sexta-feira, 23 de dezembro de 2011

POEMA SEM DATA



EPISÓDIOS


...O tédio dos radidiotas e dos areochatos,
De todo o conseguimento quantitativo desta vida sem qualidade,
A náusea de ser contemporâneo de mim mesmo -
A ânsia de novo novo, de certo verdadeiro,
Da fonte, do começo, da origem.


A pedra no anel errado no teu dedo
Como fulgura na minha memória,
Ó pobre esfinge da aristocracia burguesa conversada em viagem!
Que vagos amores escondias na tua elegância verdadeira
Tão falsos, pobre iludida lúcida,
Encontrada a bordo deste navio, como de todos os navios!


Tomavas cocaína por superioridade ensinada,
Rias dos velhos maçadores menos maçadores que tu,
Pobre criança órfã de mais que pai e mãe.
Pobre-diabo meio flapper, tão ?transtransviada?!
E eu, o moderno que o não sou, eu que consinto
Nos arredores da minha sensibilidade as tendas dos ciganos,
De toda a modernidade papel-moeda;
Eu, incongruente e sem esperanças,
Passageiro como tu no navio, mas mais passageiro que tu,
Porque onde tu és certa eu sou incerto,
Onde tu sabes o que és eu não sei o que sou e sei que não sabes o que és,


E entre as dança tocadas ad nauseam pela banda de bordo
Debruço-me sobre o mar nocturno e tenho saudades de mim.


Que fiz eu da vida?
Que fiz eu do que queria fazer da vida?
Que fiz eu do que podia ter feito da vida?
Serei eu como tu, ó viajante do Anel Anafrodisíaco?
Olho-te sem te distinguir da matéria amorfa das coisas
E rio no fundo da meu pensamento oceânico e vazio.


No quintal da minha casa provinciana e pequena -
Casa como a que têm milhões não com eu no mundo -
Deve haver paz a esta hora, sem mim.
Mas em mim é que nunca haverá paz...
Porque então sorrio eu de ti, viajante superfina?


Ó pobre água-de-colónia da melhor qualidade,
Ó perfume moderno do melhor gosto, em frasco de feitio,
Meu pobre amor que não amo caricatural e bonita!
Que texto para um sermão o que não és!
Que poemas faria um poeta verdadeiro sem pensar em ti!


Mas a banda de bordo estruge e acaba...
E o ritmo do mar homérico trepa por cima do meu cérebro -
Do velho mar homérico, ó selvagem deste cérebro grego,
Com penas na cabeça da alma,
Com argolas no nariz da sensualidade,
E com consciência de meio-manequim de ter aspecto no mundo.


Mas o facto é que a banda de bordo cessa,
E eu verifico
Que pensei em ti enquanto durou a banda de bordo.
No fundo somos todos
Românticos,
Vergonhosamente românticos
E o mar continua agitado e calmo,
Servo sempre da atenção severa da lua,
Como, aliás, o sorriso com que me interrogo
E olho para o céu sem metafísica e sem ti... Dor de corno...


ÁLVARO DE CAMPOS


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