Amigos:
completam-se hoje 125 anos sobre a data de nascimento do Fernando Pessoa. Neste
cantinho não se podia deixar passar esta data sem a festejarmos e rendermos uma
especial homenagem ao Poeta Universal que trouxe para a nossa Pátria a
admiração do mundo inteiro. Pátria: essa palavra que ele tantas vezes repetiu,
em “voz bem alta”, lamentando aqueles que têm vergonha de a pronunciar. Então,
como agora!
Peço licença
para começar esta homenagem com um poema (se é que o chega a ser…) que eu fiz;
eu que não sou poeta… Mesmo nada valendo pela sua forma, o seu conteúdo
representa tudo o que eu gostaria de lhe dizer, mas com a beleza que o Poeta
merece, para a qual, não tenho o necessário talento. Fica a intenção!
FERNANDO
PESSOA
O Poeta que encheu o mundo
Com a música das suas palavras
Que, com seu
sentido profundo,
Incendeiam nossas almas!...
Vieste para ser quanto foste;
Ninguém poderá ser mais!
Estrela viva em céu de Agosto
Brilho e beleza sem iguais!...
O perfume dos teus poemas, – intensos, tantos –,
São para o mundo a eterna memória
Dos que foram Génios ou que foram Santos,
Para sempre
gravados na História!
FERNANDO RANITO
ANIVERSÁRIO
No tempo
em que festejavam o dia dos meus anos
Eu era
feliz e ninguém estava morto.
Na casa
antiga, até eu fazer anos era uma tradição de há séculos,
E a
alegria de todos, e a minha, estava certa como uma religião qualquer.
No tempo
em que festejavam o dia dos meus anos,
Eu tinha a
grande saúde de não perceber coisa nenhuma,
De ser
inteligente para entre família,
E de não
ter as esperanças que os outros tinham por mim.
Quando vim
a ter esperança, já não sabia ter esperanças.
Quando vim
a olhar para a vida, perdera o sentido da vida.
Sim, o que
foi de suposto a mim mesmo,
O que fui
de coração e parentesco,
O que fui
de serões de meia-província,
O que fui
de amarem-me e eu ser menino,
O que fui
- ai meu Deus!, o que só hoje sei que fui...
A que
distância!...
(Nem o
eco...)
O tempo em
que festejavam o dia dos meus anos!
O que eu
hoje sou é como a humidade no corredor do fim da casa,
Pondo
grelado nas paredes...
O que eu
sou hoje (e a casa dos que me amaram treme através das minhas lágrimas),
O que eu
sou hoje é terem vendido a casa,
É terem
morrido todos,
E estar eu
sobrevivente a mim mesmo como um fósforo frio...
No tempo
em que festejavam o dia dos meus anos...
Que meu
amor, como uma pessoa, esse tempo!
Desejo
físico da alma de se encontrar ali outra vez,
Por uma
viajem metafísica e carnal,
Com uma
dualidade de eu para mim...
Comer o
passado como pão de fome, sem tempo de manteiga nos dentes!
Vejo tudo
outra vez com uma nitidez que me cega para o que há aqui...
A mesa
posta com mais lugares, com melhores desenhos na louça, com mais copos,
O aparador
com muitas coisas, - doces, frutas, o resto na sombra debaixo do alçado -,
As tias
velhas, os primos diferentes, e tudo era por minha causa,
No tempo
em que festejavam o dia dos meus anos...
Pára, meu
coração!
Não
penses! Deixa o pensar na cabeça!
Ó meu
Deus, meu Deus, meu Deus!
Hoje já
não faço anos.
Duro.
Somam-se-me
dias.
Serei
velho quando for.
Mais nada.
Raiva de
não ter trazido o passado na algibeira!...
O tempo em
que festejavam o dia dos meus anos!...
ÁLVARO DE
CAMPOS, 13 DE JUNHO DE 1930
Sim, sei bem
Que nunca serei alguém.
Sei de sobra
Que nunca terei uma obra.
Sei, enfim,
Que nunca saberei de mim.
Sim, mas agora,
Enquanto dura esta hora,
Este luar, estes ramos,
Esta paz em que estamos,
Deixem-me crer
O que nunca poderei ser.
RICARDO REIS
TABACARIA
Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os
sonhos do mundo.
Janela do meu quarto,
Do meu quarto de um dos milhões do
mundo que ninguém sabe quem é
(E se soubesse quem é, o que saberiam?)
