segunda-feira, 31 de janeiro de 2011

FAZ HOJE 89 ANOS



Pequeno é o espaço que de nós separa
O que havemos de ser quando morrermos.
Não conhecemos quem será então
Aquele que hoje somos.
Só o passado, comum a nós e a ele,
Será indício de que a nossa alma
Persiste e, como antiga ama, conta
Histórias esquecidas...
Se pudéssemos pôr o pensamento
Com exacta visão adentro d'idéia
Que havemos de ter naquela hora,
Estranhos olharíamos
O que somos, cuidando ver outro,
E o 'spaço temporal que hoje habitamos
Luz onde a nossa alma nasceu
Alheia antes de a termos.


RICARDO REIS 31 DE JANEIRO DE 1922


domingo, 30 de janeiro de 2011

FAZ HOJE 84 ANOS



Gozo sonhado é gozo, ainda que em sonho.
Nós o que nos supomos nos fazemos,
Se com atenta mente
Resistirmos em crê-lo.
Não, pois, meu modo de pensar nas coisas,
Nos seres e no fado me censures.
Para mim crio tanto
Quanto para mim crio.
Fora de mim, alheio ao em que penso,
O fado cumpre-se. Mas eu me cumpro
Segundo o âmbito breve
Do que por meu me é dado.


RICAEDO REIS, 30 DE JANEIRO, DE 1927

FAZ HOJE 85 ANOS



O CONTRA-SÍMBOLO


Uma só luz sombreia o cais.
Há som som de barco que vai indo.
Adeus! Não nos veremos mais!
A maresia vai subindo,
Desde o fundo do mar vem vindo!

E o cheiro pútrido a mar morto
Cerra a atmosfera de pensar
Até tornar-se este um porto
E este cais a bruxulear.

Uma estação ferroviária
Algures no esperar campestre
Do expresso trovoando a área
De tudo quanto gire a oeste.

Apeadeiro universal
Onde cada um 'spera isolado
Ao ruído - mar ou pinhal? -
O expresso inútil atrasado.

E no desdobre da memória
O viajante indefinido
Ouve contar-se só a história
Do cais morto e do barco ido.


FERNANDO PESSOA, 30 DE JANEIRO DE 1926

FAZ HOJE 90 ANOS



Um verso repete
Uma brisa fresca,
O verão nos campos,
E sem gente ao sol
O átrio da alma

Ou, no inverno, ao longe
Os cimos da neve,
À lareira toadas
Dos contos herdados,
E um verso ao dizê-lo.

Os deuses concedem
Poucos mais prazeres
Que estes, que são nada.
Mas também concedem
Não querer ter outros.


RICARDO REIS, 30 DE JANEIRO DE 1921

FAZ HOJE 92 ANOS




O rio, sem que eu queira, continua.
Espelha-se, fora do eu ser eu, a lua
Na águas do meu ser independentes...
Meus pensamentos, sóbrios ou doentes
Nunca saem p'ra fora do meu ser.
No barco ao pé da margem, ao mover
O remador os remos, fica tudo...
A noite é clara, o coração é mudo
E a palavra que eu vou dizer, e fora,
A ser dita, a noção na alma da hora,
Passa como um murmúrio vão do vento...
E eu, só na noite com o meu pensamento
Não me distingo do que me rodeia...
E então é só real a lua cheia...

FERNANDO PESSOA, 30 DE JANEIRO DE 1919

sábado, 29 de janeiro de 2011

FAZ HOJE 78 ANOS


A clareza falsa, rígida, não-lar dos hospitais
A alegria humana, vivaz, sobre o caso da vizinha
Da mãe inconsolável a que o filho morreu há um ano

Trapos somos, trapos amamos, trapos agimos -
Que trapo tudo que é este mundo!

ÁLVARO DE CAMPOS, 29 DE JANEIRO DE 1933

FAZ HOJE 78 ANOS


Na ampla sala de jantar das tias velhas
O relógio tiquetaqueava o tempo mais devagar.
Ah o horror da felicidade que se não conheceu
Por se ter conhecido sem se conhecer,
O horror do que foi porque o que está está aqui.
Chá com torradas na província de outrora
Em quantas cidades me tens sido memória e choro!
Eternamente criança,
Eternamente abandonado,
Desde que o chá e as torradas me faltaram no coração.

Aquece, meu coração!
Aquece ao passado,
Que o presente é só uma rua onde passa quem me esqueceu...


ÁLVARO DE CAMPOS, 29 DE JANEIRO DE 1933

FAZ HOJE 90 ANOS



Cumpre a lei, seja vil ou vil tu sejas.
Pouco pode o homem contra a externa vida.
Deixa haver injustiça.
Nada mudas que mudas.
Não tens mais reino do que a própria mente.
Essa, em que és dono, grato o Fado e os Deuses,
Governa até à fronteira
Onde mora a verdade.
Aí, ao menos, só por inimigos
Os grandes deuses e o Destino ostentas.
Não há dupla derrota
De derrota e vileza.
Assim penso, e esta mórbida justiça
Com queremos intervir nas coisas,
Expilo, como um servo
Infiel da ampla mente.
Se nem de mim posso ser dono, como
Quero ser dono ou lei do que acontece
Onde me a mente e o corpo
Não são mais do que coisas?
Basta-me que me baste, e o resto gire
Na órbita prevista, em que até os deuses
Giram, centros servos
De um movimento imenso.

RICARDO REIS, 29 DE JANEIRO DE 1921


sexta-feira, 28 de janeiro de 2011

FAZ HOJE 89 ANOS


Amareleceu o chão.
Um vago vento erra,
Como um sonho mau num sono,
Na lívida solidão.

Soergue as folhas, e pousa
As folhas,e volve, e revolve,
E esvai-se inda outra vez.
Mas a folha não repousa,
E o vento lívido volve
E expira na lividez.

Eu já não sou que era;
O que eu sonhei, morri-o;
E até do que hoje sou
Amanhã direi Quem dera
Volver a sê-lo!... Mais frio
O vento vago voltou.


FERNANDO PESSOA, 28 DE JANEIRO DE 1922

quinta-feira, 27 de janeiro de 2011

FAZ HOJE 87 ANOS



GOMES LEAL

Sagra, sinistro, a alguns o astro baço.
Seus três anéis irreversíveis são
A desgraça, a amargura, a solidão...
Oito luas fatais fitam do espaço.

Este, poeta, Apolo em seu regaço
A Saturno entregou. A plúmbea mão
Lhe ergueu ao alto o aflito coração,
E, erguido, o apertou, sangrando lasso.

Inúteis oito luas da loucura
Quando a cintura tríplice denota
Solidão e desgraça e amargura!

Mas da noite sem fim um rastro brota,
Vestígio de maligna formosura...
É a lua além de Deus, álgida e ignota.


FERNANDO PESSOA, 27 DE JANEIRO DE 1924



FAZ HOJE 102 ANOS



NOCTURNO


Dorme, criança, dorme
Dorme que eu velarei;
Sozinho na noite enorme
Um conto me lembrarei
Que depois, -dorme, criança, dorme -
Cantando te contarei.

Era um céu negro e imenso
E em baixo um mar sem fim
Um horror frio e suspenso
E uma voz descia dentro em mim
Sobre o mar, sobre o mar imenso
Chorando dizia assim:

"Cai lentamente o pranto,
Resvala para o chão,
E eu choro, mas fica no entanto
Na mesma solidão
Como o silêncio amargo do pranto -
No fundo do coração.

Sonhei que amaria
Um espírito do luar
Que morrendo eu encontraria
Ao pé de mim a sonhar
E agora choro noite e dia
Sobre as ondas deste mar.

Chamo qual se saudade
Homem do sempre-além
Mas apenas na soledade
Minha voz vai e vem.
E a minha alma sente funda saudade
De quando o sonho era um bem.

Andei, passei chorando
Chorando há muito vou
Cesse o ardor vago e brando
De quem muito sonhou
Mas só a si triste e chorando
A minha alma se encontrou.

Me sinto em mim um soluço
Pesadelo d'amargor
O abismo eterno em que me debruço
É a eternidade sem amor..."
E assim, com um soluço
Esvai-se a voz da dor.

Quando fores grande - dorme! -
Este conto contarei...
Por ora na noite enorme
Enquanto te embalarei
Ignora tudo, criança, dorme,
Dorme que eu velarei...


