terça-feira, 31 de julho de 2012

Livro do Desassossego



A miséria da minha condição não é estorvada por estas palavras conjugadas, com que formo, pouco a pouco, o meu livro casual e meditado. Subsisto nulo no fundo de toda a expressão, como um pó indissolúvel no fundo do copo de onde se bebeu só água. Escrevo a minha literatura como escrevo os meus lançamentos - com cuidado e indiferença. Ante o vasto céu estrelado e o enigma de muitas almas,
a noite do abismo incógnito e o choro de nada se compreender - ante tudo isto o que escrevo no caixa auxiliar e o que escrevo neste papel da alma são coisas igualmente restritas à Rua dos Douradores, muito pouco aos grandes espaços milionários do universo.
Tudo isto é sonho e fantasmagoria, e pouco vale que o sonho seja lançamentos como prosa de bom porte. Que serve sonhar com princesas, mais que sonhar com a porta da entrada do escritório? Tudo que sabemos é uma impressão nossa, e tudo que somos é uma impressão alheia, melodrama de nós, que, sentindo-nos, constituímos nossos próprios espectadores activos, nossos deuses por licença da Câmara.

BERNARDO SOARES
(Do Livro do Desassossego)

A UNIVERSALIDADE DE FERNANDO PESSOA



A universalidade do Fernando Pessoa é hoje um facto. Não há país no mundo onde o nome do Poeta não seja conhecido. Mesmo assim, é ainda com algum espanto que vemos surgir factos surpreendentes.

          Verificar, por exemplo, que vieram viver para Portugal como estudiosos do Fernando Pessoa, seis estrangeiros, (de que eu tenha conhecimento), de diversas nacionalidades. Pessoas que, nos seus países de origem o traduziram e que pela sua obra se apaixonaram.

          Richard Zenith, americano, que depois de traduzir Pessoa nos USA, veio residir em Lisboa e é hoje um dos mais conceituados, decerto mesmo o mais conceituado, estudioso e editor da obra do nosso grande Poeta.

          Jerónimo Pizarro, colombiano, que veio estudar português na Faculdade de Letras de Lisboa, e hoje faz parte da Equipa “Pessoa”, responsável pela edição crítica da obra do Poeta, perante a Secretaria de Estado da Cultura.

          Antonio Cardiello, italiano, que colaborou na recente edição da prosa do Álvaro de Campos feita pela “Ática”.

          Ptrício Ferreno, argentino, de origem italiana, que colaborou na digitalização da Biblioteca de Fernando Pessoa.

          Pauly Bothe, canadiana, filha de pai alemão e de mãe irlandesa, que, igualmente colaborou na digitalização da Biblioteca do Poeta.

          Jorge Uribe, colombiano, vindo da Universidade dos Andes, em Bagotá, para a Universidade de Lisboa, onde está a preparar uma tese sobre Fernando Pessoa. Também colaborou no estudo e digitalização do Biblioteca de Fernando Pessoa.

          Não citando os que, sem ter vindo viver para Portugal, tanto colaboraram, quer no nosso País, quer no deles, na divulgação da obra de Fernando Pessoa, como o George Rudolf  Lind, alemão, que em 1966 já por cá andava, e colaborou com o Jacinto Prado Coelho na edição  de uma série de volumes com a prosa, de vários matizes, que foi saindo da famosa arca, ou o francês, Robert Bréchon que, além de ter sido, desde os primeiros tempos um tradutor do Pessoa, em França, escreveu a melhor biografia do Poeta, - “Estranho Estrangeiro” -, e veio a colaborar com um extenso e rico prefácio, no volume das “Oevres Poètiques” do Fernando Pessoa, publicado pela Gallimard, na sua vitrine dos imortais: a “Bibliothéque de la Pléiade”.

          E é importante sublinhar que os seis acima referidos, são hoje, portugueses!

