sexta-feira, 31 de maio de 2013

FAZ HOJE 86 ANOS




Quem com meu nome é obsceno nas paredes? 
A sucessão das horas imprevistas 
Não me traz novas das horas nunca vistas, 
E os pescadores vão tirar as redes… 

Mercê do ocaso, no mar calmo há paz, 
Mas o cansaço que nos toma dói. 
Vida do mar? Matinas do herói? 
Quem me leva tudo isso, ou me lo traz? 

Tinta entornada do poema sonho...
A ficção morta na estouvada mente, 
E um pouco de fugaz e inconsequente 
No seguimento paralítico do sonho... 



FERNANDO PESSOA, 31 DE MAIO DE 1927

quinta-feira, 30 de maio de 2013

FAZ ESTE MÊS 80 ANOS



Penso em ti no silêncio da noite, quando tudo é nada,
E os ruídos que há no silêncio fazem o próprio silêncio,
Então, sozinho de mim, passageiro parado
De uma viagem em Deus, inutilmente penso em ti.

Todo o passado, em que foste um momento eterno,
É como este silêncio de tudo.
Todo o perdido, em que foste o que mais perdi,
É como estes ruídos,
Todo o inútil, em que foste o que não houvera de ser
É como o nada por ser este silêncio nocturno.

Tenho visto morrer, ou ouvido que morreram,
Quantos amei ou conheci,
Tenho visto não saber mais nada deles de tantos que foram
Comigo, e pouco importa se foi um homem ou uma conversa,
Ou um parvo omitido do mundo,
E o mundo hoje para mim é um cemitério de noite
Branco e negro de campas e árvores e de luar alheio
E é neste sossego absurdo de mim e de tudo que penso em ti.


ÁLVARO DE CAMPOS, MAIO DE 1933

quarta-feira, 29 de maio de 2013

FAZ HOJE 95 ANOS




O que ouviu os meus versos disse-me: Que tem isso de novo?
Todos sabem que uma flor é uma flor e uma árvore é uma árvore.
Mas eu respondi, nem todos, ninguém.
Porque todos amam as flores por serem belas, e eu sou diferente.
E todos amam as árvores por serem verdes e darem sombra, mas eu não.
Eu amo as flores por serem flores, directamente.
Eu amo as árvores por serem árvores, sem o meu pensamento.


ALBERTO CAEIRO, 29 DE MAIO DE 1918

terça-feira, 28 de maio de 2013

FAZ HOJE 96 ANOS




NUVEM

As nuvens passam pelo céu,
As nuvens passam, lentamente.
Minha alma perde o vago véu
Que a faz descrente.
Vê as cousas directamente.

Não importa que vida tenho.
Não sei de ser.
Vago, informe,(…) desenho,
Oculto ter
No alado azul que desempenho.

Porque, de sentir, me aproximo
Do ar e do céu;
Retomo o véu
E do exterior em mim me animo
E o espaço imenso faço meu

Sem intervalo
Entre mim e o exterior,
Sou, porque calo.
Cismo e resvalo
Para uma sombra do meu torpor.

Minha incorpórea semelhança
Com languescer,
Vem ter comigo, e a hora dança
Só porque comigo vem ter.

Fecho as portas a mal sorrir.
Sentindo o céu por dentro fora.
Venho ver as nuvens fugir
Como se ver fosse sentir.
Calo! Minha alma dorme a hora.



FERNANDO PESSOA, 28 DE MAIO DE 1917

segunda-feira, 27 de maio de 2013

FAZ HOJE 87 ANOS




Não é ainda a noite
Mas é já frio o céu
Do vento o ocioso açoite
Envolve o tédio meu.

Que vitórias perdidas
Por não as ter querido!
Quantas perdidas vidas!
E o sonho sem ter sido...

Ergue-te, ó vento, do ermo
Da noite que aparece!
Há um silêncio sem termo
Por trás do que estremece...

Pranto dos sonhos fúteis,
Que a memória acordou,
Inúteis, tão inúteis -
Quem me dirá quem sou?