FERNANDO PESSOA, 27 DE JANEIRO DE 1909

quarta-feira, 26 de janeiro de 2011

FAZ HOJE 92 ANOS



Já sinto em sonhos sobre o eu 'star morto
A erva crescer.
E como a noiva que vê do porto
A nau crescer

Que traz seu noivo e chora por tê-lo,
Porque, chegado,
Morre a feliz 'sperança de vê-lo
E a 'sperança é bela.

Assim... não sei..sobre o eu estar morto...
A erva...

Mas que tem isso com o eu 'star morto.
Sinto-o e não sei...

Morre a 'sperança que tem, de vê-lo
E tê-lo é perder querê-lo ter ao lado.

FERNANDO PESSOA, 26 DE JANEIRO DE 1919

terça-feira, 25 de janeiro de 2011

FAZ HOJE 82 ANOS



Talvez não seja mais do que o meu sonho...
Esse sorriso será para outro, ou a propósito de outro,
Loura débil...
Esse olhar para mim casual como um calendário...
Esse agradecer-me quando a não deixei cair do eléctrico..
Um agradecimento...
Perfeitamente...
Gosto de lhe ouvir em sonho o seguimento que não houve
De conversas que não chegou a haver.

Há gente que nunca é adulta na prática!
Creio mesmo que pouca gente chega a ser adulta - prática -
E a que chega a ser adulta e prática morre sem dar por nada.

Loura débil, figura inglesa absolutamente portuguesa,
Cada vez que te encontro lembro-me dos versos que esqueci...
É claro que não me importo nada contigo
Nem me lembro de te ter esquecido senão quando te vejo,
Mas o encontrar-te dá som ao dia e ao desleixo
Uma poesia de superfície.
Uma coisa a mais no a menos da improficuidade da vida...

Loura débil, feliz porque não és inteiramente real,
Porque nada que vale a pena ser lembrado é inteiramente real,
E nada que vale a pena ser real vale a pena.


ÁLVARO DE CAMPOS 25 DE JANEIRO DE 1929

FAZ HOHJE 83 ANOS


ESCRITO NUM LIVRO
ABANDONADO EM VIAGEM

Venho dos lados de Beja.
Vou para o meio de Lisboa.
Não trago nada e não acharei nada.
Tenho o cansaço antecipado do que não acharei.
E a saudade que sinto não é nem é do passado nem do futuro.
Deixo escrito neste livro a imagem do meu desígnio morto:
Fui, como ervas, e não me arrancaram.


ÁLVARO DE CAMPOS, 25 DE JANEIRO DE 1928

segunda-feira, 24 de janeiro de 2011

FAZ HOJE 94 ANOS



O TRAIDOR


Puseram-no contra uma parede
Com os olhos vendados.
Parou um silêncio... Uma sede
Tomou-o... Houve passos afastados...

A casa branca sorria
No seu passado de infância...
No ar sem aroma havia
A sua alegre fragrância...

A mãe a beijá-lo... O arco
A meio do quintal...
Uma voz... A luz no charco
Viu tudo que fez mal...

Depois a cabeça loura,
Os olhos azuis, a voz
Primeiro... à porta....a hora

O seu sorrir, o olhar
Que lhe deu tudo, o instante
Em que se viu debruçar
Fogo... disse o comandante.

FERNANDO PESSOA, 24 DE JANEIRO DE 1917

domingo, 23 de janeiro de 2011

FAZ 91 ANOS

Fiquei louco, fiquei tonto,
Meus beijos foram sem conto,
Apertei-a contra mim,
Enlacei-a nos meus braços,,,,,,,,
Embriaguei-me de abraços,
Fiquei louco e foi assim.


Dá-me beijos, dá-me tantos
Que enleado em teus encantos,
Preso nos abraços teus,
Eu não sinta a própria vida
Nem minha alma, ave perdida
No azul-amor dos teus céus.


Boquinha dos meus amores,
Lindinha como flores,
Minha boneca que tem
Bracinhos para enlaçar-me
E tantos beijos p'ra dar-me
Quantos eu lhe dou também.


Botão de rosa menina,
Carinhos, pequenina,
Corpinho de tentação,
Vem morar na minha vida,
Dá em ti terna guarida
Ao meu pobre coração.


Não descanso, não projecto,
Nada certo e sempre inquieto
Quando te vejo, amor,
Por te beijar e não beijo,
Por não me encher o desejo
Mesmo o meu beijo maior.


