quarta-feira, 15 de dezembro de 2010

FAZ HOJE 78 ANOS


REALIDADE

Sim, passava aqui frequentemente há vinte anos…

Nada está mudado – ou pelo menos não dou por isso –

Nesta localidade da cidade…



Há vinte anos!...

O que eu era então! Ora, era outro…

Há vinte anos e as casas não sabem de nada…



Vinte anos inúteis (e sei lá se o foram!

Sei eu o que é útil ou inútil?) …

Vinte anos perdidos (mas o que seria ganhá-los?)



Tento reconstruir na minha imaginação

Quem eu era e como era quando por aqui passava

Há vinte anos…

Não me lembro, não me posso lembrar,

O outro que aqui passava então,

Se existisse hoje talvez se lembrasse…

Há tanta personagem de romance que conheço melhor por dentro

Do que esse eu- mesmo que há vinte anos passava aqui!



Sim, o mistério do tempo.

Sim, o não se saber nada.

Sim, o termos todos nascidos a bordo.

Sim, sim, tudo isso ou outra forma de o dizer…



Daquela janela do segundo andar, ainda idêntica a si mesma,

Debruçava-se então uma rapariga mais velha que eu, mais lembradamente de azul.

Hoje, se calhar, está o quê?

Podemos imaginar tudo do que nada sabemos.

Estou parado física e moralmente: não quero imaginar nada…



Houve um dia em que subi esta rua pensando alegremente no futuro,

Pois Deus dá licença que o que não existe seja fortemente iluminado.

Hoje, descendo esta rua nem no passado penso alegremente.

Tenho a impressão que as duas figuras se cruzaram na rua, nem então nem agora,

Mas aqui mesmo, sem tempo a perturbar o cruzamento.

Olhámos indiferentemente um para o outro.

E eu o antigo lá subi a rua imaginando um futuro girassol.

E eu o moderno lá desci a rua não imaginando nada

.


Talvez isto realmente se desse…

Verdadeiramente se desse…

Sim, calmamente se desse…



Sim, talvez…



ÁLVARO DE CAMPOS, 15 DE DEZEMBRO DE 1932

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