quinta-feira, 18 de julho de 2013

FAZ HOJE 92 ANOS



A noite é calma, o ar é grave, 
Na sombra cai um luar vago... 
Subtil, a sem-razão suave 
Da vida estagna como um lago 
Na sensação, e a alma esquece 
Ao fim dos parques da emoção, 
Ao som da brisa que estremece 
As águas dessa solidão. 

Nesta hora, como se entretecendo 
De uma meada em mãos com sono 
Que vão compondo e desfazendo 
Em afagos desse abandono, 
Com sensações de mão que as tece 
A mão que as tece adorno a alma 
E o gesto, com que teço, esquece, 
E o fundo da alma não tem calma. 

Outrora, ao pé dos balaústres 
Vizinhos a se ver o mar 
E a noite, sonhos vãos e ilustres 
Deram futuro ao meu sonhar. 
Hoje, amargo de só ficar-me 
Daqueles sonhos tê-los tido 
Vivo de inútil recordar-me 
Qual se fosse outro o eu vivido. 

Outrora fui quem hoje me amo, 
E não amava quem eu era. 
Sem voz, oculto, por mim chamo. 
Choveu na minha primavera. 
A noite, sem saber de mim, 
Com sua vaga brisa tece 
Meadas de destino e fim 
Em dedos em que a alma esquece. 

Conheço o fundo ao gozo e à dor 
Sem ter da dor e gozo havido 
Mais que a sombra sem vulto ou cor, 
E dos passos o coro e o ruído. 
Ó noite, ó luar, ó brisa incerta, 
Não me deis mais que eu nada ser. 
Só me fiquei a janela aberta 
Da vida, e a sinto sem saber. 



FERNANDO PESSOA, 18 DE JULHO DE 1921

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