FERNANDO PESSOA, 27 DE MAIO DE 1926

domingo, 26 de maio de 2013

FAZ HOJE 98 ANOS




Tine fina ainda 
A campainha f"rida 
De que se inclina a linda 
Lida de livre e ardida, 

Porque vibrada, e a ida 
De ela pra ali e a vinda 
Do seu oscilar finda 
No tremular perdida. 

Simultânea ferida 
Da hora prolixa e infinda 
Sob pálpebra descida 
O olhar que a sombra alinda 

E o estio em frio fina. 

Quem fica a rir da advinda 
Prece que dói, convida 
E divide porque inda 
Sobra do frio a vida? 

Cicio frio..., e brinda 
Nossa alma a hora lida... 



FERNANDO PESSOA, 26 DE MAIO DE 1915

sábado, 25 de maio de 2013

FAZ HOJE 79 ANOS





O a quem tudo é negado 
Tem o mundo por fado, 
O a quem ninguém ama 
Tem a vida por chama 
Esse a quem tudo falta, 
Por baixo, a alma é alta. 

São muitos os caminhos 
E alheios os vizinhos! 
São largas as estradas 
E as distâncias erradas, 
Mas sempre sobra à alma 
A fé que a faça calma. 

Assim, sem espada ou lança, 
Vou, como uma criança! 
Pela estrada cantando 
Porque vou confiando. 
Vou sem medo e sem frio 
Não sei em que confio. 


FERNANDO PESSOA, 25 DE MAIO DE 1934

sexta-feira, 24 de maio de 2013

FAZ HOJE 81 ANOS





Dizia o Guerra Junqueiro
Em versos de um grande adeus
Verbalmente derradeiro
Aos homens e aos mitos seus:

"Declaro-me aposentado.
Acabei. Ponto final.
Restam-me o céu estrelado
E as rosas do meu quintal"

Ah, é o vero misticismo!
(E é mentira, por sinal.)
Muitas vezes nele cismo.
Não tenho, porém, quintal.


FERNANDO PESSOA, 24 DE MAIO DE 1932

quinta-feira, 23 de maio de 2013

FAZ HOJE 97 ANOS





Não sei, ama, onde era; 
Nunca o saberei... 
Sei que era primavera 
E o jardim do rei... 
(Filha, quem o soubera!...)

Que azul tão azul tinha 
Ali o azul do céu! 
Se eu não era a rainha, 
Porque era todo meu? 
(Filha, quem o adivinha?) 

E o jardim tinha flores 
De que não me sei lembrar... 
Flores de tantas cores… 
Penso e fico a chorar... 
(Filha, os sonhos são dores...) 

Qualquer dia viria 
Qualquer cousa a fazer 
De aquela alegria 
Mais alegria nascer 
(Filha, o resto é morrer...) 

Conta-me contos, ama... 
Todos os contos são 
Esse dia, e jardim e a dama 
Que eu fui nessa solidão... 
(Filha, (…)) 


FERNANDO PESSOA23 DE MAIO DE 1916

quarta-feira, 22 de maio de 2013

FAZ HOJE 97 ANOS





Trago dentro do meu coração,
Como num cofre que se não pode fechar de cheio,
Todos os lugares onde estive,
Todos os portos a que cheguei,
Todas as paisagens que vi através de janelas ou vigias,
Ou de tombadilhos, sonhando,
E tudo isso, que é tanto, é pouco para o que eu quero.

A entrada de Singapura, manhã subindo, cor verde,
O coral das Maldivas em passagem cálida,
Macau à uma hora da noite... Acordo de repente...
Yat-lô-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô... Ghi — ...
E aquilo soa-me do fundo de uma outra realidade...
A estatura norte-africana quase de Zanzibar ao sol...
Dar-es-Salaam (a saída é difícil)...
Majunga, Nossi-Bé, verduras de Madagáscar...
Tempestades em torno ao Guardafui...
E o Cabo da Boa Esperança nítido ao sol da madrugada...
E a Cidade do Cabo com a Montanha da Mesa ao fundo...

