domingo, 19 de dezembro de 2010

FAZ HOJE 77 ANOS


DACTILOGRAFIA
Traço sozinho, no meu cubículo de engenheiro, o plano,
Formo o projecto, aqui isolado,
Remoto até de quem sou.


Ao lado, acompanhamento banalmente sinistro,
O tic-tac das máquinas de escrever.

Que náusea de vida!
Que abjecção esta regularidade!
Que sono este ser assim!

Outrora, quando fui outro, eram castelos e cavalarias
(Ilustrações, talvez, de qualquer livro de infância),
Outrora, quando fui verdadeiramente ao meu sonho,
Eram grandes paisagens do Norte, explícitas de neve,
Eram grandes palmares do sul, opulentos de verdes.

Outrora…

Ao lado, acompanhamento banalmente sinistro,
O tic-tac das máquinas de escrever.

Temos todos duas vidas:
A verdadeira, que é a que sonhamos na infância,
E que continuamos sonhando, adultos, num substracto de névoa;
A falsa, que é a que vivemos em convivência, com os outros,
Que é a prática, a útil,
Aquela em que acabam por nos meter num caixão.

Na outra não há caixões, nem mortos.
Há só ilustrações de infância:
Grandes livros coloridos, para ver e não ler;
Grandes páginas de cores para recordar mais tarde..
Na outra somos nós,
Na outra vivemos;
Nesta morremos, que é o que viver quer dizer.
Neste momento, pela náusea, vivo só na outra…

Mas ao lado, acompanhamento banalmente sinistro,
Se, desmeditando, escuto,
Ergue a voz o tic-tac estalado das máquinas de escrever.


ÁLVARO DE CAMPOS, 19 DE DEZEMBRO DE 1933
.

Sem comentários: