domingo, 7 de abril de 2013

FAZ HOJE 96 ANOS



Sim, porque os deuses guardam 
Não só o que têm, mas também o que aguardam. 
Sim, porque os Deuses podem ver 
Não só o que é, mas também o que há-de ser. 

Por isso eles, prevendo 
Qualquer destino em nós ainda oculto 
Aos olhos que só vêem o vulto 
Do actual e do presente 
Eles, zelando e entendendo 
Cousas que do futuro nós não vemos 
Zelam o pouco do presente que temos 
Para que um dia, subitamente, 
Atinjamos o fim que eles quiseram 
E para que nos deram 
A vida, ainda que má, que imos vivendo. 

Invisível Destino 
Vela por nós na noite. 
A nossa alma não tem onde se acoite, 
O nosso esforço falha como um hino 
Esquecido, o nosso coração 
Treme na incerta mão 
Que lhe maneja os fins mal-contornados, 
Mas um Destino que não percebemos 
Protege-nos os fados 
E guarda em nós o que nós não sabemos. 

Para que fim, senhores que regeis 
A humana vida, é que nos heis guardado? 
Qual é a outra Descoberta que heis 
Ao nosso absurdo esforço destinado? 
Porque assim por nós cúmplices velais 
Da nossa infâmia e da desídia nossa? 
Vós o sabeis, vós longe em vós guardais 
O segredo de nós e da ânsia vossa. 

Será que em outras partes do Universo 
Outras Índias aguardam nossa vinda? 
Outro Cabo sinistro á acaso emerso 
De qualquer outro clamoroso sul, 
Que o nosso esforço, de si próprio exul, 
Ó deuses, tenha que o buscar ainda? 

Guardais-nos. Para que é que nos guardais? 
Tanto povo, qual de nós, assim descido 
Ao lixo da miséria, e ao pervertido 
Amor da pátria que aos morrentes dais, 
Passou, e como o fumo dos casais 
Na tarde anoitecendo se esvai lento 
Na noite e na distância e pelo vento, 
Nunca mais foi... E por que somos nós 
Ainda vivos, povo humilde a sós 
Com o seu vácuo e ignóbil pensamento? 

Porque sobrevivemos à nossa alma? 
Há muito tempo a morte nos devia 
Ter apartado, e à sua mansão fria 
E à sua incerta e definida calma 
Ter conduzido. 

Sim, para que sejamos, nós quem somos? 
Tudo o que somos é só o que fomos, 
Nada em nós resta do que é nossa história 
Salvo a memória inútil da memória 
Que por ser só lembrada se detesta. 
Pois quando o braço falha e a alma é oca 
Quando nada de nós que foi nos resta, 
A muita memória é vida pouca. 

Ao menos revelai, para que a vida 
Nos saiba ao menos ao futuro certo 
Qual a missão que inda nos é devida 
Pelo vago Destino indescoberto. 
Dizei ao menos que em verdade tendes 
Guardado para nós algum destino, 
Para que a vida nos não pese tanto 
E alguma cousa do futuro encanto 
Afaste da nossa alma os seus duendes 
Do seu constante e incerto desatino. 

Dizei que nosso esforço talvez faça 
Descer os deuses outra vez à terra. 
Dizei que num futuro que ainda traça 
O destino em seu Longe, oculta guerra 
Ganharemos em terras por saber. 
Dizei em que é que havemos de vencer, 
Para que hoje não pese, que ainda aterra. 

Contai ao que profético em nossa alma 
Nesses segredos ditos alta noite 
Ao senso irreal de nós, quando se afoite 
Até aos pés da vossa fácil calma, 
Quais são as misteriosas ordenanças 
Que para o nosso atónito porvir 
Haveis escrito; dizei entre que lanças 
Havemos finalmente de cair. 

Dizei ao menos que num derradeiro 
Esforço como o da chama quando cessa 
E ilumina um momento o quarto inteiro 
E após morre, que um dia 
Cairemos num fim digno 
Não do que somos, mas do nosso outrora 
Ao menos isso reste à nossa esp’rança 
Nesta atra e ignóbil hora 
Em que o nosso destino é um que chora 
E a nossa arte um palhaço que dança.


FERNANDO PESSOA, 7 DE ABRIL DE 1917

Sem comentários: