Sentir tudo de todas as
maneiras,
Viver tudo de todos os
lados,
Ser a mesma coisa de
todos os modos possíveis ao mesmo tempo,
Realizar em si toda a
humanidade de todos os momentos
Num só momento difuso,
profuso, completo e longínquo.
Eu quero ser sempre
aquilo com quem simpatizo,
Eu torno-me sempre, mais
tarde ou mais cedo,
Aquilo com quem
simpatizo, seja uma pedra ou uma ânsia,
Seja uma flor ou uma
ideia abstracta,
Seja uma multidão ou um
modo de compreender Deus.
E eu simpatizo com tudo,
vivo de tudo em tudo.
São-me simpáticos os
homens superiores porque são superiores,
E são-me simpáticos os
homens inferiores porque são superiores também,
Porque ser inferior é
diferente de ser superior,
E por isso é uma
superioridade a certos momentos de visão.
Simpatizo com alguns
homens pelas suas qualidades de carácter,
E simpatizo com outros
pela sua falta dessas qualidades,
E com outros ainda
simpatizo por simpatizar com eles,
E há momentos
absolutamente orgânicos em que esses são todos os homens.
Sim, como sou rei
absoluto na minha simpatia,
Basta que ela exista
para que tenha razão de ser.
Estreito ao meu peito
arfante num abraço comovido
(No mesmo abraço
comovido)
O homem que dá a camisa
ao pobre que desconhece,
O soldado que morre pela
pátria sem saber o que é pátria,
E...
E o matricida, o
fratricida, o incestuoso, o violador de crianças,
O ladrão de estradas, o
salteador dos mares,
O gatuno de carteiras, o
sombra que espera nas vielas -
Todos são a minha amante
predilecta pelo menos um momento na vida.
Beijo na boca todas as
prostitutas,
Beijo sobre os olhos
todos os souteneurs,
A minha passividade jaz
aos pés de todos os assassinos,
E a minha capa à
espanhola esconde a retirada a todos os ladrões.
Tudo é razão de ser da
minha vida.
Cometi todos os crimes,
Vivi dentro de todos os
crimes
(Eu próprio fui, não um
nem o outro no vício,
Mas o próprio
vício-pessoa praticado entre eles,
E dessas são as horas
mais arco-de-triunfo da minha vida).
Multipliquei-me para me
sentir,
Para me sentir, precisei
sentir tudo,
Transbordei, não fiz
senão extravasar-me,
Despi-me entreguei-me.
E há em cada canto da
minha alma um altar a um deus diferente.
Os braços de todos os
atletas apertaram-me subitamente feminino,
E eu só de pensar nisso
desmaiei entre músculos supostos.
Foram dados na minha
boca os beijos de todos os encontros,
Acenaram no meu coração
os lenços de todas as despedidas,
Todos os chamamentos
obscenos de gestos e olhares
Batem-me em cheio em
todo o corpo com sede nos centros sexuais.
Fui todos os ascetas,
todos os postos-de-parte, todos os como que esquecidos,
E todos os pederastas -
absolutamente todos (não faltou nenhum).
Rendez-vous a vermelho e
negro no fundo-inferno da minha alma!
(Freddie, eu chamava-te
Baby, porque tu eras louro, branco e eu amava-te,
Quantas imperatrizes por
reinar e princesas destronadas tu foste para mim!
Mary, com quem eu lia
Burns em dias tristes como sentir-se viver,
Mary, mal tu sabes
quantos casais honestos, quantas famílias felizes,
Viveram em ti os meus
olhos e o meu braço cingindo e a minha consciência incerta,
A sua vida pacata, as
suas casas suburbanas com jardim, os seus half-holidays inesperados...
Mary, eu sou infeliz...
Freddie, eu sou
infeliz...
Oh, vós todos, todos
vós, casuais, demorados,
Quantas vezes tereis
pensado em pensar em mim, sem que o fizésseis,
Ah, quão pouco eu fui no
que sois, quão pouco, quão pouco -
Sim, e o que tenho eu
sido, ó meu subjectivo universo,
Ó meu sol, meu luar,
minhas estrelas, meu momento,
Ó parte externa de mim
perdida em labirintos de Deus!)
Passa tudo, todas as
coisas num desfile por mim dentro,
E todas as cidades do
mundo rumorejam-se dentro de mim...
