segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

FAZ HOJE 78 ANOS



DACTILOGRAFIA


Traço, sozinho, no meu cubículo de engenheiro, o plano,
Formo o projecto, aqui isolado,
Remoto até de quem eu sou.


Ao lado, acompanhamento banalmente sinistro,
O tic-tac estalado das máquinas de escrever.


Outrora, quando fui outro, eram castelos e cavalarias
(Ilustrações, talvez, de qualquer livro de infância),
Outrora, quando fui verdadeiramente ao meu sonho,
Eram grandes paisagens do Norte,explícitas de neve,
Eram grandes palmares do sul, opulentos de verdes.


Outrora...


Ao lado, acompanhamento banalmente sinistro,
O tic-tac estalado das máquinas de escrever.


Temos todos duas vidas:
A verdadeira, que é a que sonhámos na infância,

A falsa, que é a que vivemos em convivência com os outros,
Que é prática e útil,
Aquela em que acabam por nos meter no caixão.


Na outra não há caixões, nem mortes.
Há só ilustrações de infância:
Grandes livros coloridos, para ver mas não ler;
Grandes páginas a cores para recordar mais tarde.
Na outra somos nós,
Na outra vivemos; 
Nesta morremos, que é o que viver quer dizer.
Neste momento, pela náusea, vivo só na outra...


Mas ao lado, acompanhamento banalmente sinistro,
Se, desmeditando, escuto,
Ergue a voz o tic-tac estalado das máquinas de escrever.


ÁLVARO DE CAMPOS, 19 DE DEZEMBRO DE 1933  

Sem comentários: