domingo, 16 de dezembro de 2018

FAZ HOJE 105 ANOS





Partem as naus para o Sul
Para o Sul - muito longe -
Importa pouco onde vão...
Leva-as o vento e o azul
Do céu cobre-as de pendão...

Partem as naus...Que doença
Tornou do poente os olhares
Dos que fitam sua ida?...
Triste de quem sonha e pensa...
O ocaso doura a partida...

Em outras terras, talvez,
Gozarei ser quem fui...
Com o sol se vão as naus...
Nos olhos há a viuvez
Dum sonho que se dilui
Em degraus e sem degraus...

Não penses... A noite é branca
No horizonte interrogado...
Flutuam restos de horas...
Quem me dera ser o agrado
Com que sentes o que choras...

Fica no ouvido da vista
O vulto indo das naus...
Partiram à conquista...
Descem, arrastando sedas,
Rainhas pelos degraus...

Não sei bem se penso ou sinto
Se ouço ou esqueço... Deusa órfã
Sentada em tombado plinto
E esperando quem não vem...

Résteas de horizonte bóiam
À tona de quem não sou...
Nunca voltaram as naus...
Qualquer cousa em mim errou...
Ninguém ocupa os degraus...

Antes de eu viver a terra,
Outra seria a tristeza...
- As naus voltarão um dia? -
E nunca chega à alegria!...

Quando vier a manhã
Só nos restará as esp'rança
Que um dia voltem as naus...
Uma péla de criança
Rola lenta pelos degraus...

FERNANDO PESSOA, 16 DE DEZEMBRO DE 1913


Sem comentários: