terça-feira, 8 de outubro de 2013
FAZ HOJE 94 ANOS
SONITUS
DESILENTES AQUAE
No ar frio da noite calma
Boia à vontade a minh'alma,
Quasi sem querer viver
Sente os momentos correr,
Como uma folha no rio,
Sente contra si o frio
Das horas fluidas levando
Seu inerte corpo brando.
Mais do que isto? Para quê?
Tudo quanto o olhar vê
A mão toca, o ouvido escuta,
A consciência perscruta,
É inútil que se escutasse,
Que se visse ou se pensasse.
Entre as margens com arbustos
Luzes na noite dos sustos,
Sob o luar repousado,
Ao correr vago e amparado
Do rio deixado e livre
A alma passa, a alma vive.
Ninguém. Só eu e o segredo
Do luar e do arvoredo
Que das margens causou medo.
Nada. Só a hora inútil
Só o sacrifício fútil
De desejar sem querer
E sem razão esquecer.
Prolixa memória, toda.
Rio indo como uma roda,
Noite como um lago mudo,
E a incerteza de tudo.
Recosto-me, e a lua dorme.
Cerca-me o que a noite enorme
Atribui à minha mágoa,
Como um murmúrio de água.
Ninguém; a noite e o luar.
Nada; nem saber pensar.
Raie o dia, ou morra eu,
Volte no oriente do céu
O sol ou não volte mais,
São sempre os tédios iguais
E os barcos, calmos a medo,
Com o rio entre o arvoredo,
De nocturno cemitério,
Ou fluido, vago mistério.
O mal é haver consciência.
FERNANDO PESSOA, 8 DE OUTUBRO DE 1919
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