Meu coração tribunal,
meu coração mercado, meu coração sala da Bolsa, meu coração balcão de Banco,
Meu coração rendez-vous
de toda a humanidade,
Meu coração banco de
jardim público, hospedaria, estalagem, calabouço número qualquer coisa,
('Aqui estuvo ei Manolo
en visperas de ir al patibulo')
Meu coração club, sala,
plateia, capacho, guichet, portaló,
Ponte, cancela, excursão,
marcha, viagem, leilão, feira, arraial,
Meu coração postigo,
Meu coração encomenda,
Meu coração carta,
bagagem, satisfação, entrega,
Meu coração a margem, o
limite, a súmula, o índice,
Eh-lá, eh-lá, eh-lá,
bazar o meu coração.
Todas as madrugadas são
a madrugada e a vida.
Todas as auroras raiam
no mesmo lugar:
Infinito...
Todas as alegrias de ave
vêm da mesma garganta,
Todos os estremecimentos
de folhas são da mesma árvore,
E todos os que se
levantam cedo para ir trabalhar
Vão da mesma casa para a
mesma fábrica por o mesmo caminho...
Rola, bola grande,
formigueiro de consciências, terra,
Rola, auroreada,
entardecida, a prumo sobre sóis, nocturna,
Rola no espaço
abstracto, na noite mal iluminada realmente
Rola e (...)
Sinto na minha cabeça a
velocidade do giro da terra,
E todos os países e
todas as pessoas giram dentro de mim,
Centrífuga ânsia, raiva
de ir por os ares até aos astros
Bate pancadas de
encontro ao interior do meu crânio,
Põe-me alfinetes
vendados por toda a consciência do meu corpo,
Faz-me levantar-me mil
vezes e dirigir-me para Abstracto,
Para inencontrável, Ali
sem restrições nenhumas,
A Meta invisível todos
os pontos onde eu não estou, e ao mesmo tempo
(...)
Ah, não estar parado nem
a andar,
Não estar deitado nem de
pé,
Nem acordado nem a
dormir,
Nem aqui nem noutro
ponto qualquer,
Resolver a equação desta
inquietação prolixa,
Saber onde estar para
poder estar em toda a parte,
Saber onde deitar-me
para estar passeando por todas as ruas,
Saber onde (...)
Ho-ho-ho-ho-ho-ho-ho
HO-HO-HO-HO-HO-HO-HO
HO-HO-HO-HO-HO-HO-HO
HO-HO-HO-HO-HO-HO-HO
Cavalgada alada de mim
por cima de todas as coisas,
Cavalgada estalada de
mim por baixo de todas as coisas,
Cavalgada alada e
estalada de mim por causa de todas as coisas...
Hup-la por cima das
árvores, hup-la por baixo dos tanques,
Hup-la contra as
paredes, hup-la raspando nos troncos,
Hup-la no ar, hup-la no
vento, hup-la, hup-la nas praias,
Numa velocidade
crescente, insistente, violenta,
Hup-la hup-la hup-la
hup-la......
Cavalgada panteísta de
mim por dentro de todas as coisas,
Cavalgada energética por
dentro de todas as energias,
Cavalgada de mim por
dentro do carvão que se queima, da lâmpada que arde
De todos os consumos de
energia
Cavalgada de mil
amperes, [...]
Cavalgada explosiva,
explodida como uma bomba que rebenta
Cavalgada rebentando
para todos os lados ao mesmo tempo,
Cavalgada por cima do
espaço, salto por cima do tempo,
Galga, cavalo electrão -
ião -, sistema solar resumido
Por dentro da acção dos
êmbolos, por fora do giro dos volantes.
Dentro dos êmbolos,
tornado velocidade abstracta e louca,
Ajo a ferro e
velocidade, vai-vem, loucura, raiva contida,
Atado ao rasto de todos
os volantes giro assombrosas horas,
E todo o universo range,
estraleja e estropia-se em mim.
Ho-ho-ho-ho-ho...
Cada vez mais depressa,
cada vez mais com o espírito adiante do corpo
Adiante da própria ideia
veloz do corpo projectado,
Com espírito atrás
adiante do corpo, sombra, chispa,
He-la-ho-ho... Helahoho.
Toda a energia é a mesma
e toda a natureza é o mesmo...
A seiva da seiva das
árvores é a mesma energia que mexe
As rodas da locomotiva,
as rodas do eléctrico, os volantes dos Diesel,
E um carro puxado a
mulas ou a gasolina é puxado pela mesma coisa.
