separamos quando deixamos alguém,
É sempre de nós que partimos quando deixamos a costa,
A casa, o campo, a margem, a gare, ou o cais.
Tudo que vimos é nós, vivemos só nós o mundo.
Não temos senão nós dentro e fora de nós,
Não temos nada, não temos nada, não temos nada...
Só a sombra fugaz no chão da caverna no depósito de almas,
Só a brisa breve feita pela passagem da consciência,
Só a gota de água na folha seca, inútil orvalho,
Só a roda multicolor girando branca aos olhos
Do fantasma inteiro que somos,
Lágrima das pálpebras descidas
Do olhar velado divino.

Navio quem quer que seja, não quero ser eu! Afasta-me
A remo ou vela ou máquina, afasta-me de mim!
Vá. Veja eu o abismo abrir-se entre mim e a costa,
O rio entre mim e a margem.
O mar entre mim e o cais,
A morte, a morte, a morte, entre mim e a vida!

ÁLVARO DE CAMPOS, 28 DE OUTUBRO DE 1924


quinta-feira, 27 de outubro de 2016

FAZ HOJE 93 ANOS




DE AMORE SUO

Folha após folha vemos caem,
Cloé, as folhas todas.
Nem antes para elas, para nós
Que sabemos que morrem.
Assim, Cloé, assim,
O amor, antes que o corpo que empregamos
Nele, em nós envelhece;
E nós, diversos, somos, inda jovens,
Só a mútua lembrança.
Ah, se o que somos será isto sempre
E só uma hora é o que somos,
Com tal excesso e fúria em cada amplexo
A hausta vida ponhamos,
Que encha toda a memória, e nos beijemos
Como se, findo o beijo
Único, sobre nós ruísse a súbita
Mole do inteiro mundo.

RICARDO REIS, 27 DE OUTUBRO DE 1923


quarta-feira, 26 de outubro de 2016

FAZ HOJE 97 ANOS




INÊS

Sentados sós, lado a lado,
Com a névoa dos montes ao fundo
Do fundo do céu azulado.

(Na hora das rosas a morte)

Eu o que dizia era
Igual ao que eu não dizia,
Princípio da primavera.

(Na hora das rosas a morte)

Os nossos pés, lado a lado,
Quietos na erva, curvando-a,
Na erva de qualquer prado.

(Na hora das rosas a morte)

Sobre nós a sombra dos ramos,
Nossas costas no tronco largo,
Lado a lado, (...)

(Na hora das rosas a morte)

Braço esquerdo, braço direito
Tocando de leve um no outro
Lado a lado, ali, sem defeito.

(Na hora das rosas a morte)

Sem olharmos um para onde
Estava o outro, mas lado a lado
Ao fundo do fundo o monte.

(Na hora das rosas a morte)

O que a alma me respondia
Do lado de mim, existente;
Era o mesmo que eu dizia.

(Na hora das rosas a morte)

Jardim do princípio da vida?
Ninguém... Lado a lado olhando
Nada connosco a descida.

(Na hora das rosas a morte)

Depois era a estrada deserta
E vedando-a de nós o muro
Lá em baixo, a descida finda2

(Na hora das rosas a morte)

Depois, para além da estrada
Subia outra vez... Lado a lado
Víamos, sem ver nada.

(Na hora das rosas a morte)

Depois era o monte pequeno,
Depois montes e mais montes,
O último o mais sereno

(Na hora das rosas a morte)

No monte do fim se via
A névoa no alto do monte,
Um sol frio aquecia.

(Na hora das rosas a morte)

E a copa da árvore descida
Só pouco do céu azul
Deixava ao olhar e à vida

(Na hora das rosas a morte)

Não sei como foi, ou o que era
Dos montes, da sombra, da erva,
Princípio da primavera...

(Na hora das rosas a morte)


FERNANDO PESSOA, 26 DE OUTUBRO DE 1919


terça-feira, 25 de outubro de 2016

FAZ HOJE 83 ANOS



Nada... Passaram as nuvens e eu fiquei...
No ar limpo não há rasto.
Surgiu a lua de onde já não sei,
Num claro luar vasto.