Ai que tortura, que fogo,
Se estou perto dela é logo
Uma névoa em meu olhar,
Uma nuvem em minha alma,
Perdida de toda a calma,
E eu sem a poder achar.




FERNANDO PESSOA, JANEIRO DE 1920

sábado, 22 de janeiro de 2011

FAZ HOJE 82 ANOS



A tua voz fala amorosa
Tão meiga fala, que me esquece
Que é falsa a sua meiga prosa.
Meu coração desentristece.

Sim, como a música sugere
O que na música não 'stá,
Meu coração nada mais quere
Que a melodia que em ti há.

Amar-me? Quem o crera? Fala
Na mesma voz que nada diz...
Se és uma música que embala,
Eu oiço, ignoro e sou feliz.

Que importa o que a verdade exalça
Se sou feliz desta maneira.
Nem há felicidade falsa.
Enquanto dura é verdadeira,


FERNANDO PESSOA, 22 DE JANEIRO DE 1929


FAZ HOJE 88 ANOS





As rosas amo dos jardins de Adónis,
Essas vólucres, amo, Lídia, rosas,
Que em o dia em que nascem,
Em esse dia morrem.
A luz para elas é eterna, porque
Nascem nascido já o sol, e acabam
Antes que Apolo deixe
O seu curso visível.
Assim façamos nossa vida um dia,
Inscientes, Lídia, voluntariamente,
Que há noite antes e após
O pouco que duramos.

RICARDO REIS, 22 DE JANEIRO DE 1923

sexta-feira, 21 de janeiro de 2011

FAZ HOJE 96 ANOS



Frei, João, teus poemas
Ascéticos, não mostram
Mais do que o teu desejo
De não sentir nada...


FERNANDO PESSOA, 21 DE JANEIRO DE 1915

quinta-feira, 20 de janeiro de 2011

FAZ HOJE 78 ANOS




Cabeça augusta, que uma luz contorna,
Que há entre mim e o mundo que me faz
(Porque em espinhos a auréola se torna?)
Ansiar a minha morte e a tua paz?

A tua história - Pilatos ou Caifás
Que tem? São sonhos que o narrar transtorna.
Não é esse o Calvário a que te traz
Tua sina onde todo o fel se entorna.

Não. É em mim que se o Calvário se ergueu.
É em meu coração abandonado
Que Ele, cabeça augusta, alto sofreu.

Quem na Cruz onde está ermo e pregado
O pregou? Foi Romano ou foi Judeu?
Bate-me o coração. Meus Deus, fui eu!


FERNANDO PESSOA, 20 DE JANEIRO DE 1933

FAZ HOJE 78 ANOS


Cabeça augusta, que uma luz contorna,
Que há entre mim e o mundo que me faz
(Porque em espinhos a auréola se transforma?)
Ansiar a minha morte e a tua paz?

A tua história - Pilatos ou Caifás
Que tem? São sonhos que o narrar transtorna,
Não é esse o Calvário a que te traz
Tua sina onde todo o fel se entorna.

Não. É em mim que se o Calvário ergueu.
É em meu coração abandonado
Que Ele, cabeça augusta, alto sofreu.

Quem na Cruz onde está ermo e pregado
O pregou? Foi Romano ou foi Judeu?
Bate-me o coração. Meu Deus, fui eu!


FERNANDO PESSOA, 20 DE JANEIRO DE 1933

FAZ HOJE 98 ANOS


DOBRE


Peguei no meu coração
E pu-lo na minha mão.

Olhei-o como quem olha
Grãos de areia ou uma folha.

Olhei-o pávido e absorto
Como quem sabe estar morto;

Com a alma só comovida
Do sonho e pouco da vida.

FERNANDO PESSOA, 20 DE JANEIRO DE 1913

quarta-feira, 19 de janeiro de 2011

FAZ HOJE 91 ANOS


POEMA INCOMPLETO

A dor, que me tortura sem que eu tenha
Caminho ou alma para lhe fugir,
Parece que, ao tocar-me, me desdenha,
E só me toca p'ra o fazer sentir.

Um nojo, não de mim por minha dor,
Mas como que de minha dor por mim,
Jaz no fundo soez do meu rancor
Contra a dor sem razão que não tem fim.

E, neste circuito de dor e mágoa,
Não me encontro senão p'ra me odiar,
Como o viandante à noite ouve um som de água
Apenas para dele se afastar.


