sábado, 17 de março de 2012

FAZ HOJE 83 ANOS

INSÓNIA


Não durmo, nem espero dormir.
Nem na morte espero dormir.


Espera-me uma insónia da largura dos astros,
E um bocejo inútil da largura do mundo.


Não durmo: não posso ler quando acordo de noite,
Não posso escrever quando acordo de noite,
Não posso pensar quando acordo de noite -
Meu Deus, nem posso sonhar quando acordo de noite!


Ah, o ópio de ser outra pessoa qualquer!


Não durmo, jazo, cadáver acordado, sentindo,
E o meu sentimento é um pensamento vazio.
Passam por mim, transtornadas, coisas que me sucederam
- Todas aquelas de que me arrependo e me culpo -;
Passam por mim, transtornadas, coisas que me não sucederam 
- Todas aquelas de que me arrependo e me culpo -;
Passam por mim, transtornadas, coisas que não são nada,
E até dessas me arrependo, me culpo, e não durmo.


Não tenho força para ter energia para acender um cigarro.
Fito a a parede fronteira do quarto como se fosse o universo.
Lá fora há o silêncio desta coisa toda.
Um silêncio apavorante noutra ocasião qualquer,
Noutra ocasião qualquer em que eu pudesse sentir.


Estou escrevendo versos realmente simpáticos -
Versos a dizer que não tenho nada a dizer,
Versos a teimar em dizer isso,
Versos, versos, versos, versos, versos...
Tantos versos...
E a verdade toda, e vida toda fora deles e de mim!


Tenho sono, não durmo, sinto e não sei em que sentir.
Sou uma sensação sem pessoa correspondente,
Uma abstracção autoconsciente sem de quê,
Salvo o necessário para sentir consciência,
Salvo - sei lá salvo o quê...


Não durmo Não durmo. Não durmo.
Que grande sono em toda a cabeça e em cima dos olhos e da alma!
Que grande sono em tudo, excepto no poder dormir!


A madrugada tarda tanto... Vem...
Vem, inutilmente,
Trazer-me outro dia igual a este, a ser seguido por outra noite igual a esta...
Vem trazer-me a alegria deste esperança triste,
Porque sempre és alegre, e sempre trazes esperança,
Segundo a velha literatura das sensações.
Vem, traz a esperança, vem, traz a esperança.
O meu cansaço entra pelo colchão dentro.
Doem-me as costas de não estar deitado de lado.
Se estivesse deitado de lado doíam-me as costas por estar deitado de lado.
Vem, madruga, chega!


Que horas são? Não sei.
Não tenho energia para estender a mão para o relógio,
Não tenho energia para nada, nem para mais nada...
Só para estes versos, escritos no dia seguinte.
Todos os versos são sempre escritos no dia seguinte.


Noite absoluta, sossego absoluto, lá fora.
Paz em toda a Natureza.
A humanidade repousa e esquece as suas  amarguras.
Exactamente.
A humanidade esquece, as suas alegrias e amarguras.
Costuma-se dizer-se isto.
A humanidade esquece, sim, a humanidade esquece,
Mas mesmo acordada a humanidade esquece.
Exactamente. Mas não durmo. 


ÁLVARO DE CAMPOS, 17 DE MARÇO DE 1929

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