Todo o espaço da noite fica cheio
De um peso sossegado...
Onde porei meu futuro, e o enleio
Que o liga ao meu passado?

E o grande céu é puro
Mas não há onde estou
Mais que a vereda onde eu, obscuro,
Arrasto quem não sou.

FERNANDO PESSOA, 25 DE OUTUBRO DE 1933


segunda-feira, 24 de outubro de 2016

FAZ HOJE 84 ANOS



Do vale à montanha,
Da montanha ao monte,
Cavalo de sombra,
Cavaleiro monge,
Por casas, por prados,
Por quinta e por fonte,
Caminhais aliados.

Do vale à montanha,
Da montanha ao monte,
Cavalo de sombra,
Cavaleiro monge,
Por penhascos pretos,
Atrás e defronte,
Caminhais secretos.

Do vale à montanha,
Da montanha ao monte,
Cavalo de sombra,
Cavaleiro monge,
Por plainos desertos
Sem ter horizontes,
Caminhais libertos.

Do vale à montanha,
Da montanha ao monte,
Cavalo de sombra,
Cavaleiro monge,
Por ínvios caminhos,
Por rios sem ponte,
Caminhais sozinhos.

Do vale à montanha,
Da montanha ao monte
Cavalo de sombra,
Cavaleiro monge,
Por quanto é sem fim,
Sem ninguém que o conte,
Caminhais em mim.

FERNANDO PESSOA, 24 DE OUTUBRO DE 1932


sábado, 22 de outubro de 2016

FAZ HOJE 89 ANOS




SONUS DESILIENTES ACQUAE

Som breve da água,
Tão calmo e tão bom,
Não sei se esta mágoa
É mais ou é menos
Ouvindo esse som.

Sei que é diferente.:.
Mas não sei dizer
Se o som que se sente
Da água vai fazer
Lembrar ou esquecer...

Sei eu o que sinto?
Sei eu o que sou?
Defino-me, e minto...
Com a água, e o seu canto,
Cantando me vou...


FERNANDO PESSOA, 23 DE OUTUBRO DE 1927


FAZ HOJE 93 ANOS





De novo traz as aparentes novas
Flores o Verão novo, e novamente
Verdesce a cor antiga
Das folhas redivivas.
Não mais, não mais dele o infecundo abismo,
Que mudo sorve o que mal somos, torna
À clara luz superna
A presença vivida.
Não mais; e a prole a que, pensando, dera
A vida da razão, em vão o chama,
Que as nove chaves fecham
Da Estige irreversível.
O que foi como um deus entre os que cantam,
O que do Olimpo as vozes, que chamavam,
Escutando ouviu, e, ouvindo,
Entendeu, hoje é nada.
Tecei embora as, que teceis, grinaldas.
Quem coroais, não coroando a ele?
Votivas as deponde,
Fúnebres sem ter culto.
Fique, porém, livre da leiva e do Orco,
A fama; e tu, que Ulisses erigira,
Tu, em teus sete montes,
Orgulha-te materna,
Igual, desde ele, às sete que contendem
Cidades por Homero, ou alcaica Lesbos,
Ou heptápila Tebas,
Ogígia mãe de Píndaro.

RICARDO REIS, 22 DE OUTUBRO DE 1923


sexta-feira, 21 de outubro de 2016

FAZ HOJE 81 ANOS




Todas as cartas de amor são
Ridículas.
Não seriam cartas de amor se não fossem
Ridículas.

Também escrevi em meu tempo cartas de amor,
Como as outras,
Ridículas

As cartas de amor, se há amor,
Têm de ser
Ridículas,

Mas, afinal,
Só as criaturas que nunca escreveram
Cartas de amor
É que são
Ridículas.

Quem me dera no tempo em que escrevia
Sem dar por isso
Cartas de amor
Ridículas.

A verdade é que hoje
As minhas memórias
Dessas cartas de amor
É que são
Ridículas.

(Todas as palavras esdrúxulas,
Como os sentimentos esdrúxulos,
São naturalmente
Ridículas.)

