sexta-feira, 26 de abril de 2013

FAZ HOJE 79 ANOS





Sangra-me o coração. Tudo que penso
A emoção mo tomou. Sofro esta mágoa
Que é o mundo imoral, regrado e imenso,
No qual o bem é só como um incenso
Que cerca a vida, como a terra a água.

Todos os dias, oiça ou veja, dão
Misérias, males, injustiças - quanto
Pode afligir o estéril coração. 
E todo anseio pelo bem é vão, 
E a vontade tão vã como é o pranto. 

Que Deus duplo nos pôs na alma sensível 
Ao mesmo tempo os dons de conhecer 
Que o mal é a norma, o natural possível, 
E de querer o bem, inútil nível, 
Que nunca assenta regular no ser? 

Com que fria esquadria e vão compasso 
Que invisível Geómetra regrou 
As marés deste mar de mau sargaço - 
O mundo fluido, com seu tempo e 'spaço, 
Que nem Deus sabe como começou?

Mas, seja como for, nesta descida 
De Deus ao ser, o mal teve alma e azo; 
E o Bem, justiça espiritual da vida, 
É perdida palavra, substituída 
Por bens obscuros, fórmulas do acaso. 

Que plano extinto, antes de conseguido, 
Ficou só mundo, norma e desmazelo? 
Mundo imperfeito, porque foi erguido? 
Como acabá-lo, templo inconcluído, 
Se nos falta o segredo com que erguê-lo? 

O mundo é Deus que é morto, e a alma aquele 
Que, esse Deus exumado, reflectiu 
A morte e a exumação que houveram dele. 
Mas 'stá perdido o selo com que sele 
Seu pacto com o vivo que caiu. 

Por isso, em sombra e natural desgraça, 
Tem que buscar aquilo que perdeu - 
Não ela, mas a morte que a repassa, 
E vem achar no Verbo a fé e a graça - 
A nova vida do que já morreu. 

Porque o Verbo é quem Deus era primeiro, 
Antes que a morte, que o tornou o mundo, 
Corrompesse de mal o mundo inteiro: 
E assim no Verbo, que é o Deus terceiro, 
A alma volve ao Bem que é o seu fundo. 


FERNANDO PESSOA, 26 DE ABRIL DE 1934

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