Viajei por mais terras do que aquelas em que toquei...
Vi mais paisagens do que aquelas em que pus os olhos...
Experimentei mais sensações do que todas as sensações que senti,
Porque, por mais que sentisse, sempre me faltou que sentir
E a vida sempre me doeu, sempre foi pouco, e eu infeliz.

A certos momentos do dia recordo tudo isto e apavoro-me,
Penso em que é que me ficará desta vida aos bocados, deste auge,
Desta estrada às curvas, deste automóvel à beira da estrada, deste aviso,
Desta turbulência tranquila de sensações desencontradas,
Desta transfusão, desta insubsistência, desta convergência iriada,
Deste desassossego no fundo de todos os cálices,
Desta angústia no fundo de todos os prazeres,
Desta saciedade antecipada na asa de todas as chávenas,
Deste jogo de cartas fastiento entre o Cabo da Boa Esperança e as Canárias.

Não sei se a vida é pouco ou de mais para mim.
Não sei se sinto de mais ou de menos, não sei
Se me falta escrúpulo espiritual, ponto-de-apoio na inteligência,
Consanguinidade com o mistério das coisas, choque
Aos contactos, sangue sob golpes, estremeção aos ruídos,
Ou se há outra significação para isto mais cómoda e feliz.

Seja o que for, era melhor não ter nascido,
Porque, de tão interessante que é a todos os momentos,
A vida chega a doer, a enjoar, a cortar, a roçar, a ranger,
A dar vontade de dar gritos, de dar pulos, de ficar no chão, de sair
Para fora de todas as casas, de todas as lógicas e de todas as sacadas,
E ir ser selvagem para a morte entre árvores e esquecimentos
Entre tombos, e perigos e ausência de amanhãs,
E tudo isto devia ser qualquer outra coisa mais parecida com o que eu penso,
Com o que eu penso ou sinto, que eu nem sei qual é, ó vida.

Cruzo os braços sobre a mesa, ponho a cabeça sobre os braços,
E preciso querer chorar, mas não sei ir buscar as lágrimas...
Por mais que me esforce por ter uma grande pena de mim, não choro,
Tenho a alma rachada sob o indicador curvo que lhe toca...
Que há-de ser de mim? Que há-de ser de mim?
Correram o bobo a chicote do palácio, sem razão,
Fizeram o mendigo levantar-se do degrau onde caíra.
Bateram na criança abandonada e tiraram-lhe o pão das mãos.
Oh mágoa imensa do mundo, o que falta é agir...
Tão decadente, tão decadente, tão decadente...
Só estou bem quando ouço música, e nem então.
Jardins do século dezoito antes de 89,
Onde estais vós, que eu quero chorar de qualquer maneira?

Como um bálsamo que não consola senão pela ideia de que é um bálsamo,
A tarde de hoje e de todos os dias pouco a pouco, monótona, cai.

Acenderam as luzes, cai a noite, a vida substitui-se.
Seja de que maneira for, é preciso continuar a viver.
Arde-me a alma como se fosse uma mão, fisicamente.
Estou no caminho de todos e esbarram comigo.
Minha quinta na província,
Haver menos que um comboio, uma diligência e a decisão de partir entre mim e ti.
Assim fico, fico... Eu sou o que sempre quer partir,
E fica sempre, fica sempre, fica sempre,
Até à morte fica, mesmo que parta, fica, fica, fica...
Torna-me humano, ó noite, torna-me fraterno e solícito.
Só humanitariamente é que se pode viver.
Só amando os homens, as acções, a banalidade dos trabalhos,
Só assim — ai de mim! —, só assim se pode viver
Só assim, ó noite, e eu nunca poderei ser assim!

Vi todas as coisas, e maravilhei-me de tudo,
Mas tudo ou sobrou ou foi pouco — não sei qual — e eu sofri.
Vivi todas as emoções, todos os pensamentos, todos os gestos,
E fiquei tão triste como se tivesse querido vivê-los e não conseguisse
Amei e odiei como toda a gente,
Mas para toda a gente isso foi normal e instintivo,
E para mim foi sempre a excepção, o choque, a válvula, o espasmo.