FERNANDO PESSOA, 19 DE JANEIRO DE 1920

terça-feira, 18 de janeiro de 2011

FAZ HOJE 77 ANOS


Teu nome ignoro. Teu perfil deslembro.
Tuas palavras esqueci.
Era manhã, nevoeiro, era Dezembro,
Quando te achei e te perdi.
Sonho ou relembro?


Não sei. Era uma manhã de nevoeiro
Envolvia o que havia e o que eu pensava,
Como um falso refúgio derradeiro
Do que em parte nenhuma estava.
Sonho, prolixo e inteiro,


Mas se, nas teclas tua mão errar,
Assim, despida de ser tua, sei
Que talvez poderia achar
Entre o que não pude encontrar
Aquilo que não acharei.


FERNANDO PESSOA, 18 DE JANEIRO DE 1934
(Da Edição Crítica – 1934-1935 – INCM)

segunda-feira, 17 de janeiro de 2011

FAZ 98 ANOS

ABDICAÇÃO

Toma-me, ó noite eterna, nos teus braços
E chama-me teu filho.
Eu sou um rei
Que voluntariamente abandonei
O meu trono de sonhos e cansaços.

Minha espada, pesada a braços lassos,
Em mãos viris e calmas entreguei;
E meu ceptro e coroa – eu os deixei
Na antecâmara, feitos em pedaços.

Minha cota de malha, tão inútil,
Minhas esporas, de um tinir tão fútil,
Deixei-as pela fria escadaria.

Despi a realeza, corpo e alma,
E regressei à noite antiga e calma
Como a paisagem ao morrer do dia.


FERNANDO PESSOA, JANEIRO DE 1913

domingo, 16 de janeiro de 2011

FAZ HOJE 80 ANOS




Sim, a música, e já a mulher,
Não gosto tanto do marido.
Que sonhos vêem pertencer
A um passado nunca havido?

Sim, a música… Era melhor
Que a vida fosse sem trabalhos…

Tudo o que temos é engano.
A música! Que Diabo! Faz
Surgir um coração humano
Do corpo aonde a alma jaz.

Como se há-de ir fazer chá eterno
E ter dever ao pé de si,
Quanto este encanto vem do Inferno?
Serpente, ainda estás aqui!


FERNANDO PESSOA, 16 DE JANEIRO DE 1931


sábado, 15 de janeiro de 2011

FEZ HOJE 83 ANOS


TABACARIA

Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
à parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.

Janela do meu quarto,
Do meu quarto de um dos milhões do mundo que ninguém sabe quem é
(E se soubesse quem é, o que saberiam?)
Dais para o mistério de uma rua cruzada constantemente por gente,
Para uma rua inacessível a todos os pensamentos,
Real, impossivelmente real, certa, desconhecidamente certa,
Como o mistério das coisas por baixo das pedras e dos seres,
Com a morte a pôr humidade nas paredes e cabelos brancos nos homens,
Com o destino a conduzir a carroça de tudo pela estrada de nada.

Estou hoje vencido, como se soubesse a verdade.
Estou hoje lúcido, como se estivesse para morrer,
E não tivesse mais irmandade com as coisas
Senão uma despedida, tornando-se esta casa e este lado da rua
A fileira das carruagens de um combóio, e uma partida apitada
De dentro da minha cabeça,
E uma sacudidela dos meus nervos e um ranger de ossos na ida.

Estou hoje perplexo, como quem pensou, achou e esqueceu.
Estou hoje dividido entre a lealdade que devo
ÀTabacaria do outro lado da rua, como coisa real por fóra,
E à sensação de que tudo é sonho como coisa real por dntro.

Falhei em tudo.
Como não fiz propósito nenhum, talvez tudo fosse nada.
A aprendizagem que me deram
Desci dela pela janela das trazeiras da casa.
Fui até ao campo com grandes propósitos
Mas lá encontrei ervas e árvores,
E quando havia gente era igual à outra.
Saio da janela, sento-me numa cadeira. Em que hei-de pensar?

Que sei eu do que serei, eu que não sei o que sou?
Ser o que penso? Mas penso ser tanta coisa!
E há tantos que pensam ser a mesma coisa que não pode haver tantos!