          Julgo, decerto por ignorância minha, que esta situação não tem paralelo em relação a outros poetas, ou noutras partes do mundo. E ela é espantosa! E por isso me pareceu de interesse levá-la ao conhecimento daqueles que  gostam de ler Fernando Pessoa

         


           

         

          

FAZ HOJE 77 ANOS


O REI


O rei, cuja coroa de oiro é luz
Fita do alto trono os seus mesquinhos.
Ao meu Rei, coroaram-n'O de espinhos
E por trono lhe deram uma cruz.


O olhar fito do Rei a si conduz
Os olhares ansiosos e sozinhos.
Mas mais me fitam, e mortas sem carinhos,
Essas pálpebras mortas de Jesus.


O Rei fala, e o seu gesto tudo preenche,
O som da sua voz tudo transmuda.
Meu Rei morto tem mais que majestade:
Diz-me a verdade aquela boca muda,
E essas mãos presas dão-me a Liberdade.


FERNANDO PESSOA, 31 DE JULHO DE 1935

segunda-feira, 30 de julho de 2012

FAZ HOJE 98 ANOS




Cada coisa a seu tempo tem seu tempo.
Não florescem no inverno os arvoredos,
Nem pela primavera
Têm branco frio os campos.
À noite, que entra, não pertence, Lídia,
O mesmo ardor que o dia nos pedia.
Com mais sossego amemos
A nossa incerta vida.
À lareira, cansados não da obra 
Mas porque a hora é a hora dos cansaços,
Não puxemos a voz
Acima de um segredo
E casuais, interrompidas sejam
Nossas palavras de reminiscência
(Não para mais nos serve
A negra ida do sol),
Pouco a pouco o passado recordemos
E as histórias contadas no passado
Agora duas vezes
Histórias, que nos falem
Das flores que na nossa infância ida
Com outra consciência nós colhíamos
E sob uma outra espécie
De olhar lançado ao mundo.
E assim, Lídia, à lareira, como estando,
Deuses lares, ali na eternidade,
Como quem compõe roupa
O outrora componhamos
Nesse desassossego que o descanso
Nos traz às vidas quando só pensamos
Naquilo que já fomos
E há noite lá fora. 


RICARDO REIS, 30 DE JULHO DE 1914

domingo, 29 de julho de 2012

FAZ HOJE 89 ANOS




Cada um cumpre o destino que lhe cumpre,
E deseja o destino que deseja;
Nem cumpre o que deseja, 
Nem deseja o que cumpre.
Como as pedras na orla dos canteiros
O Fado nos dispões, e ali ficamos;
Que a Sorte que nos fez postos
Onde houvemos de sê-lo.
Não tenhamos melhor conhecimento
Do que nos coube que de que nos coube.
Cumpramos o que somos.
Nada mais nos é dado.




RICARDO REIS, 29 DE JULHO DE 1923

sábado, 28 de julho de 2012

FAZ HOJE 77 ANOS



A OUTRA


Amamos sempre no que temos
O que não temos quando amamos.
O barco pára, largo os remos
E, um a outro, as mãos nos damos.
A quem dou as mãos?
À Outra.


Teus beijos são mel de boca,
São os que sempre pensei dar,
E agora a minha boca toca
A boca que eu sonhei beijar.
De quem é a boca?
 Da Outra.


Os remos já caíram na água,
O barco faz o que a água quer.
Meus braços vingam minha mágoa
No abraço que enfim podemos ter.
Quem abraço?
A Outra.


Bem sei, és bela, és quem desejo...
Não deixa a vida que eu deseje
Mais que o que pode ser teu beijo
E poder ser eu que te beije.
Beijo, e em quem penso?
Na Outra.


Os remos vão perdidos já,
O barco vai não sei para onde.
Que fresco o teu sorriso está,
Ah, meu amor, e o que ele esconde!
Que é do sorriso?
Da Outra.


Ah, talvez mortos ambos nós,
Num outro rio sem lugar
Em outro barco outra vez sós
Poderemos recomeçar.
Que talvez sejas
 A Outra.


