sábado, 10 de novembro de 2018

FAZ HOJE 83 ANOS




Eu morava à beira-rio
E tinha que atravessar
Mas o barqueiro sadio
Estava sempre com fastio
De ele mesmo me levar;
Por isso a filha é que vinha
Remar-me para o outro lado.
Era forte, linda e tinha
Remando um ar de rainha.
Que bem que eu ia levado!
Falávamos a sorrir
De quanto vinha a calhar
E, quando era para rir,
Ríamos de nos ouvir
E eu comia o seu olhar.
Vejo ainda, vejo ainda,
Como esse corpo tão certo
Se inclinava - mas que linda! -
E aquele olhar nunca finda
No meu coração deserto...
Meu amor, sinto-te quente
No alvoroço de te abraçar.
Adoro-te realmente.
Mas há um rio de repente
E tu não sabes remar.
Perdoa, amor: não abarco
Mais que uma vaga maneira
De ser teu, sinto-me parco.
Meu coração vai num barco,
Que o vai levando a barqueira.

FERNANDO PESSOA, 10 DE NOVEMBRO DE 1935


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