ÁLVARO DE CAMPOS, 21 DE OUTUBRO DE 1935


quinta-feira, 20 de outubro de 2016

FAZ HOJE 83 ANOS





Eu, vindo de onde não vim,
Perdi todos os caminhos...
Só como eu era uma Rosa
Coroaram-me de espinhos.

Deram-me o nome de ungido
A mim que era só Jesus...
"É em nós que o fogo reina"
Puseram na minha cruz.

Tive suplício entre dois
Que não eram quem mostravam.
Morri como eles morreram,
Morto, ainda me matavam...

Cinco pétalas que eu tinha
Em cinco chagas abriram
Com uma lança depois
Meu coração descobriram.

Do sangue e água nasceram
Dois modos de me entender...
Para uns fui água que bebam
Para outros sangue que ser.

Minha história não é escrita
Porque a escrita está errada.
"Deus é consciência", dizem
Ao ver a minha cruz alçada.

E quando no fim do mundo
Me vierem encontrar
A minha cruz será tudo
Mas eu é que hei-de ficar.

Das rosas dessa coroa
Que desejo fui eu só
A que fica nesta cruz
A dar vida e a fazer dó.

E essa cruz, que é toda a gente,
Ficará da cor da vida
Porque só meu sangue será
A madeira redimida.

E, viva, da cor do fogo,
Quando o sonho é (...)
Será o fogo que reina
E queima a cruz que o gerou.

E a água que dei terá ido
Pelo chão a se perder.
Meu sangue terá tingido
A cruz onde fui morrer.

FERNANDO PESSOA, 20 DE OUTUBRO DE 1933


quarta-feira, 19 de outubro de 2016

FAZ HOJE 104 ANOS




VISÃO

Minha alma fica em si. O exterior
É o que ela de comum com os outros tem;
O ponto onde se tocam e convém
As almas e os seus sonhos.

Tudo é ver. As ideias, o abstracto
Que há em mim é também visível,
Só que vê-lo parece não ser ver
Pensar é ver.

Quando não vejo e vejo Deus...
Vejo a sombra de Deus...Além de mim
Estou então... O individual é a minha
Imagem.

Mas tudo, em sua essência, é ideia... A cor
É ideia,
De modo que em tudo vejo Deus
Mundo translúcido de Deus.

FERNANDO PESSOA, 19 DE OUTUBRO DE 1912


terça-feira, 18 de outubro de 2016

FAZ HOJE 86 ANOS



Passa entre as sombras de arvoredo
Um vago vento que parece
Que não passou, que passa a medo,
Ou que há porque desaparece.

O ouvido escuta o não-ouvir,
A alma, no ouvido debruçada,
Sente uma angústia a não sentir
E quer melhor ou pior que nada.

É como quando a alma não tem
Quem ame, quem espere ou quem sinta,
Quando considerara um bem
O próprio mal, desde que não minta.

E entre onde as sombras do arvoredo
Sequestram sons e brisas prendem,
Este não passar passa a medo
E certas folhas se desprendem.

Então porque há folhas que caem,
Volta a ilusão de haver o vento,
Mas elas, caindo hirtas, traem,
Que não há brisa no momento.

Oh, som sozinho dessa queda
Das folhas secas no ermo chão,
Oh, som de nunca usada seda
Apertada na inútil mão,

Com que terrível semelhança
A qualquer voz feita em bruxedo,
Lembrais a morte e a desesperança,
E o que não passa passa a medo.

FERNANDO PESSOA, 18 DE OUTUBRO DE 1930


segunda-feira, 17 de outubro de 2016

FAZ HOJE 103 ANOS




No outono as horas que passam
Passam mais devagar
No outono as asas que esvoaçam
Parecem voar sem voar.

No outono o sorriso é tardo
Que as cousas tentam ter...
Mesmo esta ânsia erma em que ardo
Parece mal arder...

Só um lento desassossego
Só uma angústia vaga
Como de um país cego
Para o mar que o alaga.

