Azul, ou verde, ou roxo quando o sol
O doura falsamente de vermelho,
O mar é áspero, casual ou mole,
É uma vez abismo e outra espelho.
Evoco porque sinto velho
O que em mim quereria mais que o mar
Já que nada ali há por desvendar.
Os grandes capitães e os marinheiros
Com que fizeram a navegação,
Jazem longínquos, lúgubres parceiros
Do nosso esquecimento e ingratidão.
Só o mar às vezes, quando são
Grandes as ondas e é deveras mar
Parece incertamente recordar.
Mas sonho... O mar é água, é água nua,
Serva do obscuro ímpeto distante
Que, como a poesia, vem da lua
E uma vez o abate outra o levanta.
Mas, por mais que descante
Sobre a ignorância natural do mar,
Pressinto-o, vagamente, a murmurar.
Quem sabe o que é a alma? Quem conhece
Que alma há nas coisas que parecem mortas.
Quanto em terra ou em nada nunca esquece.
Quem sabe se no espaço vácuo há portas?
Ó sonho que me exortas
A meditar assim a voz do mar,
Ensina-me a saber-te meditar.
Capitães, contramestres - todos nautas
Da descoberta infiel de cada dia -
Acaso vos chamou de ignotas flautas
A vaga e impossível melodia.
Acaso o vosso ouvido ouvia
Qualquer coisa do mar sem ser o mar
Sereias só de ouvir, não ver e achar?
Quem atrás de intérminos oceanos
Vos chamou à distância como quem
Soubesse que há nos corações humanos
Não só uma ânsia natural de bem
Mas, mais vaga, mais subtil também,
Uma coisa que quer o som do mar
E o estar longe de tudo e não parar.
Se assim é e se vós e o mar imenso
São qualquer coisa, vós por o sentir
E o mar por o ser, disto que penso;
Se no fundo ignorado do existir
Há mais alma que a que pode vir
À tona vã de nós, como à do mar
Fazei-me livre, enfim de o ignorar.
Dai-me uma alma transposta de argonauta,
Fazei que eu tenha, como o capitão
Ou o contramestre, ouvidos para a flauta
Que chama ao largo o nosso coração,
Fazei-me ouvir, como a um perdão,
Numa reminiscência de ensinar,
O antigo português da voz do mar!
FERNANDO PESSOA, 9 DE JUNHO DE 1935
Sem comentários:
Enviar um comentário