Vem, ó noite, e apaga-me, vem e afoga-me em ti.
Ó carinhosa do Além, senhora do luto infinito,
Mágoa externa da Terra, choro silencioso do Mundo.
Mãe suave e antiga das emoções sem gesto,
Irmã mais velha, virgem e triste, das ideias sem nexo,
Noiva esperando sempre os nossos propósitos incompletos,
A direcção constantemente abandonada do nosso destino,
A nossa incerteza pagã sem alegria,
A nossa fraqueza cristã sem fé,
O nosso budismo inerte, sem amor pelas coisas nem êxtases,
A nossa febre, a nossa palidez, a nossa impaciência de fracos,
A nossa vida, ó mãe, a nossa perdida vida...

Não sei sentir, não sei ser humano, conviver
De dentro da alma triste com os homens meus irmãos na terra.
Não sei ser útil mesmo sentindo, ser prático, ser quotidiano, nítido,
Ter um lugar na vida, ter um destino entre os homens,
Ter uma obra, uma força, uma vontade, uma horta,
Uma razão para descansar, uma necessidade de me distrair,
Uma coisa vinda directamente da natureza para mim.

Por isso sê para mim materna, ó noite tranquila...
Tu, que tiras o mundo ao mundo, tu que és a paz,
Tu que não existes, que és só a ausência da luz,
Tu que não és uma coisa, um lugar, uma essência, uma vida,
Penélope da teia, amanhã desfeita, da tua escuridão,
Circe irreal dos febris, dos angustiados sem causa,
Vem para mim, ó noite, estende para mim as mãos,
E sê frescor e alívio, ó noite, sobre a minha fronte...

Tu, cuja vinda é tão suave que parece um afastamento,
Cujo fluxo e refluxo de treva, quando a lua bafeja,
Tem ondas de carinho morto, frio de mares de sonho,
Brisas de paisagens supostas para a nossa angústia excessiva...
Tu, palidamente, tu, flébil, tu, liquidamente,
Aroma de morte entre flores, hálito de febre sobre margens,
Tu, rainha, tu castelã, tu, dona pálida, vem...

ÁLVARO DE CAMPOS, 22 DE MAIO DE 1916
(Do poema “Passagem das horas”)

terça-feira, 21 de maio de 2013

FAZ HOJE 96 ANOS





Leram-me hoje S. Francisco de Assis.
Leram-me e pasmei.
Como é que um homem que gostava tanto das coisas,
Nunca olhava para elas, não sabia o que elas eram?

Para que havia de chamar minha irmã à água, se ela não é minha irmã?
Para a sentir melhor?
Sinto-a melhor bebendo-a do que chamando-lhe qualquer coisa.
Irmã, ou mãe, ou filha.
A água é a água e é bela por isso.
Se eu lhe chamar minha irmã,
Ao chamar-lhe minha irmã, vejo que o não é
E que se ela é a água o melhor é chamar-lhe água;
Ou, melhor ainda, não lhe chamar coisa nenhuma,
Mas bebê-la, senti-la nos pulsos, olhar para ela
E isto sem nome nenhum.

ALBERTO CAEIRO, 21 DE MAIO DE 1917

segunda-feira, 20 de maio de 2013

FAZ HOJE 92 ANOS





Sobre este plinto gravo o inútil verso 
Que comemora a inútil emoção. 
Se os impérios são pó, não é disperso 
Breve esta inútil comemoração. 

Por isso, escolho a hora em que contento 
A emoção de escrever, e não o fim. 
E fica o plinto no meu pensamento 

Soletra, viandante, o verso posto 
Como denúncia de um momento nulo 
Na pedra: A morte passa ... 
O ave atque vale de Catulo. 


FERNANDO PESSOA, 20 DE MAIO DE 1921

Nota: tradução do latim para quem não saiba:
"granizo e despedida".

domingo, 19 de maio de 2013

FAZ HOJE 79 ANOS




No fim do mundo de tudo
Há grandes montes que têm
Ainda aléns para além -
Um grande além mago e mudo.

