sexta-feira, 18 de outubro de 2013

POEMA SEM DATA




Tece, amor, as grinaldas com que queres 
Coroar o amor que nem sabemos ter, 
Com brancas mãos em lento movimento 
De papoulas e pobres malmequeres... 
Tece-as para que ao menos o momento 
Em que as teces nos possa pertencer. 

Se para coroar o amor as teces 

Pensas no amor tecendo-as, e assim amas; 
Se vendo-te, em ti vejo que o conheces 
Amo contigo o amor em que tu pensas. 
E um momento o amor queima as suas chamas 
Na ara das nossas almas já pretensas. 

Mas se a grinalda é feita, o amor cessou. 

Se é preciso entre nós o gesto e o gozo 
Nunca o pensado amor levanta o voo, 
Nunca da nossa noite de sentir 
Raiou o sol do alto, e o olhar cobiçou 
Uma cousa real que vá fruir. 

No sonho do que nunca pode haver 

Entre nós, porque há em nós o pensamento, 
Gastamos o desejo sem o ter. 
A taça cai do gesto mal seguro 
Porque pensamos em beber, e o intento 
Cansa o braço, e é entornado o néctar puro.

Viemos, meu amor, no fim da tarde. 

O que há do sol é o que resta acima 
Dos montes, poesia baça e sonho que arde, 
E só por saudade os céus anima. 
O nosso olhar não ousa olhar o outro

Outros tiveram por seu tempo o dia 

Gozaram outros quando o sol era alto, 
A vergonha que há em nós da sua orgia 
É a vergonha de nós a não ousarmos. 
Nós pensamos no amor em sobressalto 
E para amarmos só nos falta amarmos. 

Os deuses foram-se, e consigo foi 

A clareza da alma para (com) a vida. 
O que ontem era o gozo, é o que hoje dói. 
O que ontem era a cousa procurada 
É hoje só a cousa apetecida, 
Ainda desejada e não ousada. 


FERNANDO PESSOA, sem data

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