domingo, 9 de junho de 2013

FAZ HOJE 78 ANOS




Azul, ou verde, ou roxo quando o sol 
O doura falsamente de vermelho, 
O mar é áspero, casual ou mole, 
É uma vez abismo e outra espelho. 
Evoco porque sinto velho 
O que em mim quereria mais que o mar 
Já que nada ali há por desvendar.

Os grandes capitães e os marinheiros 
Com que fizeram a navegação, 
Jazem longínquos, lúgubres parceiros 
Do nosso esquecimento e ingratidão. 
Só o mar às vezes, quando são 
Grandes as ondas e é deveras mar 
Parece incertamente recordar.

Mas sonho... O mar é água, é água nua, 
Serva do obscuro ímpeto distante 
Que, como a poesia, vem da lua 
E  uma vez o abate outra o levanta. 
Mas, por mais que descante 
Sobre a ignorância natural do mar, 
Pressinto-o, vagamente, a murmurar.

Quem sabe o que é a alma? Quem conhece 
Que alma há nas coisas que parecem mortas. 
Quanto em terra ou em nada nunca esquece. 
Quem sabe se no espaço vácuo há portas? 
Ó  sonho que me exortas 
A meditar assim a voz do mar, 
Ensina-me a saber-te meditar.

Capitães, contramestres - todos nautas 
Da descoberta infiel de cada dia -
Acaso vos chamou de ignotas flautas 
A vaga e impossível melodia. 
Acaso o vosso ouvido ouvia 
Qualquer coisa do mar sem ser o mar 
Sereias só de ouvir, não ver e achar?

Quem atrás de intérminos oceanos 
Vos chamou à distância como quem 
Soubesse que há nos corações humanos 
Não só uma ânsia natural de bem 
Mas, mais vaga, mais subtil também, 
Uma coisa que quer o som do mar 
E o estar longe de tudo e não parar.

Se assim é e se vós e o mar imenso 
São qualquer coisa, vós por o sentir 
E o mar por o ser, disto que penso; 
Se no fundo ignorado do existir 
Há mais alma que a que pode vir 
À tona vã de nós, como à do mar 
Fazei-me livre, enfim de o ignorar.

Dai-me uma alma transposta de argonauta, 
Fazei que eu tenha, como o capitão 
Ou o contramestre, ouvidos para a flauta 
Que chama ao largo o nosso coração, 
Fazei-me ouvir, como a um perdão, 
Numa reminiscência de ensinar, 
O antigo português da voz do mar! 



FERNANDO PESSOA, 9 DE JUNHO DE 1935

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