quinta-feira, 27 de fevereiro de 2014

FAZ HOJE 105 ANOS



Soam vãos, dolorido epicurista,
Os versos teus, que a minha dor despreza;
Já tive a alma sem descrença presa
Desse teu sonho que perturba a vista.
Da Perfeição segui em vã conquista,
Mas vi depressa, já sem a alma acesa,
Que a própria ideia em nós dessa Beleza
Um infinito de nós mesmos dista.
Nem à nossa alma definir podemos
A Perfeição em cuja estrada a vida,
Achando-a intérmina, a chorar perdemos.
O mar tem fim, o céu talvez o tenha,
Mas não a ânsia de Cousa indefinida
Que o ser indefinida faz tamanha.

Nem defini-la, nem achá-la, a ela -
A Beleza. No mundo não existe.
Ai de quem com a alma inda mal triste
Nos seres transitórios quer colhê-la!
Acanhe-se a alma porque não conquiste
Mais que o banal de cada cousa bela,
Ou saiba que ao ardor de qu'rer havê-la -
À Perfeição - só a desgraça assiste.
Só quem da vida bebeu todo o vinho,
Dum trago ou não, mas sendo até ao fundo,
Sabe (mas sem remédio) o bom caminho;
Conhece o tédio extremo da desgraça,
Que olha estupidamente o nauseabundo
Cristal inútil da vazia taça.

Só quem puder obter a estupidez
Ou a loucura pode ser feliz.
Buscar, querer, amar... tudo isto diz
Perder, chorar, sofrer, vez após vez.
A Estupidez achou sempre o que quis
No círculo banal da sua avidez;
Nunca aos loucos o engano se desfez
Com quem um falso mundo seu condiz.
Há dois males: verdade e aspiração,
E há uma forma só de os saber males -
É, vivendo-lhe o ser, saber que são

Um o horror real, o outro o vazio -
Horror não menos, dois como que vales
Ao pé dum monte que ninguém subiu.

Leva-me longe, meu suspiro fundo,
Além do que deseja e que começa -
Lá muito longe, onde o viver se esqueça
Das formas metafísicas do mundo.

Aí que o meu sentir vago e profundo
O seu lugar exterior conheça;
Aí durma em fim, aí em fim faleça
O cintilar do espírito fecundo.

Aí... mas de que serve imaginar
Regiões onde o sonho é verdadeiro,
Ou terras para o ser adormentar?

É elevar de mais a aspiração
E, falhado esse sonho derradeiro,
Encontrar mais vazio o coração.

Braços cruzados, sem pensar nem crer,
Fiquemos pois sem mágoas nem desejos;
Deixemos beijos, pois o que são beijos?
A vida é só o esperar morrer.

Longe da dor e longe do prazer
Conheçamos no sono os benfazejos
Poderes únicos; sem urzes, brejos,
A sua estrada sabe apetecer.

C'roado de papoulas, e trazendo
Artes porque com sono tira sonhos,
Venha Morfeu, que, as almas envolvendo,

Faça a felicidade ao mundo vir
Num nada onde sentimo-nos risonhos
Só de sentirmos nada já sentir.

O sono - oh, ilusão! - o sono? Quem
Logrará esse vácuo ao qual aspira
A alma que, de esperar em vão, delira,
E já nem forças para querer tem?

Que sono apetecemos? O de alguém
Adormecido na feliz mentira
De sonolência vaga, que nos tira
Todo o sentir no qual a dor nos vem?

Ilusão tudo! Qu'rer um sono eterno,
Um descanso, uma paz, não é senão
O último anseio desesp'rado e vão.

Perdido, resta o derradeiro inferno
De tédio intérmino, esse de já não
Nem aspirar a ter aspiração.


FERNANDO PESSOA, 27 DE FEVEREIRO DE 1909



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