sexta-feira, 9 de março de 2012

FAZ HOJE 82 ANOS






Hoje que tudo me falta, como se fosse o chão,
Que me conheço atrozmente, que toda a literatura
Que uso de mim para mim, para ter consciência de mim,
Caiu, como o papel que embrulhou um rebuçado mau -
Hoje tenho uma alma parecida com a morte dos nervos -
Necrose da alma,
Apodrecimento dos sentidos.
Tudo quanto tenho feito, conheço-o claramente: é nada.
Tudo quanto sonhei podia tê-lo sonhado o moço de fretes.
Tudo quanto amei, se hoje me lembro que o amei, morreu há muito.
Ó Paraíso Perdido da minha infância burguesa,
Meu Éden agasalhando o chá nocturno,
Minha colcha limpa de menino!
O Destino acabou-me como a um manuscrito interrompido.
Nem altos nem baixos - consciência de nem sequer a ter...
Papelotes da velha solteira - toda a minha vida.
Tenho uma náusea do estômago nos pulmões.
Custa-me respirar para sustentar a alma.
Tenho uma quantidade de doenças tristes nas juntas da vontade.
Minha grinalda de poeta - era de flores de papel,
A tua imortalidade presumida era o não teres vida.
Minha coroa de louros de poeta - sonhada petrarquicamente,
Sem capotinho mas com fama,
Sem dados mas com Deus -
Tabuleta de vinho falsificado na última taberna da esquina!

ÁLVARO DE CAMPOS, 9 DE MARÇO DE 193O

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