segunda-feira, 26 de março de 2012

MENSAGEM


O CONDE D. HENRIQUE

Todo o começo é involuntário.
Deus é o agente.
O herói a si assiste, vário
E inconsciente.

Á espada em tuas mãos achada
Teu olhar desce.
Que farei com esta espada?

Ergueste-a, e fez-se.


D. AFONSO HENRIQUES

Pai, foste cavaleiro.
Hoje a vigília é nossa.
Dá-nos o exemplo inteiro
E a tua inteira força!

Dá, contra a hora em que, errada,
Novos infiéis vençam,
A bênção como espada,
A espada como bênção!


D. JOÃO O PRIMEIRO

O homem e a hora são um só
Quando Deus faz e a história é feita.
O mais é carne, cujo pó
A terra espreita.

Mestre, sem o saber, do Templo
Que Portugal foi feito ser,
Que houveste glória e deste o exemplo
De o defender.

Teu nome, eleito em sua fama,
É, na ara da nossa alma interna,
A que repele, eterna chama,
A sombra eterna.



D. FILIPA DE LENCASTRE

Que enigma havia em teu seio
Que só génios concebia?
Que arcanjo teus sonhos veio
Velar, maternos, um dia?

Volve a nós teu rosto sério,
Princesa do Santo Gral,
Humano ventre do Império,
Madrinha de Portugal!


D. DUARTE, REI DE PORTUGAL

Meu dever fez-me, como Deus ao Mundo.
A regra de ser Rei almou meu ser,
Em dia e letra escrupuloso e fundo.

Firme em minha tristeza, tal vivi.
Cumpri contra o destino o meu dever.
Inutilmente? Não, porque o cumpri.


D. SEBASTIÃO, REI DE PORTUGAL

Louco, sim, louco, porque quis grandeza
Qual a sorte a não dá.
Não coube em mim minha certeza;
Por isso onde o areal está
Ficou meu ser que houve, não o que há.

Minha loucura, outros que me a tomem
Com o que nela ia.
Sem loucura que é o homem
Mais que besta sadia,
Cadáver adiado que procria?



NUNÁLVARES PEREIRA

Que auréola te cerca?
É a espada que, volteando,
Faz que o ar alto perca
Seu azul negro e brando.

Mas que espada é que, erguida,
Faz esse halo no céu?
É Excalibur, a ungida,
Que o Rei Artur te deu.

‘sperança consumada,
S. Portugal em ser,
Ergue a luz da tua espada
Para a estrada se ver!


O INFANTE

Deus quer, o homem sonha, a obra nasce.
Deus quis que a terra fosse toda uma,
Que o mar unisse, já não separasse.
Sagrou-te, e foste desvendando a espuma,

E a orla branca foi de ilha em continente,
Clareou, correndo até ao fim do mundo,
E viu-se a terra inteira, de repente,
Surgir, redonda, do azul profundo.

Quem te sagrou criou-te português.
Do mar e nós em ti nos deu sinal.
Cumpriu-se o Mar, e o Império se desfez.
Senhor, falta cumprir-se Portugal!



O MOSTRENGO

O mostrengo que está no fim do mar
Na noite de breu ergueu-se a voar;
À roda da nau voou três vezes,
Voou rês vezes a chiar,
E disse, “Quem que ousou entrar
Nas minhas cavernas que não desvendo,
Meus tectos negros do fim do mundo?”
E o homem do leme disse, tremendo:
“El Rei D. João Segundo!”

“De quem são a velas onde me roço?
De quem a quilhas que vejo e ouço?”
Disso o mostrengo, e rodou três vezes,
Três vezes rodou imundo e grosso,
“Quem vem poder o que só eu posso,
Que moro onde nunca ninguém me visse
E escorro os medos do mar sem fundo?”
E o homem do leme tremeu e disse,
“El Rei D. João Segundo!”

Três vezes do leme as mãos ergueu,
Três vezes ao leme as reprendeu,
E disse no fim de tremer três vezes,
“Aqui ao leme sou mais do que eu:
Sou um Povo que quer o mar que é teu;
E mais que o mostrengo, que minha alma teme
E roda nas trevas do fim do mundo,
Manda a vontade que me ata ao leme
De El Rei D. João Segundo!”



MAR PORTUGUÊS

Ó mar salgado, quanto do teu sal
São lágrimas de Portugal!
Por te cruzarmos, quantas mães choraram,
Quantos filhos em vão rezaram!
Quantas noivas ficaram por casar
Para que fosses nosso, ó mar!

Valeu a pena? Tudo vale a pena
Se a alma não é pequena.
Quem quer passar além do Bojador
Tem que passar além da dor.
Deus ao mar o perigo e o abismo deu,
Mas nele é que espelhou o céu.


PRECE

Senhor, a noite veio e a alma é vil.
Tanta foi a tormenta e a vontade!
Restam-nos hoje, no silêncio hostil,
O mar universal e saudade.

Mas a chama, que a vida em nós criou,
Se ainda há vida ainda não é finda.
O frio morto em cinzas o ocultou:
A mão do vento pode erguê-la ainda.

Dá o sopro, a aragem, - ou a desgraça ou a ânsia –
Com que a chama do esforço se remoça,
E outra vez conquistemos a Distância –
Do mar ou outra, mas que seja nossa!


ANTEMANHÃ

O mostrengo que está no fim do mar
Veio das trevas a procurar
A madrugada do novo dia,
Do novo dia sem acabar;
E disse, “Quem é que dorme a lembrar
Que desvendou o Segundo Mundo
Nem o Terceiro quer desvendar?”

E o som na treva de ele a rodar
Faz mau o sono, triste o sonhar.
Rodou e foi-se o mostrengo servo
Que o seu senhor veio aqui buscar.
Que veio aqui seu senhor chamar –
Chamar Aquele que está dormindo
E foi outrora Senhor do Mar.


NEVOEIRO

Nem rei nem lei, nem paz nem guerra,
Define com perfil e ser
Este fulgor baço da terra
Que é Portugal a entristecer –
Brilho sem luz e sem arder,
Como o que o fogo-fátuo encerra.

Ninguém sabe que coisa quer.
Ninguém conhece que alma tem,
Nem o que é mal e o que é bem.
(Que ânsia distante perto chora?)
Tudo é incerto e derradeiro.
Tudo é disperso, nada é inteiro.
Ó Portugal, hoje és nevoeiro…

É a Hora!

FERNANDO PESSOA

(Poemas do livro "MENSAGEM", editado em 1 de Dezembro de 1934. O único livro editado em vida do Poeta)




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