segunda-feira, 2 de dezembro de 2013

FAZ HOJE 100 ANOS

Amei-te e por te amar 
Só a ti eu não via... 
Eras o céu e o mar, 
Eras a noite e o dia... 
Só quando te perdi 
E que eu te conheci... 

Quando te tinha diante 
Do meu olhar submerso 
Não eras minha amante... 
Eras o Universo... 
Agora que te não tenho, 
És só do teu tamanho. 

Estavas-me longe na alma, 
Por isso eu não te via... 
Presença em mim tão calma, 
Que eu a não sentia. 
Só quando meu ser te perdeu 
Vi que não eras eu 

Não sei o que eras. Creio
Que o meu modo de olhar, 
Meu sentir meu anseio 
Meu jeito de pensar. 
Eras minha alma, fora 
Do Lugar e da Hora. 

Hoje eu busco-te e choro 
Por te poder achar 
Nem sequer te memoro 
Como te tive a amar. 
Nem foste um sonho meu... 
Porque te choro eu? 

Não sei... Perdi-te, e és hoje 
Real no mundo real. 
Como a hora que foge, 
Foges e tudo é igual 
A si próprio e é tão triste 
O que vejo que existe. 

Em que espaço fictício, 
Em que tempo parado 
Foste o cilício 
Que quando em fé fechado 
Não sentia e hoje sinto 
Que acordo e não me minto...

E tuas mãos, contudo, 
Sinto nas minhas mãos, 
Nosso olhar fixo e mudo 
Quantos momentos vãos 
P'ra além de nós viveu 
Nem nosso, teu ou meu... 

Quantas vezes sentimos 
Alma nosso contacto 
Quantas vezes seguimos 
Pelo caminho abstracto 
Que vai entre alma e alma... 
Horas de inquieta calma! 

E hoje pergunto em mim 
Quem foi que amei, beijei 
Com quem perdi o fim 
Aos sonhos que sonhei... 
Procuro-te e nem vejo 
O meu próprio desejo... 

Que foi real em nós? 
Que houve em nós de sonho? 
De que Nós fomos de que voz 
O duplo eco risonho 
Que unidade tivemos? 
O que foi que perdemos? 

Nós não sonhámos. Eras
Real e eu era real. 
Tuas mãos - tão sinceras...
Meu gesto - tão leal... 
Tu e eu lado a lado... 
Isto... e isto acabado... 

Como houve em nós amor 
E deixou de o haver? 
Sei que hoje é vaga dor 
O que era então prazer... 
Mas não sei que passou 
Por nós e acordou... 

Amámo-nos deveras? 
Amamo-nos ainda? 
Se penso vejo que eras 
A mesma que és... E finda 
Tudo o que foi o amor; 
Assim quase sem dor. 

Sem dor... Um pasmo vago 
De ter havido amar. 
Quase que me embriago 
De mal poder pensar. 
O que mudou e onde? 
O que é que em nós se esconde? 

Talvez sintas como eu 
E não saibas senti-lo. 
Ser é ser nosso véu 
Amar é encobri-lo, 
Hoje que te deixei 
É que sei que te amei... 

Somos a nossa bruma... 
É para dentro que vemos...
Caem-nos uma a uma 
As compreensões que temos 
E ficamos no frio 
Do Universo vazio... 

Que importa? Se o que foi 
Entre nós foi amor, 
Se por te amar me dói 
Já não te amar, e a dor 
Tem um íntimo sentido, 
Nada será perdido... 

E além de nós, no Agora 
Que não nos tem por véus 
Viveremos a Hora 
Virados para Deus 
E num mudo 
Compreenderemos tudo. 


FERNANDO PESSOA, 2 DE DEZEMBRO DE 1913

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