ROMANTISMO
(...) das mágoas que o
consomem
Meu coração incerto vai
Buscar um Deus que seja
um homem,
Procurar um irmão que
seja pai.
Quero deixar-te porque
me disseram,
E com a inteligência
acreditei,
Que as tuas regras para
nós morreram
E a tua lei não é a
nossa lei,
Mas um humano coração,
que teve
Mãe e carinhos, não
assim desleixa
Essa parte de si que Te
deve,
O melhor de si, que
contigo deixa.
Meus passos seguem para
onde creio
Que a verdade completa
me sorri,
Mas falta-me o que és
(...) leio
E os meus olhos se
volvem para Ti.
Ah, dá à alma que te vai
fugindo
O que a ciência e a
razão não podem dar -
A flor interior em Deus
abrindo
Numa verdade que se
possa amar.
Meu caminho na vida só
tem sido
Alheio a ti. Hoje estou
só e vago
Achei o coração - barco
perdido
Num ignorado lago.
*
Quando a verdade toda é
descoberta
Falta uma cousa ainda à
alma ansiada,
A ciência humana é uma
porta aberta
Que dá para outra porta,
que é fechada.
A razão não completa
quem nós somos,
Quem sentimos não cabe
em compreender-se.
A esperança (...) que
fomos
A noite cai sem mãe nem
orações,
O coração vazio já não
tem
Mais que cinzas de (...)
e sensações
Que um vento inútil move
num vaivém.
Se do teu vulto imóvel
vem ciência
Diz-me que tem que ver com
a razão;
Que mágoas do destino e
da consciência
Florescem sem cansaço ou
ilusão.
Diz-me que horas
impensáveis cabem
Ao teu vulto maior que o
pensamento...
*
O que é a verdade? Dorme
o mundo a vida,
A cheia da ilusão cobre
a consciência.
Só tua morte jaz
desperta e erguida
Sobre o Calvário seco da
Ciência.
O teu abraço universal é
preso
À cruz de seres. Morres
sempre aquém
De conseguires, fogo
eterno aceso
No altar misterioso de
ninguém.
E então mais que o
abismo, mais que a calma
O afago do teu morto
gesto prende
A parte obscura e
anterior da alma
Que o rasgão, que a dor
faz, desvenda e fende.
Não sei quem és quando
não sofro. Choro
E os meus olhos de
instinto te vão ver
E qualquer cousa do meu
ser melhoro
Que sofre mas é digno de
sofrer.
*
Quem sou não sei, quer
pense, quer só sinta
Mas se te vejo há a
consolação.
Pode ser que a tua
imagem também minta,
Mas sossega com tê-la, o
coração.
Eu não sei se a verdade
é o pensamento,
Ou se sentir é quem nos
mostra a nós.
*
A criança imortal que há
em todo o homem,
Porque não pode ou age
ante o Destino,
As ânsias vãs na tua paz
se somem,
E o coração é plácido e
menino,
E novamente, pela mão de
crer-te,
Vai para casa pelo mundo
irreal,
Pequeno ao lado teu, e a
pertencer-te
Com um sossego (...) e final.
O berço em Deus da alma
sonolenta
Não falta na promessa da
tua cruz.
A razão brilha, a vida
vária tenta,
Mas os olhos por fim
cansam da luz.
E se a noite foi feita
para a paz,
Para ficarmos sós, longe
do claro
Dia que as cousas
aparentes faz
Em ti, liberto, treme
calmo o mundo
Tu, visto não ao sol do
pensamento,
Mas sentido na noite da
emoção
Não serás ciência, mas
és (...)
A paz... e o que mais
quer o coração?
*
Lágrimas por chorar da
alma que errou,
Sonhos desfeitos antes
de nascer,
Asa da aspiração, virgem
do voo,
Mas que se sente para
voo erguer,
Em ti, liberto, treme
calmo o mundo
Tua imagem afaga à (...)
(...) à calma,
Ó candeia da paz de
aldeã vida,
Luar sobre o cemitério
da nossa alma!
Por que estudados,
infiéis caminhos
Te perdi eu? Procurei a
verdade.
Meus pés sangram de
(...) e de espinhos.
A razão mesma tem de Ti
saudade.
Além do limitável, do
que é certo
Do que a vista e a razão
podem conter,
Consolados de se não
poder saber.
*
Dói ser sentir não
serve, qu'rer é vão.
Todo o caminho leva a
qualquer parte.
Por nós, erramos. Dá-nos
tua mão!
Seja seguir-te o orgulho
da nossa arte.
No tenebroso mar de ser
e estar,
Que porto espera onde
quem nos somos?
O navio sabemos
comandar,
Mas ignoramos qual o
porto.
FERNANDO PESSOA, 1 DE OUTUBRO
DE 1920
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