Génio? Neste momento
Cem mil cérebros se concebem em sonho génios como eu,
E a história não marcará, quem sabe?, nem um,
Nem haverá senão estrume de tantas conquistas futuras.
Não, não creio em mim.
Em todos os manicómios há doidos malucos com tantas certezas!
Eu,que não tenho nenhuma certeza, sou mais certo ou menos certo?
Não, nem em mim...
Em quantas mansardas e não-mansardas do mundo
Não estão nesta hora génios-para-si-mesmos sonhando?
Quantas aspirações altas e nobres e lúcidas -
Sim, verdadeiramente altas e nobres e lúcidas -
E quem sabe se realizáveis,
Nunca verão a luz do sol real nem acharão ouvidos de gente?
O mundo é para quem nasce para o conquistar
E não para quem sonha que pode conquistá-lo, ainda que tenha razão.
Tenho sonhado mais que o que Napoleão fez.
Tenho apertado ao peito hipotético mais humanidades do que Cristo.
Tenho feito filosofias em segredo que nenhum Kant escreveu.
Mas sou, e talvez serei sempre, o da mansarda,
Ainda que não more nela;
Serei sempre o que não nasceu para isso;
Serei sempre o que só tinha qualidades;
Serei sempre o que esperou que lhe abrissem a porta ao pé de uma parede sem porta,
E cantou a cantiga do infinito numa capoeira,E ouviu a voz de Deus num poço tapado.
Crer em mim? Não, nem em nada.
Derrame-me a Natureza sobre a cabeça ardente
O seu sol, a sua chuva, o vento que me acha o cabelo,
E o resto que venha se vier,ou tiverque vir, ou não venha.
Escravos cardíacos da estrêlas,
Conquistámos todo o mundo antes de nos levantarmos da cama;
Mas acordámos e ele é opaco,
Levantámo-nos e ele é alheio,
Saímos de casa e ele é a terra inteira,
Mais o sistema solar, a Via Láctea e o Indefinido.

(Como chocolates, pequena;
Come chocolates!
Olha que não há metafísica no mundo senão chocolates.
Olha que as religiões todas não ensinam mais que a confeitaria.
Come, pequena suja, come!
Pudesse eu comer chocolates com a mesma verdade com que comes!
Mas eu penso e, ao tirar o papel de prata, que é de folha de estanho,
Deito tudo para o chão, como tenho deitado a vida.)

Mas ao menos fica da amargura do que nunca serei
A caligrafia rápida deste versos,
Pórtico partido para o Impossível.
Mas ao menos consagro a mim mesmo um desprezo sem lágrimas,
Nobre ao menos no gesto com que atiro
A roupa suja que sou, sem rol,p'ro decurso das coisas,
E fico em casa sem camisa.

(Tu, que consolas, que não existe e por isso consolas,
Ou deusa grega, concebida como estátua que fosse viva,
Ou patrícia romana, impossivelmente nobre e nefasta,
Ou princesa de trovadores, gentilíssima e colorida,
Ou marquesa do século dezoito, decotada e longínqua,
Ou cocotte c´lebre do tempo dos nossos pais,
Ou não sei o quê moderno - não concebo bem o quê -
Tudo isso, seja o que for, que sejas, se pode inspirar que inspire!
O meu coração é um balde despejado.
Como os que invocam espíritos invocam espíritos invoco
A mim mesmo e não encontro nada.
Chego à janela e vejo a rua com uma nitidez absoluta.
Vejo as lojas, vejo os passeios, vejo os carros que passam,
Vejo os entes vestidos que se cruzam,
Vejo os cães que também existem,
E tudo isso me pesa como uma condenação ao degredo.
E tudo isso é estrangeiro, como tudo.)

Vivi, estudei, amei e até cri,
E hoje não há mendigo que eu não inveje só por não ser eu.
Olha a cada um os andrajos, e as chagas e a mentira,
E penso: talvez nunca vivesses nem estudasses nem amasses nem cresses
(Porque é possível fazer a realidade de tudo isso sem fazer nada disso);
Talvez tenhas existido apenas. como um lagarto a quem cortam o rabo
E que é rabo para aqém do lagarto remexidamente.

Fiz de mim o que não soube,
E o que podia fazer de mim não o fiz.
O dominó que vesti era errado.
Conheceram-me logo por quem era e não desmenti, e perdi-me.
Quando quis tirar a máscara,
Estava pegada à cara.
Quando a tirei e me vi ao espelho,
Já tinha envelhecido.
Estava bêbado, já não sabia vestir o dominó que não tinha tirado.
Deitei fora a máscara e dormi no vestiário
Como um cão tolerado pela gerência
Por ser inofensivo
E vou escrever esta história para provar que sou sublime.

