quinta-feira, 2 de dezembro de 2010

POR UMA EDIÇÃO CRONOLÓGICA DA POESIA DO POETA

Sempre considerei que fazer uma edição da Obra Poética do Fernando Pessoa, usando, apenas, a ordem cronológica com que, ao longo da sua vida, os poemas foram sendo escritos, nos daria uma leitura mais próxima da realidade em que os mesmos foram criados. Nessa edição imaginada, os Heterónimos, apareceriam apenas a assinar as suas produções, incluindo, nos Heterónimos, o seu próprio criador.
Dos testes que me foi dado fazer ao longo dos breves intervalos que a minha vida profissional, limitou duramente durante o tempo activo da minha profissão, tinha colhido alguns exemplos claros de que a produção do Poeta era, globalmente marcada por estados de alma, angústias, desgostos, que foram afectando a sua vida humana, de alguém que vive em Lisboa, compartilha esse viver com tertúlias várias, marcando para sempre cafés, como o Martinho da Arcada ou a Brasileira do Chiado. Facto que seria visto como uma perfeita normalidade em qualquer poeta unívocos. Mas o Fernando Pessoa é um poeta plural, a música da sua poesia difere profundamente de entre os seus três Heterónimos principais, - Alberto Caeiro, Ricardo Reis e Álvaro de Campos – não sendo tão profunda a diferença entre a do Poeta-ele-próprio, e a do Campos e a do Reis.


Tem sido tema de muita discussão, a sinceridade ou, mais precisamente, a verdade sentida, da poesia do Pessoa. Uns, porque leram mal o célebre poema, Autopsicografia, outros, como o Gaspar Simões, porque, verdadeiramente nunca chegaram a entender o Poeta. Ele disse que “O poeta é um fingidor “, mas nos versos seguintes montra como o primeiro verso era una amarga ironia, ao escrever,” Finge tão completamente/Que chega a fingir que é dor/A dor que deveras sente”.


É essa “dor que deveras sente”, que nesta idealizada edição cronológica, nos apareceria, simultaneamente, com a música do Ricardo Reis, do Álvaro de Campos e na toada da matriz inicial, que é o Fernando Pessoa ortónimo. Facto que passa desapercebido, quando se faz a leitura por Heterónimos.


Agora que tenho tido tempo para arrumar ideias e papéis, lembrei-me de criar uma base de dados que tivesse como índices, a data do poema, o Heterónimo que o subscreve, a página e a edição de onde fora recolhido e os primeiros versos da cada poema. Partindo do princípio que fazer essa base de dados para a obra poética completa era, para mim, completamente impossível, tentei encontrar uma solução mais realista, mas que não perdesse a necessária consistência. E encontrei-a numa Edição da Obra do Fernando Pessoa, do Círculo dos Leitores, a que o seu autor, o notável pessoano, Dr.Richard Zenith, chamou “Obra Essencial”. Dessa obra usei os dois volumes, a que foram dados os títulos de “Poesia do Eu” e “Poesia dos outros Eus”. E dentro do primeiro deste volumes, utilizei o conteúdo das páginas 25, até à página 351, que inclui o capítulo intitulado, “Poemas 1908 e 1935”. As restantes páginas, até à 453, incluem, sucessivamente, “A Mensagem” , “Canções da Derrota” “Fausto”, “Rubay’iyat”, Quadras” e “Juvenília”.
Pareceu-me que, para o estudo a que me propus, o carácter específico, da poesia contida nos restantes capítulos, destoaria numa leitura daquilo a que me permito chamar, de poesia solta.