Dais para o mistério de uma rua
cruzada constantemente por gente,
Para uma rua inacessível a todos os
pensamentos,
Real, impossivelmente real, certa,
desconhecidamente certa,
Como o mistério das coisas por baixo
das pedras e dos seres,
Com a morte a pôr humidade nas paredes
e cabelos brancos nos homens,
Com o destino a conduzir a carroça de
tudo pela estrada de nada.
Estou hoje vencido, como se soubesse a
verdade.
Estou hoje lúcido, como se estivesse
para morrer,
E não tivesse mais irmandade com as coisas
Senão uma despedida, tornando-se esta
casa e este lado da rua
A fileira das carruagens de um
combóio, e uma partida apitada
De dentro da minha cabeça,
E uma sacudidela dos meus nervos e um
ranger de ossos na ida.
Estou hoje perplexo, como quem pensou,
achou e esqueceu.
Estou hoje dividido entre a lealdade
que devo
À Tabacaria do outro lado da rua, como
coisa real por fóra,
E à sensação de que tudo é sonho, como
coisa real por dentro.
Falhei em tudo.
Como não fiz propósito nenhum, talvez
tudo fosse nada.
A aprendizagem que me deram
Desci dela pela janela das trazeiras
da casa.
Fui até ao campo com grandes
propósitos
Mas lá encontrei só ervas e
árvores,
E quando havia gente era igual à
outra.
Saio da janela, sento-me numa cadeira.
Em que hei-de pensar?
Que sei eu do que serei, eu que não
sei o que sou?
Ser o que penso? Mas penso ser tanta
coisa!
E há tantos que pensam ser a mesma
coisa que não pode haver tantos!
Génio? Neste momento
Cem mil cérebros se concebem em sonho
génios como eu,
E a história não marcará, quem sabe?,
nem um,
Nem haverá senão estrume de tantas
conquistas futuras.
Não, não creio em mim.
Em todos os manicómios há doidos
malucos com tantas certezas!
Eu que não tenho nenhuma certeza, sou
mais certo ou menos certo?
Não, nem em mim...
Em quantas mansardas e não-mansardas
do mundo
Não estão nesta hora
génios-para-si-mesmos sonhando?
Quantas aspirações altas e nobres e
lúcidas -
Sim, verdadeiramente altas e nobres e
lúcidas -
E quem sabe se realizáveis,
Nunca verão a luz do sol real nem
acharão ouvidos de gente?
O mundo é para quem nasce para o
conquistar
E não para quem sonha que pode
conquistá-lo, ainda que tenha razão.
Tenho sonhado mais que o que Napoleão
fez.
Tenho apertado ao peito hipotético
mais humanidades do que Cristo.
Tenho feito filosofias em segredo que
nenhum Kant escreveu.
Mas sou, e talvez serei sempre, o da
mansarda,
Ainda que não more nela;
Serei sempre o que não nasceu para isso;
Serei sempre o que só tinha qualidades;
Serei sempre o que esperou que lhe abrissem
a porta ao pé de uma parede sem porta,
E cantou a cantiga do infinito numa
capoeira,
E ouviu a voz de Deus num poço tapado.
Crer em mim? Não, nem em nada.
Derrame-me a Natureza sobre a cabeça
ardente
O seu sol, a sua chuva, o vento que me
acha o cabelo,
E o resto que venha se vier, ou tiver
que vir, ou não venha.
Escravos cardíacos da estrêlas,
Conquistámos todo o mundo antes de nos
levantar da cama;
Mas acordámos e ele é opaco,
Levantámo-nos e ele é alheio,
Saímos de casa e ele é a terra
inteira,
Mais o sistema solar, a Via Láctea e o
Indefinido.
(Como chocolates, pequena;
Come chocolates!
Olha que não há mais metafísica no
mundo senão chocolates.
Olha que as religiões todas não
ensinam mais que a confeitaria.
Come, pequena suja, come!
Pudesse eu comer chocolates com a
mesma verdade com que comes!
Mas eu penso e, ao tirar o papel de
prata, que é de folha de estanho,
Deito tudo para o chão, como tenho
deitado a vida.)
Mas ao menos fica da amargura do que
nunca serei
A caligrafia rápida deste versos,
Pórtico partido para o Impossível.
Mas ao menos consagro a mim mesmo um
desprezo sem lágrimas,
Nobre ao menos no gesto largo com que
atiro
A roupa suja que sou, sem rol , p'ro
decurso das coisas,
E fico em casa sem camisa.
(Tu, que consolas, que não existe e
por isso consolas,
Ou deusa grega, concebida como estátua
que fosse viva,
Ou patrícia romana, impossivelmente
nobre e nefasta,
Ou princesa de trovadores,
gentilíssima e colorida,
Ou marquesa do século dezoito,
decotada e longínqua,
Ou cocotte célebre do tempo dos nossos
pais,
Ou não sei o quê moderno - não concebo
bem o quê -
Tudo isso, seja o que for, que sejas,
se pode inspirar que inspire!