Mas não, nem onde essa paisagem
É sob eterna luz eterna
Te acharei mais que alguém em viagem
Que amei com ansiedade terna
Por ser parecida
Com a Outra.


Ah, por ora, idos remos e rumo,
Dá-me as mãos, a boca, teu ser.
Façamos desta hora um resumo
Do que não poderemos ter.
Nesta hora, a única,
Sê a Outra!


FERNANDO PESSOA, 28 DE JULHO DE 1935

sexta-feira, 27 de julho de 2012

FAZ HOJE 87 ANOS




I


Que triste, à noite, no passar do vento,
O transvasar da imensa solidão
Para dentro do nosso coração,
Por sobre todo o nosso pensamento.


No sossego sem paz se ergue o lamento
Como da universal desolação,
E o mistério, e o abismo e a morte são
Sentinelas do nosso isolamento.


'Stamos sós com a treva e a voz do nada.
Tudo quanto perdemos mais perdemos.
De nós aos que se foram não há 'strada.


O vácuo encarna em nós, na vida; e os céus
São uma dúvida certa que vivemos.
Tudo é abismo e noite. Morreu Deus.


II




'Stou só. A atra distância, que infinita
A alma separa de outra, se alargou.
Em mim, porém, meu ser se unificou.
Sou um universo morto que medita.


Se estendo a mão na solidão aflita,
Nada há entre ela e aquilo que tocou.
Satélite de um astro que findou,
Rodeio o abismo, 'strela erma e maldita.


Não há porta no cárcere sem fim
Em que me vivo preso. Nunca houve
Porta neste meu ser que finda em mim.


Vivo até no passado a solidão.
Na erma noite agora o vento chove
E um novo nada enche-me o coração...


FERNANDO PESSOA, 27 DE JULHO DE 1925

quinta-feira, 26 de julho de 2012

FAZ HOJE 117 ANOS


FAZ HOJE 117 ANOS


À minha querida Mamã

Ó terras de Portugal
Ò terras onde eu nasci
Por muito que goste delas
Inda gosto mais de ti.

FERNANDO PESSOA, 26 DE JULHO DE 1895
(Com 7 anos)

FAZ HOJE 102 ANOS

Que velho, minha ama,
Que velhinho já...
Faze tu a cama
Que o sono virá...
Faze já a cama.


Que triste, minha ama,
Sempre assim tão triste!
Vê, mesmo na cama
Esta dor persiste...
Não durmo, minha ama...


FERNANDO PESSOA, 26 DE JULHO DE 1910

quarta-feira, 25 de julho de 2012

FAZ HOJE 96 ANOS






Há uma vaga mágoa
No meu coração...
Como que um som de água
Suma solidão...
Um som ténue de água...


Memoro o que, morto,
Ainda vive em mim...
Memoro-o, absorto
Num sonho sem fim,
Estéril e absorto.


Será que me basta
Esta vida em vão?
Que nada se afasta
Da sua solidão...
Nem de mim me afasta?


Não sei. Sofro o acaso
Da mágoa em meu ser...
Cismo, e há em mim o ocaso
Do que quis viver -
Sempre só o ocaso.




FERNANDO PESSOA, 25 DE JULHO DE 1916



terça-feira, 24 de julho de 2012

FAZ HOJE 82 ANOS


Brisa sem ser da aurora,
Só por nascer o dia,
A um coração que chora
Não trazes alegria
Mas a dor vai-se embora

Dizes que se conhece
Pelo dia que vem
Que tudo passa e esquece
E que a manhã também.

Se um dia nasce a ‘sperança
Nasce dele também.
É como uma criança.
Talvez não traga o bem.
Mas a aurora não cansa.

Ah, enquanto há o momento
Em que inda não há nada,
Sossegue o pensamento
E a alma durma acordada
Sob o embalar do vento

Tão fresco sobre a face
E as pálpebras de sono,
Se isto nunca passasse!
Depois há o dia, o dono:
Este dia que nasce

FERNANDO PESSOA, 24 DE JULHO DE 1930
  

segunda-feira, 23 de julho de 2012

FAZ HOJE 77 ANOS

Começa a ir ser dia.
O céu negro começa,
Numa menor negrura
Da sua noite escura,
A ter uma cor fria
Onde a negrura cessa.