Raiva panteísta de
sentir em mim formidandamente,
Com todos os meus
sentidos em ebulição, com todos os meus poros em fumo,
Que tudo é uma só
velocidade, uma só energia, uma só divina linha
De si para si, parada a
ciciar violências de velocidade louca...
Ho-ho-ho-ho-ho-ho-ho
HO-HO-HO-HO-HO-HO-HO
HO-HO-HO-HO-HO-HO-HO
HO-HO-HO-HO-HO-HO-HO
Ave, salve, viva a
unidade veloz de tudo!
Ave. salve, viva a
igualdade de tudo em seta!
Ave, salve, viva a
grande máquina universo!
Ave, que sois o mesmo,
árvores, máquinas, leis,
Ave, que sois o mesmo,
vermes, êmbolos, ideias abstractas,
A mesma seiva vos enche,
a mesma seiva vos torna,
A mesma coisa sois, e o
resto é por fora e falso,
O resto, o estático
resto que fica nos olhos que param,
Mas não nos meus nervos
motor de explosão a óleos pesados ou leves,
Não nos meus nervos
todas as máquinas, todos os sistemas de engrenagem,
Nos meus nervos
locomotiva, carro-eléctrico, automóvel, debulhadora a vapor,
Nos meus nervos máquina
marítima, Diesel, semi-Diesel, Campbell,
Nos meus nervos
instalação absoluta a vapor, a gás, a óleo e a electricidade,
Máquina universal movida
por correias de todos os momentos!
Comboio parte-te de
encontro ao resguardo da linha de desvio!
Vapor navega direito ao
cais e racha-te contra ele!
Automóvel guiado pela
loucura de todo o universo precipita-te
Por todos os precipícios
abaixo
E choca-te, trz!,
esfrangalha-te no fundo do meu coração!
À moi, todos os objectos
projécteis!
À moi, todos os objectos
direcções!
À moi, todos os objectos
invisíveis de velozes!
Batam-me, trespassem-me,
ultrapassem-me!
Sou eu que me bato, que
me trespasso, que me ultrapasso!
A raiva de todos os
ímpetos fecha em círculo-mim!
Hela-hoho comboio,
automóvel, aeroplano minhas ânsias,
Velocidade entra por
todas as ideias dentro,
Choca de encontro a
todos os sonhos e parte-os,
Chamusca todos os ideais
humanitários e úteis,
Atropela todos os
sentimentos normais, decentes, concordantes,
Colhe no giro do teu
volante vertiginoso e pesado
Os corpos de todas as
filosofias, os trapos de todos os poemas,
Esfrangalha-os e fica só
tu, volante abstracto nos ares,
Senhor supremo da hora
europeia metálico e cio.
Vamos, que a cavalgada
não tenha fim nem em Deus!
Vamos que mesmo eu fique
atrás da cavalgada, que eu fique
Arrastado à cauda do
cavalo, torcido, rasgado, perdido
Em queda, meu corpo e
minha alma atrás da minha ânsia abstracta
Da minha ânsia
vertiginosa de ultrapassar o universo,
De deixar Deus atrás
como um marco miliário nulo,
De deixar o m(...)
Dói-me a imaginação não
sei como, mas é ela que dói.
Declina dentro de mim o sol
no alto do céu.
Começa a tender a
entardecer no azul e nos meus nervos.
Vamos ó cavalgada, quem
mais me consegues tornar?
Eu que, veloz, voraz,
comilão da energia abstracta,
Queria comer, beber,
esfolar e arranhar o mundo,
Eu, que só me
contentaria com calcar o universo aos pés,
Calcar, calcar, calcar
até não sentir...
Eu, sinto que ficou fora
do que imaginei tudo o que quis,
Que embora eu quisesse
tudo, tudo me faltou,
(...)
Cavalgada desmantelada
por cima de todos os cimos,
Cavalgada desarticulada por
baixo de todos os poços,
Cavalgada voo, cavalgada
seta, cavalgada pensamento-relâmpago,
Cavalgada eu, cavalgada
eu, cavalgada o universo-eu.
Helahoho-o-o-o-o-o-o-o...
Meu ser elástico, mola,
agulha, trepidação...
ÁLVARO DE CAMPOS, 22 DE
MAIO DE 1916
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