quinta-feira, 17 de outubro de 2013

FAZ HOJE 97 ANOS




Rondam às vezes o meu espírito desprevenido 
Vagas presenças, visíveis algumas, outras que eu ouço, 
Vagos rostos desconhecidos, 
Vozes várias dizendo frases imperfeitas, 
Outras sem relação com a minha relação com a vida. 
Não estão em meus sonhos, 
E não são do mundo... 
São, não sei como, intermédios, 
São mais visíveis que as figuras de sonho 
E menos reais que as figuras do mundo. 
Habitam o entorno 
Do meu espírito localizado no meu corpo, 
E quando os vejo vejo-os como se os visse na vida 
Mas como se fossem sonho. 
E quando os ouço, ouço-lhes as vozes vindas de fora 
Mas dentro de mim. 
Sei que o não sonho 
Porque os não quero, 
Sei que os não encontro no mundo 
Porque são mais segredos para mim 
Que as figuras da vida. 

Flutua, mal demora 
O momento em que os vejo. 
Não acabam a frase 
Que os ouço pronunciar... 
Sua presença passa pelo meu ser 
Numa direcção diversa da da realidade 
Rectangularmente a todas as 3 dimensões do mundo. 

Transparecem, começam 
Onde tudo acaba 
Não na circunferência mas no centro... 
Não sei onde estou 
Quando eles me aparecem... 
Não sei com que olhos vejo, 
Ou com que ouvidos ouço 
Seus rostos e suas vozes 

Que não vejo, mas vejo, 
Que não ouço, mas ouço, 
Que não sonho mas sonho, 
Que não sou eu, nem outro... 

Quando acendo as luzes, 
Eles continuam no mesmo sonho; 
Quando apago as luzes, 
Eles prosseguem na mesma luz; 
Quando me volto vejo-os 
No mesmo lugar onde estavam... 
Quando os não quero ver 
Vejo-os da mesma maneira... 

Tenho a alma neste espaço 
Além de neste espaço 
Do mundo. 
Tenho sentidos feitos 
Com a matéria deste 
Com a noção de ver, 
Com o conceito de ouvir... 
Mas não ver, nem ouvir 
Mas outra cousa a mesma 
Em outros planos. 

O muro à roda de compreender 
Torna-se transparente 
Quando essas sombras vêm, 
Mas não para além do muro, 
Nem aquém dele. 
Interseccionam-se, não com ele, 
Mas com ele existir... 
Corto-o em diagonal 
Sem que ele tenha nada 
De ser cortado em diagonal... 

Sobe pela descida abaixo 
De eu ser contemplado, 
Da minha atenção posta
Em ângulos de mim. 

Tudo é um lago em mim 
De uma terra sem posição 
Mesmo de cercar um lago... 
E todo o mundo não está 
Só como que reflectido 
À superfície das águas 
Do lago calado... 
Só ali... Mais abaixo 
Já outra cousa diferente... 
Acima - não há o nada 
Ou seu reflexo nas águas 

Não cabe noite, nem há dia 
Em tudo isto... 
Não há além do lado de cá 
Nem exterior do lado de lá... 
Fora e dentro é o mesmo 
E absolutamente diferente. 
Tudo é um intermédio 
De cousa nenhuma 
Tudo consiste em não consistir. 
Eu começo onde acabo 
E Deus está de permeio.


FERNANDO PESSOA, 17 DE OUTUBRO DE 1916

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