Um negro azul cinzento
Emerge vagamente
De onde o Oriente dorme
Seu tardo sono informe,
E há um frio sem vento
Que se ouve e mal se sente.


Mas eu, o mal dormido,
Não sinto noite ou frio,
Nem sinto vir o dia
Da solidão vazia...
Só sinto o indefinido
Do coração vazio.


Em vão o dia chega
A quem não dorme, a quem
Não tem que ter razão
Dentro do coração,
Que quando vive nega
E quando ama não tem.


Em vão, em vão, e o céu
Azula-se de verde
Acinzentadamente.
Que é que a minha alma sente?
Nem isto,não, nem eu,
Na noite que se perde.

FERNANDO PESSOA, 23 DE JULHO DE 1935

domingo, 22 de julho de 2012

FAZ HOJE 95 ANOS


CANÇÃO TRISTE


O Sol, que dá nas ruas, não dá
No meu carinho.
A felicidade quando virá?
Por que caminho?


Horas e horas por fim são meses
De ansiado bem.
Eu penso em ti indecisas vezes
E tu ninguém!


Não tenho barco para a outra margem,
Nem sei do rio.
Ah! E envelhece já a tua imagem
E eu sinto frio.


Não me resigno, não me decido,
Choro querer...
Sempre eu! Ó sorte dá-me o olvido
De pertencer!


Enterrei hoje outra vez meu sonho
Amante má.
Tornou-se triste por ser risonho,
E não ser já.


Inútil brisa roçando leve
Já morta flor,
Saudando a um bem que não se teve
Vácuo com dor.


Triste se é triste, e de o ser não finda
Quando é conforto
Como mãe louca que embala ainda
Um filho morto.


FERNANDO PESSOA, 22 DE JUNHO DE 1917

sexta-feira, 20 de julho de 2012

FAZ HOJE 99 ANOS


Ó praia de pescadores,
Neste pleno dia mole...
Acalmam todas as dores
Quando se estendem ao sol.


Procuro sereno o jeito
De receber toda a luz
E esta praia onde me deito
É quente e macia cruz.


Como uma vela ou uma rede
Ou numa vela deitado
E acalma em mim toda a sede
De me querer sossegado...


E ali p'ra além dos meus pés
Ruge o mar próximo e eterno...
Tenho toda a alma rés-vés 
De um vago sorriso terno


Que envolve em oca bondade
O céu vazio que fito
Se relembro, é sem saudade...
E adormeço se medito...




Até que sob mim a areia
É mar e eu sinto embalar-me
O som bom da maré cheia
A trazer-me e a levar-me.


E barco do nulo sorvo
Com todo o corpo o saber
Que o sentir-me não é estorvo
A sentir ou nada ser.


E de tanto olhar o céu
Sinto-me ele - o sol me doura.
Tiro o ser eu como a um véu
E estou para fora da Hora...


FERNANDO PESSOA, 20 DE JULHO DE 1913







quinta-feira, 19 de julho de 2012

FAZ HOJE 77 ANOS




Sim, um momento
Ainda passas
Pelo meu vago pensamento,
E lembrar-te seria um tormento
Se imaginar fosse desgraça.


Sim, nessa hora
Em que falámos mais a olhar
Do que a falar,
Resultou esta irónica demora
Que tenho agora ao te lembrar.


Apareceste
Em minha vida
Como uma coisa que estava lá fora.
Desapareceste.
Mais tarde soube da tua ida.


Contudo, contudo,
Conseguiste
Prender-me um pouco o coração.
É um coração triste
E não se entende com tudo
Nem tem jeito
Para se fazer amar
Ou para o imaginar, 
Salvo quando
Teu olhar
Teimosamente brando
Me fazia saltar
O coração dentro do peito.


