domingo, 31 de março de 2019

FAZ HOJE 117 ANOS Mote: Teus olhos contas escuras, São duas, Avé Marias Dum rosário d'amarguras Que eu rezo todos os dias. (Augusto Gil) Glosa: Quando a dor me amargurar, Quando sentir penas duras, Só me podem consolar Teus olhos, contas escuras. Deles só brotam amores; Não há sombra d'ironias; Esses olhos sedutores São duas Avé Marias. Mas se a ira os vem turvar Fazem-me sofrer torturas E as contas todas rezar Dum rosário d'amarguras. Ou se os alaga a aflição Peço p'ra ti alegrias Numa fervente oração Que rezo todos os dias! FERNANDO PESSOA, 31 DE MARÇO DE 1902



FAZ HOJE  117 ANOS

Mote:

Teus olhos contas escuras,
São duas, Avé Marias
Dum rosário d'amarguras
Que eu rezo todos os dias.

(Augusto Gil)

Glosa:

Quando a dor me amargurar,
Quando sentir penas duras,
Só me podem consolar
Teus olhos, contas escuras.

Deles só brotam amores;
Não há sombra d'ironias;
Esses olhos sedutores
São duas Avé Marias.

Mas se a ira os vem turvar
Fazem-me sofrer torturas
E as contas todas rezar
Dum rosário d'amarguras.

Ou se os alaga a aflição
Peço p'ra ti alegrias
Numa fervente oração
Que rezo todos os dias!

FERNANDO PESSOA, 31 DE MARÇO DE 1902


sábado, 30 de março de 2019

FAZ HOJE 88 ANOS





Não tenho quinta nenhuma.
Se a quero ter p'ra sonhar,
Tenho que a extrair da bruma
Do meu mole meditar.

E então, desfazendo a névoa
Que há sempre dentro de nós,
Progressivamente elevo-a
Até uma quinta a sós.

Vejo os tanques, vejo as calhas
Por onde a água vai pequena,
Vejo os caminhos com falhas,
Vejo a eira erma e serena.

E, contente deste nada
Que em mim mesmo faço externo,
Gozo a frescura relvada
Da não-quinta em que me interno.

Vilegiatura impossível,
Dou-lhe nós para lembrar,
E esqueço-a ao primeiro nível
Do meu mole meditar.

FERNANDO PESSOA, 30 DE MARÇO DE 1931


sexta-feira, 29 de março de 2019

FAZ HOJE 90 ANOS




Aqui está-se sossegado.
Longe do mundo e da vida,
Cheio de não ter passado,
Até o futuro se olvida.
Aqui está-se sossegado.

Tinha os gestos inocentes,
Seus olhos riam no fundo.
Mas invisíveis serpentes
Faziam-na ser do mundo.
Tinha os gestos inocentes.

Aqui tudo é paz e mar.
Que longe a vista se perde
Na solidão a tornar
Em sombra o azul que é verde!
Aqui tudo é paz e mar.

Sim, poderia ter sido...
Mas vontade nem razão
O mundo têm conduzido
A prazer ou conclusão.
Sim, poderia ter sido.

Agora não esqueço e sonho.
Fecho olhos, oiço o mar
E de ouvi-lo bem, suponho
Que vejo azul a esverdear.
Agora não esqueço o sonho.

Não foi propósito, não.
Os seus gestos inocentes
Tocavam no coração
Como invisíveis serpentes.
Não foi propósito, não.

Durmo, desperto e sozinho.
Que tem sido a minha vida?
Velas de inútil moinho -
Um movimento sem lida...
Durmo, desperto e sozinho.

Nada explica nem consola.
Tudo está certo depois.
Mas a dor que nos desola,
A mágoa de um não ser dois -
Nada explica nem consola.

FERNANDO PESSOA, 29 DE MARÇO DE 1929


quinta-feira, 28 de março de 2019

FAZ HOJE 89 ANOS





AMUN-RA

Meu ser vive na noite e no outramente,
Vestígio e esteira de onde o barco foi...

Nada é, tudo se outra. A consciência
É o vácuo entre o que somos e Ele é.
E a Natureza é a sombra que se vê
Encher de luz o vácuo e a luz é ciência.
Enche o vácuo de temor
Enche de movimento a inexistência.

Mas onde a luz que é Ele e a intermitência?
Onde está o o universo onde se lê
Com a voz da Razão verbo de fé...
Onde é que o Nada encontra a consistência?

Paro em mim mesmo, exausto de pensar-me,
No que sou, Tu, Ser que o ser enche e cobre,
E o silêncio é ouvir-te e renovar-me
Oiço e um horror me os olhos da alma vasa.
E a Sua agonia é um manto sobre
O não haver senão a Sua asa.
Dentro d'Ele seu ser de si extravasa.

Foi antes do Não-ser de onde Deus veio,
Na antiga Noite, antes de a noite ser,
Que no abismo de Ele teve ver
O Espírito que olha e está mo meio.

E à roda, fluido de anterior anseio,
Começo abstracto de poder haver
Em círculos concêntricos de ter
Concebeu-se o universo, a si alheio.

Mas o Fantasma guarda a porta ausente,
E inda haveria mais que eternos céus
Que passar, antes que ter de ser fosse ente.
Então abriu a porta e Ele era os seus.
Amanheceu-se em flor no inexistente.
Sem ser morte. A sua morte é Deus.

FERNANDO PESSOA, 28 DE MARÇO DE 1930