São paisagens escondidas
Que são o que a alma quer.
Ali ser, ali viver
Vale por vidas e vidas.

Todos nós, que aqui cansamos
A alma com a negar,
Nesse momento de sonhar
Ali somos, ali estamos.

Mas, depois, volvidos onde
Há só a vida que há
Vemos que ante nós está
Só o que vela e que esconde.

Só dormindo os horizontes
Se alargam e nasce a visão
Dos montes que ao fundo estão
E o saber do além dos montes.

FERNANDO PESSOA, 19 DE MAIO DE 1934

sábado, 18 de maio de 2013

FAZ HOJE 91 ANOS





É uma brisa leve
Que a hora um momento teve
E que passa sem ter
Quasi que tido ser.

Quem amo não existe.
Vivo indeciso e triste.
Quem quis ser já me esquece
Quem sou não me conhece.

E em meio disto o aroma
Que a brisa traz me assoma
Um momento à consciência
Como uma confidência


FERNANDO PESSOA, 18 DE MAIO DE 1922

sexta-feira, 17 de maio de 2013

FAZ HOJE 100 ANOS





Cada dia é tão só-um!
Dura tão pouco e arde tanto!
Quanto mais de mim me espanto
Mais o tédio (…)

Trabalha tudo. Aqui perto
Batem chapas, há motores...
E eu olho as casas, e as cores
São para mim, neste incerto 

Modo de olhá-las, quasi entes
Isolado de onde estão...
Tudo toma uma expressão
De a si-próprias inerentes. 

Tudo existe com mais força
Que é dado existir as cousas.
Encosto-me a mim e ociosas
Correm-me as horas. Que torça 

Minhas doloridas mãos...
Nada creio cousa ou vida
Só a arte e (…)


FERNANDO PESSOA, 17 DE MAIO DE 1913

quinta-feira, 16 de maio de 2013

FAZ HOJE 99 ANOS





BRISA


Que rios perdidos 
Em outros países 
Reflectem a sombra 
De casas felizes 

A cuja janela 
Assoma a ondear 
O som de uma voz 
Alegre a cantar... 

Não é aqui perto;
É longe daqui...
Não há p"ra lá barcos 
E a vida é assim.


AUTOR:FERNANDO PESSOA, 16 DE MAIO DE 1914

quarta-feira, 15 de maio de 2013

FAZ HOJE 103 ANOS





Suspiro triste
Da imensidão, 
Que é o que existe? 
Se estendo a mão 
Na solidão 
Ninguém me assiste! 

Amor, perdi-o 
Sonhos deixei. 
Eu tenho frio 
Na imensidão! 
Quem sou não sei. 
Sinto vazio 
Meu coração. 

Sou cego, vendo,  
Só vivo, horror 
No eterno sendo,  
Onde me acoito 
Deste amargor?  
É frio o chão 
Que fria a noite,  
E os astros são!  

Tenho desejo 
De poder ter 
Sono, bocejo 
De n’alma haver 
Um sono, e então 
Ser impossível 
E inconsciencível 
À imensidão.  

Dá-me que deite 
Minha alma em medo 
No teu regaço,  
Ó noite, e aceite 
Por suave segredo 
Teu negro espaço, 
E a solidão 
E os astros mudos 
Escuros e surdos 
Ao coração!  

Que eu durma em alma 
Sem sentir mesmo 
Surgir a calma, 
Que eu durma todo 
Nada no nada 
Lodo do lodo 
Chão e só chão.

E aí que quem venha 
Pisando então 
O pó, não tenha 
Desejo vão; 
Saiba a ignorância 
E o amar amor 
E a (…) da vida 
(…) fragrância 
Espontânea dor 
Da flor nascida. 
Acabe então 
Na alma minha 
O horror que a invade 
Sentir baixinho 
Ao coração 
A imensidade 
Da solidão.  


FERNANDO PESSOA, 15 DE MAIO DE 1910