Onde ia eu?
Já me esquecia.
Sim, meu coração foi teu
Naquele dia,
Naquele dia ou noutro dia...
Nem se houvesse outra terra ou outro céu
Qualquer coisa aconteceria.


FERNANDO PESSOA 19 DE JULHO DE 1935

quarta-feira, 18 de julho de 2012

FAZ HOJE 78 ANOS


Essas coisas que escrevi
Quando tinha só vinte anos,
Hoje, hoje, que as reli
Nelas, antigas, não vi
Nenhuns antigos enganos.

Meus enganos são de agora.
Quando jovem, via certo.
Hoje é que a minha alma ignora
Porque a emoção foi-se embora
E a inteligência é deserto.

Quem me dera nessa idade
Em que a ciência de dizer
Era uma suavidade,
E eu conhecia verdade
Por nada inda conhecer!

Hoje, que penso, e que sinto
Somente porque pensei
Vivo dentro de um recinto
Que me aperta como um cinto
Que demasiado apertei.

Então eu era quem era
Sem pensar nem sentir.
Bom tempo, quem o tivera
Ainda que como uma hera
A matar-me de cingir.

FERNANDO PESSOA, 18 DE JULHO DE 1934

terça-feira, 17 de julho de 2012

FAZ HOJE 98 ANOS




Breve o inverno virá com a sua branca
Nudez vestir os campos.
As lareiras serão as nossas pátrias
E os contos que contarmos
Assentados ao pé do seu calor
Valerão as canções
Com que outrora entre as verdes ervas rijas
Dizíamos ao sol
ave atque vale triste e alegre
Solenes e carpindo.
Por ora o outono está connosco ainda.
Se ele nos não agrada
A memória do estio cortejemos
Com a esp'rança hiemal.
E entre essas dádivas memoradas 
Rio em vales passemos.


RICARDO REIS, 17 DE JULHO DE 1914

segunda-feira, 16 de julho de 2012

FAZ HOJE 78 ANOS




Tenho em mim como uma bruma
Que nada é nem contém
A saudade de coisa nenhuma,
O desejo de qualquer bem.


Sou envolvido por ela
Como por um nevoeiro
E vejo luzir a última estrela
Por cima da ponta do meu cinzeiro.


Fumei a vida. Que incerto
Tudo quanto vi ou li!
E todo o mundo é um grande livro aberto
Que em ignorada língua me sorri.


FERNANDO PESSOA, 16 DE JULHO DE 1934

domingo, 15 de julho de 2012

FAZ HOJE 102 ANOS


FOLHA CAÍDA


Nasceu uma flor, amor,
No meu coração.
Murcha já de dor, amor,
Fria de ilusão.


Busquei inda assim, amor,
Pela vida real
Flor como a que em mim, amor,
Me era sem igual.


Não pude achar, amor,
- Tanto a procurei! -
E não posso amar, amor,
Porque não a achei.


FERNANDO PESSOA15 DE JULHO DE 1910







sábado, 14 de julho de 2012

FAZ HOJE 78 ANOS




Do fundo do fim do mundo
Vieram me perguntar
Qual era o anseio fundo
Que me fazia chorar.


Eu disse: "É esse que os poetas
Têm tentado dizer
Em obras sempre incompletas
Em que puseram seu ser".


E assim com um gesto nobre
Respondi a quem não sei
Se me houve por rico ou pobre.
(...)


FERNANDO PESSOA, 14 DE JULHO DE 1934

sexta-feira, 13 de julho de 2012

FAZ HOJE 93 ANOS




Todo o passado me parece incrível.
Quem é a mim quem foi o que eu já fui?
Rio inconstante, sob meus olhos flui
Minha vida real e impossível.


Através de uma névoa eis-me insensível
Ao que vivi; o que já não se inclui
No que creio que sou, e sinto; e obstruí
Ver-me ver quem fui eu e hoje é invisível.


Cismo no que já fiz e me parece
Que incluo quem o fez mas não o sou.
Através da minha alma transparece


O que por mim viveu e se passou...
E um assombro decerto estremece
Em morto ser quem não ressuscitou.