Essência musical dos meus versos inúteis,
Quem me dera encontrar-te como coisa que eu fizesse,
E não ficasse sempre defronte da Tabacaria defronte,
Calcando aos pés a consciência de estar existindo,
Como um tapete em que um bêbado tropeça
Ou um capacho que os ciganos roubaram e que não valia nada.

Mas o Dono da Tabacaria chegou à porta e ficou à porta.
Olho-o com o desconforto da cabeça mal voltada
E com o desconforto da alma mal-entendendo.
Ele morrerá e eu morrei.
Ele deixará a tabuleta, eu os versos.
A certa altura morrerá a tabuleta também e os versos também.
Depois de certa altura morrerá a rua onde esteve tabuleta,
E a língua em que foram escritos os versos.
Morrerá depois o planeta girante em que tudo isto se deu.
Em outros satélites de outros sistemas qualquer coisa como gente
Continuará fazendo coisas como versos e vivendo por baixo de coisas como tabuletas.
Sempre uma coisa defronte da outra,
Sempre uma coisa tão inútil como a outra,
Sempre o impossível tão estúpido como o real,
Sempre o mistério do fundo tão verto como o sono do mistério da superfície,
Sempre isso, ou outra coisa ou nem uma coisa nem outra.

Mas um homem entrou na Tabacaria (para comprar tabaco?),
E a realidade plausível cai de repente em cima de mim.
Semiergo-me, convencido, humano
E vou tencionar escrever estes versos em que digo o contrário.

Acendo um cigarro ao pensar em escreve-los
E saboreio no cigarro o prazer da libertaçáo de todo os pensamentos.
Sigo o fumo como a uma rota própria,
E gozo, num momento sensitivo e competente,

A libertação de todas as especulações
E a consciência de que a metafísica é uma consequência de estar mal disposto.

Depois deito-me para trás na cadeira
E continuo fumando.
Enquanto o Destino mo conceder continuarei fumando.

(Se eu casasse com a filha da minha lavadeira
Talvez fosse feliz.)
Visto isto, levanto-me da cdeira. Vou à janela.

O homem sai da Tabacaria (metendo o troco na algibeira das calças?).
Ah, conheço-o: é o Esteves sem metafísica.
(O Dono da Tabacaria chegou à porta)
Como por um instinto divino o Esteves voltou-se e viu-me.
Acenou-me adeus e gritei-lhe Adeus ó Esteves!, o universo
Reconstrui-se-me sem ideal nem esperança, e o Dono da Tabacaria sorriu.


ÁLVARO DE CAMPOS, 15 DE JANEIRO DE 1928

FAZ HOJE 91 ANOS


A CANÇÃO


Sol nulo dos dias vãos,

Cheios de lida e de calma,

Aquece ao menos as mãos

A quem não entras na alma!



Que ao menos a mão, roçando

A mão que por ela passe,

Com extremo calor brando

O frio da alma disfarce!



Senhor, já que a dor é nossa

E a fraqueza que ela tem,

Dá-nos ao menos a força

De não a mostrar a ninguém!



Ah, a angústia, a raiva vil, o desespero

De não poder confessar

Num tom de grito, num último grito austero

Meu coração a sangrar!



Falo, e as palavras que digo são um som.

Sofro e sou eu.

Ah, arrancar à música o segredo do tom

Do grito seu!



Ah, a fúria de a dor nem ter sorte em gritar,

De o grito não ter

Alcance maior do que o silêncio, que volta, do ar,

Na noite sem ser!



FERNANDO PESSOA, 15 DE JANEIRO DE 1920

FAZ HOJE 91 ANOS



Leve, breve, suave,

Um canto de ave

Sobe no ar que principia

O dia.

Escuto e passou…

Parece que foi só porque escutei

Que parou.



Nunca, nunca, em nada,

Raie a madrugada,

Ou ‘splenda o dia ou doire no declive,

Tive

Prazer a durar

Mais do que nada, a perda antes de eu o ir

Gozar.


FERNANDO PESSOA, 15 DE JANEIRO DE 1920