Como é geralmente sabido, a “Mensagem” foi o único livro publicado durante vida do Poeta, e foi-o, muito simbolicamente, no dia 1 de Dezembro, - o dia da Independência - de 1934. Trata-se de uma Obra Prima da Literatura universal, e que, de um modo muito próprio nos fala da História de Portugal, destacando, em poemas lapidares, os nossos Maiores, usando frases que, transcendendo a própria Obra, caíram no uso coloquial corrente, tais como, “Tudo vale a pena/Se a Alma não é pequena”, “Deus quer, o Homem sonha e a Obra Nasce”, “O plantador de naus a haver” (D. Diniz), ou ainda a definição de algumas dessas figuras histórica, como, D. Afonso Henriques (Pai, foste cavaleiro. /Hoje a vigília é nossa. /Dá-nos o exemplo inteiro/E a tua inteira força!”, D. João I (O homem e a hora são um só/Quando Deus fez e a história é feita. /O mais é carne, cujo pó/A terra espreita.), D. Filipa de Lencastre (Que enigma havia em teu seio/Que só génios concebias?). Realço, apenas de passagem, pois o não ter incluído esses maravilhosos poemas, na base de dados, justificava uma explicação.


Desse conjunto excluído, retirei dois extensos poemas, lamentavelmente pouco conhecido, incluídos  no capítulo  “Canções da Derrota”.
O primeiro, um poema de Março de 1934, “Chamada”, que é um chamamento para que o Povo português se assuma no dever de ser o Futuro do seu marcante Passado: “Vibra, clarim, cuja voz diz/Que outrora ergueste o grito rial/ Por D. João, Mestre de Aviz,/ E Portugal!/ Vibra, grita aquele hausto fundo// Com que impeliste, como um remo,/Em El-Rei D. João Segundo/O Império extremo! “
O segundo, “Elegia na Sombra”, um poema de Junho de 1935, e que é a expressão da sua profunda amargura, por sentir a sua amada Pátria a perder-se dos caminhos gloriosos que sempre percorreu. E vai indagando das causas que levaram esta “Terra tam linda com heroes tam grandes, /” a sentir que “Lenta, a raça esmorece, e a alegria/É como a memória de outrem. Passa/ Um vento frio na nossa nostalgia/ E a nostalgia torna-se desgraça.”
São poemas de estrutura semelhante e temas afins; ambos escritos em quadras com rima, o primeiro com 31 quadras e o segundo com 34. Sou tentado a dizer que a falta de resposta ao clarim da “Chamada”, o levou, no ano seguinte, a 5 meses da sua morte, a retomar o tema que o amargurava, agora com o sentido de quem pede responsabilidades, quando pergunta: “ Quem nos roubou a alma? Que bruxedo/ De que magia incógnita e suprema/ Nos enche as almas de dolência e medo/ Nesta hora inútil, apagada e extrema?”
Junto a estes dois maravilhosos e emocionantes poemas, aparece, nesse capítulo, o conhecido poema épico, “Em memória do Presidente-Rei Sidónio Pais”, que, aliás,  está nos antípodas de uma canção de derrota! 


Mas voltemos à base de dados. Ela contém 907 registos, referentes à produção poética de 1908 até 1935, assim distribuída por Heterónimos:
Alberto Caeiro 101 – 11,145%
Álvaro de Campos - 119 – 13,12%
Fernando Pessoa - 502 – 55,35%
Ricardo Reis 185 – 20,40%.
Quanto à distribuição por anos, notemos, em primeiro lugar, que há 22 poemas sem data:
Alberto Caeiro – 1
Álvaro de Campos – 12
Fernando Pessoa – 0
Ricardo Reis – 9.
A produção global por anos, varia dos 5 (1908) aos 110 poemas (1914). A produção do ano de 1914, é a consequência do “nascimento” dos heterónimos, sobretudo do A. Caeiro e do R. Reis, no célebre “dia glorioso” que êle referiu, na famosa carta dos heterónimos escrita para o Casais Monteiro, como sendo o dia 8 de Março de 1914. A seguir apresento um quadro-resumo:




ANO                                   QTD. Poemas
0
22
1908
5
1909
12
1910
7
1911
7
1912
6
1913
25
1914
110
1915
21
1916
31
1917
36
1918
16
1919
25
1920
23
1921
15
1922
9
1923
42
1924
18
1925
12
1926
17
1927
27
1928
35
1929
27
1930
88
1931
44
1932
37
1933
56
1934
88
1935
46
Total
907








