terça-feira, 14 de dezembro de 2010

Faz 86 anos


A CEIFEIRA



Ela canta, pobre ceifeira,

Julgando-se feliz talvez;

Canta, e ceifa, e a sua voz, cheia

De alegre e anónima viuvez,



Ondula como um canto de ave

No ar limpo como um limiar,

E há curvas no enredo suave

Do som que ela tem a cantar.


Ouvi-la alegra e entristece,

Na sua voz há o campo e a lida,

E canta como se tivesse

Mais razões p’ra cantar que a vida.



Ah, canta, canta sem razão!

O que em mim sente ‘stá pensando.

Derrama no meu coração

A tua voz incerta ondeando!



Ah, poder ser tu sendo eu!

Ter a tua alegre inconsciência

E a consciência disso! Ó céu!

Ó campo, ó canção! A ciência



Pesa tanto e a vida é tão breve!

Entrai por mim dentro! Tornai

Minha alma a vossa sombra leve!

Depois, levando-me, passai!




FERNANDO PESSOA, DEZEMBRO DE 1924

Sem comentários: