No limiar que não é meu
Sento-me e deixo o
irreflectido olhar
Encher-se, sem eu ver,
de campos e céu.
Se é tarde ou cedo,
deixo de notar.
Nada me diz de si
qualquer coisa que eu
Possa gozar.
Pelos campos sem fim
Sinto correr, porque na
face o sinto,
Um vago vento, estranho
todo em mim.
Não sei se penso, ou em
que dor consinto
Que seja minha ou
desespero sem fim,
Que minto.
Na inútil hora
Eu, mais inútil que ela,
sem sentir
Fito com um olhar que já
nem chora
A Dor ou desdém, dolo ou
infiel sorrir,
O absurdo céu onde
nenhuma causa mora
Para eu fruir.
Apenas, vaga,
Não uma esp'rança, mas
uma saudade
Do tempo em que a
saudade, como vaga,
Dava na praia da minha
ansiedade,
Me torna e um surdo
marulhar meu ser alaga
De vacuidade.
Sim, só pranto
Já nem choro, tornado um
impreciso
Sombrio véu em torno ao
desencanto
Da minha vida sem razão
nem riso
Ma turva o olhar um
pouco, e o campo um tanto
Torna impreciso.
Mas acordo,e com vão
Olhar ainda, mas já
diferente,
Por 'star ausente dele o
coração,
E eu outra vez nem mesmo
descontente,
Fito o céu calmo, o
campo, a alegre solidão
Inconsciente.
Nada, só o dia -
Se é tarde ou cedo
continuo a errar -
Alheio a mim, a tudo dá
alegria
De não ter coração com
que agitar
O corpo. E quando vier a
noite, tudo esfria
Mas sem chorar.
Isto, e eu comigo
Posto no eterno aquém
das coisas calmas
Que a vida externa
mostra ao céu amigo -
Campos ao sol, vivas
flores-almas.
Isto só, e não ter o
coração abrigo
Nem sol as almas!
FERNANDO PESSOA, 16 DE
FEVEREIRO DE 1920
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