Para o mar que ruge e esquece
Sobre as costas, (...)
E essa terra que o mar (...)
E sonha com ele tendo-o...



FERNANDO PESSOA, 17 DE OUTUBRO DE 1913


domingo, 16 de outubro de 2016

FAZ HOJE 102 ANOS



Acima da verdade estão os deuses.
A nossa ciência é uma falhada cópia
Da certeza com que eles
Sabem que há o Universo.

Tudo é tudo, e mais alto estão os deuses,
Não pertence à ciência conhecê-los,
Mas adorar devemos
Seus vultos como às flores,

Porque visíveis à nossa alta vista,
São tão reais como reais as flores
E no seu calmo Olimpo
São outra Natureza.

RICARDO REIS, 16 DE OUTUBRO DE 1914


sábado, 15 de outubro de 2016

FAZ HOJE 87 ANOS




ANIVERSÁRIO

No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,
Eu era feliz e ninguém estava morto.
Na casa antiga, até eu fazer anos era uma tradição de há séculos,
E a alegria de todos, e a minha, estava certa com uma religião qualquer.

No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,
Eu tinha a grande saúde de não perceber coisa nenhuma,
De ser inteligente para entre a família,
E de não ter as esperanças que os outros tinham por mim.
Quando vim a ter esperanças, já não sabia ter esperanças.
Quando vim a olhar para a vida, perdera o sentido da vida.

Sim, o que fui de suposto a mim mesmo,
O que fui de coração e parentesco,
O que fui de serões de meia-província,
O que fui de amarem-me e eu ser menino.
O que fui - ai, meu Deus!, o que só hoje sei que fui...
A que distância!...
(Nem o acho...)
O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!

O que eu sou hoje é como a humidade no corredor do fim da casa,
Pondo grelado nas paredes...
O que eu sou hoje (e a casa dos que me amaram treme através das minhas lágrimas),
O que eu sou hoje é terem vendido a casa.
É terem morrido todos,
É estar eu sobrevivente a mim-mesmo como um fósforo frio...

No tempo em que festejavam o dia dos meus anos...
Que meu amor, como uma pessoa, esse tempo!
Desejo físico da alma de se encontrar ali outra vez,
Por uma viagem metafísica e carnal,
Com uma dualidade de eu para mim...
Comer o passado como pão de fome, sem tempo de manteiga nos dentes!

Vejo tudo outra vez com uma nitidez que me cega para o que há aqui...
A mesa posta com mais lugares, com melhores desenhos na loiça, com mais copos,
O aparador com muitas coisas - doces, frutas, o resto na sombra debaixo do alçado -,
As tias velhas, os primos diferentes, e tudo era por minha causa,
No tempo em que festejavam o dia dos meus anos...

Pára, meu coração!
Não penses! Deixa o pensar na cabeça!
Ó meu Deus, meu Deus, meu Deus!
Hoje já não faço anos.
Duro.
Somam-se-me dias.
Serei velho quando o for.
Mais nada.
Raiva de não ter trazido o passado roubado na algibeira!...

O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!...

ÁLVARO DE CAMPOS, 15 DE OUTUBRO DE 1929


sexta-feira, 14 de outubro de 2016

FAZ HOJE 86 ANOS




Cruz na porta da tabacaria!
Quem morreu? O próprio Alves? Dou
Ao diabo o bem-estar que trazia.
Desde ontem a cidade mudou.

Quem era? Ora, era quem eu via.
Todos os dias o via. Estou
Agora sem essa monotonia.
Desde ontem a cidade mudou.

Ele era o dono da tabacaria.
Um ponto de referência de quem sou
Eu passava ali de noite e de dia.
Desde ontem a cidade mudou.

Meu coração tem pouca alegria,
E isto diz que é morte aquilo onde estou.
Horror fechado da tabacaria!
Desde ontem a cidade mudou.

Mas ao menos a ele alguém o via,
Ele era fixo, eu, o que vou,
Se morrer, não falto, e ninguém diria.
Desde ontem a cidade mudou.

ÁLVARO DE CAMPOS, 14 DE OUTUBRO DE 1930