FERNANDO PESSOA, 13 DE JULHO DE 1919

quinta-feira, 12 de julho de 2012

FAZ HOJE 100 ANOS




Dorme enquanto eu velo...
Deixa-me sonhar...
Nada em mim é risonho.
Quero-te para sonho,
Não para te amar.


A tua carne calma
É fria em meu querer.
Os meus desejos são cansaços.
Não quero ter nos braços
Meu sonho do teu ser.


Dorme, dorme, dorme,
Vaga em teu sorrir...
Sonho-te tão atento
Que o sonho é encantamento
E eu sonho sem sentir.


FERNANDO PESSOA, 12 DE JULHO DE 1912

quarta-feira, 11 de julho de 2012

FAZ HOJE 92 ANOS



TECA


Vai-te embora, ó sol dos céus!
Os olhos da minha irmã
Foram criados por Deus
P'ra substituir a manhã.


E se alguém achar mais bela
A noite, por ter mais alma,
Reparem que os olhos dela
Têm a cor da noite calma.


Assim, manhãs na viveza
E noite na cor que têm,
Se há olhos de igual beleza,
Inda os não usou ninguém.


FERNANDO PESSOA, 11 DE JULHO DE 1920


(Nota: a Teca, era a Irmã Madalena Maria)

terça-feira, 10 de julho de 2012

FAZ HOJE 82 ANOS




Passei toda a noite, sem saber dormir, vendo sem espaço a figura dela
E vendo-a sempre de maneiras diferentes do que a encontro a ela.
Faço pensamentos com a recordação do que ela é quando me fala,
E em cada pensamento ela varia de acordo com a sua semelhança.
Amar é pensar.
E eu quase que me esqueço de sentir  só de pensar nela.
Não sei bem o que quero, mesmo dela, e eu não penso senão nela.
Tenho uma grande distracção animada.
Quando desejo encontrá-la,
Quase que prefiro não a encontrar,
Para não ter de a deixar depois.
E prefiro pensar dela, porque dela como é tenho qualquer medo.
Não sei bem o que quero, nem quero saber o que quero.
Quero só pensar nela.
Não peço nada a ninguém, nem a ela, senão pensar.


ALBERTO CAEIRO, 10 DE JULHO DE 1930

segunda-feira, 9 de julho de 2012

FAZ HOJE 82 ANOS




Meu pobre amigo, não tenho compaixão para te dar.
A compaixão custa, sobretudo sincera, e em dias de chuva.
Quer dizer: custa sentir em dias de chuva.
Sintamos a chuva e deixemos a psicologia para outra espécie de céu.


Com que então problema sexual?
Mas isso depois dos quinze anos é uma indecência.
Preocupação com o sexo oposto (suponhamos) e a sua psicologia.
Mas isso é estúpido, filho.
O sexo oposto existe para ser procurado e não para ser compreendido.
O problema existe para estar resolvido e não para preocupar.
Preocupar-se é ser impotente.
E você devia revelar-se menos.
"La Colere de Samson", conhece?
"La femme, enfant malade et douze foi impure!"


Mas não é nada disso.
Não me mace, nem me obrigue a ter pena!
Olhe: tudo é literatura.
Vem-nos tudo de fora, como a chuva.
A maneira? Se nós somos páginas aplicadas de romance?
Traduções, meu filho.


Você sabe porque está tão triste? É por causa do Platão,
Que você nunca leu.
O seu soneto de Petrarca, que você desconhece, saui-lhe errado.
E assim é a vida.


Arregace as mangas da camisa civilizada
E cave terras exactas!
Mais vale isso que ter a alma dos outros.


Não somos senão fantasmas de fantasmas,
E a paisagem hoje ajuda muito pouco.
Tudo é geograficamente exterior.
A chuva cai por uma lei natural
E a humanidade ama porque ouviu falar de amor.


ÁLVARO DE CAMPOS, 9 DE JULHO DE 1930