sábado, 25 de dezembro de 2010

POEMAS DE NATAL


FAZ HOJE 98 ANOS
Uma Melodia

Uma melodia
No meu ser nasceu…
Senti-a, perdi-a;
Nascendo, morreu…

Relâmpago breve,
Vendo-a, não a vi;
Mas minha alma a teve,
Nova, e sua, e em si.


Com que horror de mágoa
Buscu-a em vão, em vão…
Fujiu-me da mão, água…
Nem abri a mão!


Que importa, olhos meus?
Passou por meu ser
De Deus para Deus…
Torná-la-ei a ter…


FERNANDO PESSOA, 25 DE DEZEMBRO DE 1912


Faz hoje 92 anos


No ouro sem fim da tarde morta,
Na poeira de outro sem lugar
Da tarde que me passa à porta
Para não parar.


No silêncio dourado ainda
Dos arvoredos verde-fim,
Recordo. Eras antiga e linda
E estás em mim…


Tua memória há sem que houvesses,
Teu ar, sem que fosses alguém.
Como uma brisa me estremeces
E eu choro um bem…


Perdi-te. Não te tive. A hora
É suave para a minha dor.
Deixa meu ser que rememora
Sentir o amor,


Ainda que amar seja um receio,
Uma lembrança falsa e vã.
E a noite deste vago anseio
Não tenha manhã.


FERNANDO PESSOA, 25 DE DEZEMBRO DE 1918


FAZ HOJE 92 ANOS


O sol às casas, como a montes,
Vagamente doura.
Na cidade sem horizontes
Uma tristeza loura


Com a sombra da tarde desce
E um pouco dói
Porque quanto é tarde
Tudo quanto foi.


Nesta hora mais que em outra choro
O que perdi.
Em cinza e ouro rememoro
E nunca o vi.


Felicidade por nascer,
Mágoa a acabar,
Ânsia de só aquilo ser
Que há-de ficar –


Sussurro sem que se ouça, palma
Da isenção.
Ó tarde, fica noite, e alma
Tenha perdão.


FERNANDO PESSOA, 25 DE DEZEMBRO DE 1918



Faz hoje 87 anos


Se hás-de ser o que choras
Ter que ser, não o chores.
Se toda a mole imensa
Do mundo ser-te-á noite,
Aproveita esse breve
Dia, e sem choro ou cura
Goza-o, contente por viveres
O pouco que te é dado.


RICARDO REIS, 25 DE DEZEMBRO DE 1923


FAZ HOJE 80 ANOS


Aquela loura a olhar a rir
Que tinha o lenço descaído
E cujo andar faz descobrir
O que há por trás do seu vestido,
Aquela loura fez-me mal


E o meu olhar foi casual
É isto. A gente vive asceta
E acha bastante só pensar
E em plena rua vem a seta
Que um corpo é arco de atirar.
Sim, o ascetismo continua
Mas fica essa visão da rua.


E entre mim e o que escrevo passa
O maneio que não olvido,
O olhar rindo com graça
A boca, o lenço descaído,
E já o meu coração não tem
A paz que a ela e a mim convém.


Mas (não desejo exagerar)
Não pesa muito essa visão
Que vem assim arreliar
A minha firme solidão…
O mal que faz consegue conter
Toda a brandura do prazer.


Bem: vamos à filosofia.
A cada qual, inda se o nada
Acata, há sempre uma alegria
Que dá e passa e dói e agrada…
E solidão todos a têm
O caso é que procurem bem.


FERNANDO PESSOA, 25 DE DEZEMBRO DE 1930


FAZ HOJE 80 ANOS

Chove. É dia de Natal
Lá para o Norte é melhor:
Há neve que faz mal
E um frio que ainda é pior.


E toda a gente é contente
Porque é dia de o ficar.
Chove no Natal presente,
Antes isso que nevar.


Pois apesar de ser esse
O Natal da convenção,
Quando o corpo me arrefece
Tenho frio e Natal não.


Deixo sentir a quem quadra
E o Natal a quem o faz,
Pois se vai mais uma quadra
Apanho um Natal nos pés.


Não quero ser dos ingratos
Mas, com este mesmo céu,
Puseram-me nos sapatos
Só o que a chuva me deu.


FERNANDO PESSOA 25 DE DEZEMBRO DE 1930


FAZ HOJE 80 ANOS


Não tenho ninguém que me ame.
‘Spera lá, tenho; mas é
Difícil ter-se a certeza
Daquilo em que se não crê.


Não é não crer por descrença,
Porque sei: gostam de mim.
É um não crer por feitio
E teimar em ser assim.


Não tenho ninguém que me ame.
Para este poema existir
Tenho por força de ter
Esta mágoa de sentir.


Que pena não ser amado!
Meu perdido coração!
Et cetera, e está acabado
O meu poema pensado.
Sentir é outra questão…

FERNANDO PESSOA 25 DE DEZEMBRO DE 1930


FAZ HOJE 80 ANOS


O sino da igreja velha
Tem um som familiar,
E as casas baixas de telha
Têm telhados a brilhar.


Não sei a que o sino toca
Não sei o que o sino evoca
Meu coração não coloca
As coisas no seu lugar.


Era tão feliz outrora
Que já não sei se era eu.
Aquele que sou agora
Se existe, é porque morreu.


Não tem missa na igreja,
Nem coisa alguma que seja
O que sente ou deseja.
E o sino cessa no ceu.


E à missa a que vão crentes
Ou a que vai quem lá vai
Que o sino com sons frequentes
Toca esse som que lhe sai –


Seja o que for vai tocando
E no meu coração brando
Como uma clepsidra soando
Cada som lembrado cai.

FERNANDO PESSOA 25 DE DEZEMBRO DE 1930


FAZ HOJE 80 ANOS


Na praia baixa a onde morre
E se desfaz a chiar,
Olho, mas nada me ocorre
Senão que estou vendo o mar.


Dizem que o mar reza cânticos,
Que a onda é renda e veludo,
Mas os poetas românticos
Já venderam isso tudo.


Por isso ante o mar real
E as ondas como ali há,
Acho tudo natural.
Versos? Um outro os fará…


FERNANDO PESSOA 25 DE DEZEMBRO DE 1930


FAZ HOJE 80 ANOS


Por trás daquela janela
Cuja cortina não muda
Coloco a visão daquela
Que a alma em si mesma estuda
No desejo que a revela.


Não tenho falta de amor.
Quem me queira não me falta.
Mas teria outro sabor
Se isso fosse interior
Àquela janela alta.


Porquê? Se eu soubesse, tinha
Tinha tudo o que desejo ter.
Amei outrora a Rainha,
E há sempre na alma minha
Um trono por preencher.


Sempre que posso sonhar,
Sempre que não vejo, ponho
O trono nesse lugar;
Além da cortina é o lar,
Além da janela o sonho.


Assim, passando, entreteço
O artifício do caminho
E um pouco de mim me esqueço.
Pois mais nada à vida peço
Do que ser o seu vizinho.


FERNANDO PESSOA 25 DE DEZEMBRO DE 1930


Sem comentários: