Sim, porque os deuses guardam
Não só o que têm, mas
também o que aguardam.
Sim, porque os Deuses
podem ver
Não só o que é, mas
também o que há-de ser.
Por isso eles,
prevendo
Qualquer destino em
nós ainda oculto
Aos olhos que só vêem
o vulto
Do actual e do
presente
Eles, zelando e
entendendo
Cousas que do futuro
nós não vemos
Zelam o pouco do
presente que temos
Para que um dia,
subitamente,
Atinjamos o fim que
eles quiseram
E para que nos deram
A vida, ainda que má,
que imos vivendo.
Invisível Destino
Vela por nós na
noite.
A nossa alma não tem
onde se acoite,
O nosso esforço falha
como um hino
Esquecido, o nosso
coração
Treme na incerta mão
Que lhe maneja os
fins mal-contornados,
Mas um Destino que
não percebemos
Protege-nos os fados
E guarda em nós o que
nós não sabemos.
Para que fim,
senhores que regeis
A humana vida, é que
nos heis guardado?
Qual é a outra
Descoberta que heis
Ao nosso absurdo
esforço destinado?
Porque assim por nós
cúmplices velais
Da nossa infâmia e da
desídia nossa?
Vós o sabeis, vós
longe em vós guardais
O segredo de nós e da
ânsia vossa.
Será que em outras
partes do Universo
Outras Índias
aguardam nossa vinda?
Outro Cabo sinistro á
acaso emerso
De qualquer outro
clamoroso sul,
Que o nosso esforço,
de si próprio exul,
Ó deuses, tenha que o
buscar ainda?
Guardais-nos. Para
que é que nos guardais?
Tanto povo, qual de
nós, assim descido
Ao lixo da miséria, e
ao pervertido
Amor da pátria que
aos morrentes dais,
Passou, e como o fumo
dos casais
Na tarde anoitecendo
se esvai lento
Na noite e na
distância e pelo vento,
Nunca mais foi... E
por que somos nós
Ainda vivos, povo
humilde a sós
Com o seu vácuo e
ignóbil pensamento?
Porque sobrevivemos à
nossa alma?
Há muito tempo a
morte nos devia
Ter apartado, e à sua
mansão fria
E à sua incerta e
definida calma
Ter conduzido.
Sim, para que
sejamos, nós quem somos?
Tudo o que somos é só
o que fomos,
Nada em nós resta do
que é nossa história
Salvo a memória inútil
da memória
Que por ser só
lembrada se detesta.
Pois quando o braço
falha e a alma é oca
Quando nada de nós
que foi nos resta,
A muita memória é
vida pouca.
Ao menos revelai,
para que a vida
Nos saiba ao menos ao
futuro certo
Qual a missão que
inda nos é devida
Pelo vago Destino
indescoberto.
Dizei ao menos que em
verdade tendes
Guardado para nós
algum destino,
Para que a vida nos
não pese tanto
E alguma cousa do
futuro encanto
Afaste da nossa alma
os seus duendes
Do seu constante e incerto
desatino.
Dizei que nosso
esforço talvez faça
Descer os deuses
outra vez à terra.
Dizei que num futuro
que ainda traça
O destino em seu
Longe, oculta guerra
Ganharemos em terras
por saber.
Dizei em que é que
havemos de vencer,
Para que hoje não
pese, que ainda aterra.
Contai ao que
profético em nossa alma
Nesses segredos ditos
alta noite
Ao senso irreal de
nós, quando se afoite
Até aos pés da vossa
fácil calma,
Quais são as
misteriosas ordenanças
Que para o nosso
atónito porvir
Haveis escrito; dizei
entre que lanças
Havemos finalmente de
cair.
Dizei ao menos que
num derradeiro
Esforço como o da
chama quando cessa
E ilumina um momento
o quarto inteiro
E após morre, que um
dia
Cairemos num fim
digno
Não do que somos, mas
do nosso outrora
Ao menos isso reste à
nossa esp’rança
Nesta atra e ignóbil
hora
Em que o nosso
destino é um que chora
E a nossa arte um
palhaço que dança.
FERNANDO PESSOA, 7 DE
ABRIL DE 1917
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