sexta-feira, 5 de julho de 2013

FAZ HOJE 102 ANOS




O CANTO DA SEREIA

Para que navegar entre os rochedos quedos 
No silêncio do mar prateando e arfando do luar? 
Para que não descansar entre os quedos rochedos 
Paradas as naus, a ouvir os segredos 
Da melodia dolente e enlanguescente do mar?... 

Dorme um luar macio, sombrio (…) e cálido 
Sobre o murmúrio profundo do mundo na solidão 
Nas terras ao longe o alvor da noite é pálido 
E o nosso canto desce e desfalece inválido 
Do que pode ser vida no (…) da ilusão. 

Todo o mal é ignorar o lugar e deixar-se ir na ida 
Da alma à mudança e à dor ansiosa de partir 
E em cada vez que se avança mais só o ardor da partida 
Cada vez mais ansiamos por um novo lugar da vida 
Para quê se tudo é o mesmo? Mais nos valera dormir. 

Mais nos valera ao luar sombrio e silencioso 
Ter o esquecimento de estar aqui e o saber; 
Ter o sonho por vida e ter o percurso ocioso 
Do sonho por vida e sem despedida no mesmo dormente gozo 
Viajar eternamente sem se ter que ser ou morrer. 

Se vem da alma o ardor e a dor de ir, e no fundo 
Silêncio achar a ilusão em cada lugar do mundo 
De que pode outro lugar a dita dar e o amor? 
Se vem da alma viaja a alma - o mar é profundo 
E o seu embalar faz a alma sonhar e ser um gozo a dor... 

Só os jardins da terra desgostam - os jardins de sonho 
Têm a perfeição que nada de real tem... 
Só os palácios sonhados não têm o (…) tristonho 
Do homem e imperfeição de ser. Só é sempre risonho 
O sol que se sonha eterno num ideal crepúsculo além... 

Deixai-nos pois embalar nos nossos cantos. Daremos 
Às nossas almas os sonhos para que nem o esforço de ter 
Que sonhar nos perturbe. Amainai as velas, e aos remos 
Deixai-os cair na água deslizados e lentos, nós temos 
Mais para alma que o para onde vela e remo nos podem mover... 

Deixai-nos dormir e ter-nos por sonho o canto 
E o encanto do que cantamos por vivida e sonhada sensação... 
Sonho eterno ao luar, sonho de afago e quebranto 
Prendei-nos no cantar que cai sobre nós como um manto 
E até a morte será no nosso ser sem espanto 
Um continuar do sonho, um sonhar-nos sem ilusão... 





FERNANDO PESSOA, 5 DE JULHO DE 1911

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