Excluindo o já citado ano de 1914, e pelas razões descritas, a produção anual do Poeta, tem poucas o oscilações, notando-se, no entanto, um facto de enorme relevância: de 1930 a 1935, – os últimos anos da sua curta vida –, os números sobem de tal forma que, nesses 6 anos, aparecem 359 poemas, que representam, no total, 39,5%!
E esse total, continuando a fazer uma análise meramente quantitativa, foi distribuído do seguinte modo
Fernando Pessoa – 243
Álvaro de Campos – 61
Ricardo Reis -48
Alberto Caeiro -7




Quando reatou o namoro com a Ofélia Queiroz, em 1929, “vivia obcecado pela sua Obra”, como ela relatou à sua sobrinha, Maria da Graça Queiroz tal como vem transcrito na Edição das “Cartas de Amor de Fernando Pessoa”, do David Mourão-Ferreira. Aliás os textos das cartas desta fase do namoro, demonstram esse sentir do Poeta, dando a entender que se encontrava, não só numa intensa fase de produção, como de “alinhamento” dos seus inúmeros papéis. Convém referir de novo, que ele nos deixou uma arca com cerca de 32 000 papeis, de todo o tipo e formato, tanto manuscritos como dactiloscritos. Por isso a revisão de todo esse conjunto de documentos, de que êle desconhecia o real valor, levou a que os últimos anos da sua vida não tivessem chegado, pese o seu evidente empenho, para pôr as “as coisas em ordem”. E isso criou nele uma enorme pressão que se transferiu para a Ofélia, não só através das cartas que lhe escreveu, mas também, e tendo em conta, as declarações dela à sobrinha, atrás referidas, pelas conversas que iam tendo e que se centravam nesse sentimento de incapacidade de levar a cabo a tarefa que a si mesmo impusera.
Cabe aqui explicar o que pretendo afirmar ao escrever que o Poeta acabou por não ter tempo para pôr “as coisas em ordem”. Não se trata de uma expressão vaga; eu explico. Quando em 13 de Janeiro de 1935 escreveu ao Casais Monteiro a tal carta em que “explica” a génese dos heterónimos, como já referi em pormenor, ele “cria” datas que terão, eventualmente, surgido apenas no decorrer da escrita. Decerto que seria sua intenção dar uma volta aos seus papéis para acertar as datas dos poemas com as que deixou escritas para a posteridade, na carta para o Casais Monteiro. E, realmente, não teve tempo de o fazer…O Fernando Pessoa, escreveu que o A. Caeiro tinha morrido em 1915, e depois dessa data aparecem mais cêrca de 40 poemas, datados, subscritos pelo “falecido”… Escreveu também que o Ricardo Reis se exilara para o Brasil em 1919 e aparecem, pelo menos 132 poemas subscritos pelo R. Reis depois dessa data, o último dos quais, em 13/11/1935, portanto escrito no mês em que o Fernando Pessoa veio a falecer… Neste último caso a “arrumação” seria mais importante, pois a produção do R. Reis até, 1919, foi, quantitativamente, muito inferior a esses 132 poemas…
A sonhada edição, poderia permitir-nos colher um poema escrito numa determinada data; por exemplo, hoje e, - no meu caso – colocá-lo neste blog. Ou comparar poemas escritos na mesma data, com “assinaturas” diferentes. E muito mais coisas interessantes que, através desta base de dados, irei desenvolvendo.
Termino, com um poema que faz hoje 87 anos…


P-HÁ
Hoje que sinto nada a vontade, e não sei que dizer,
Hoje, que tenho a inteligência sem saber o que qu’rer,
Quero escrever o meu epitáfio: Álvaro de Campos jaz
Aqui, o resto a Antologia Grega traz…
E a que propósito vem este bocado de rimas?
Nada. Um amigo meu chamado (suponho) Simas,
Perguntou-me na rua o que é que estava a fazer,
E escrevo estes versos assim em vez de lho não saber dizer.
É raro eu rimar, e é raro alguém rimar com juízo.
Mas às vezes rimar é preciso.
Meu coração faz como um saco de papel socado
Com força, cheio de sopro, contra a parede do lado.
E o transeunte, num sobressalto, volta-se de repente
E eu acabo este poema indeterminadamente.


Álvaro de Campos 2/12/1929

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