Meu coração é um balde despejado.
Como os que invocam espíritos invocam
espíritos invoco
A mim mesmo e não encontro nada.
Chego à janela e vejo a rua com uma
nitidez absoluta.
Vejo as lojas, vejo os passeios, vejo
os carros que passam,
Vejo os entes vestidos que se cruzam,
Vejo os cães que também existem,
E tudo isso me pesa como uma
condenação ao degredo.
E tudo isso é estrangeiro, como tudo.)
Vivi, estudei, amei e até cri,
E hoje não há mendigo que eu não
inveje só por não ser eu.
Olho a cada um os andrajos, e as
chagas e a mentira,
E penso: talvez nunca vivesses nem
estudasses nem amasses nem cresses
(Porque é possível fazer a realidade
de tudo isso sem fazer nada disso);
Talvez tenhas existido apenas, como um
lagarto a quem cortam o rabo
E que é rabo para aquém do lagarto
remexidamente.
Fiz de mim o que não soube,
E o que podia fazer de mim não o fiz.
O dominó que vesti era errado.
Conheceram-me logo por quem era e não
desmenti, e perdi-me.
Quando quis tirar a máscara,
Estava pegada à cara.
Quando a tirei e me vi ao espelho,
Já tinha envelhecido.
Estava bêbado, já não sabia vestir o
dominó que não tinha tirado.
Deitei fora a máscara e dormi no
vestiário
Como um cão tolerado pela gerência
Por ser inofensivo
E vou escrever esta história para
provar que sou sublime.
Essência musical dos meus versos
inúteis,
Quem me dera encontrar-te como coisa
que eu fizesse,
E não ficasse sempre defronte da
Tabacaria de defronte,
Calcando aos pés a consciência de
estar existindo,
Como um tapete em que um bêbado
tropeça
Ou um capacho que os ciganos roubaram
e que não valia nada.
Mas o Dono da Tabacaria chegou à porta
e ficou à porta.
Olho-o com o desconforto da cabeça mal
voltada
E com o desconforto da alma
mal-entendendo.
Ele morrerá e eu morrei.
Ele deixará a tabuleta, eu os versos.
A certa altura morrerá a tabuleta
também e os versos também.
Depois de certa altura morrerá a rua
onde esteve tabuleta,
E a língua em que foram escritos os
versos.
Morrerá depois o planeta girante em
que tudo isto se deu.
Em outros satélites de outros sistemas
qualquer coisa como gente
Continuará fazendo coisas como versos
e vivendo por baixo de coisas como tabuletas.
Sempre uma coisa defronte da outra,
Sempre uma coisa tão inútil como a
outra,
Sempre o impossível tão estúpido como
o real,
Sempre o mistério do fundo tão certo
como o sono do mistério da superfície,
Sempre isso, ou sempre outra coisa ou
nem uma coisa nem outra.
Mas um homem entrou na Tabacaria (para
comprar tabaco?),
E a realidade plausível cai de repente
em cima de mim.
Semiergo-me, convencido, humano
E vou tencionar escrever estes versos
em que digo o contrário.
Acendo um cigarro ao pensar em
escreve-los
E saboreio no cigarro o prazer da libertação
de todo os pensamentos.
Sigo o fumo como a uma rota própria,
E gozo, num momento sensitivo e
competente,
A libertação de todas as especulações
E a consciência de que a metafísica é
uma consequência de estar mal disposto.
Depois deito-me para trás na cadeira
E continuo fumando.
Enquanto o Destino mo conceder
continuarei fumando.
(Se eu casasse com a filha da minha
lavadeira
Talvez fosse feliz.)
Visto isto, levanto-me da cadeira. Vou
à janela.
O homem sai da Tabacaria (metendo o
troco na algibeira das calças?).
Ah, conheço-o: é o Esteves sem
metafísica.
(O Dono da Tabacaria chegou à porta)
Como por um instinto divino o Esteves
voltou-se e viu-me.
Acenou-me adeus e gritei-lhe Adeus ó Esteves! e, o universo
Reconstrui-se-me sem ideal nem
esperança, e o Dono da Tabacaria sorriu.
ÁLVARO DE CAMPOS, 15 DE JANEIRO DE
1928
UN
SOIR Á LIMA
Vem a voz da radiophonia e dá
A notícia num arrastamento vão:
“A seguir
Un
Soir à Lima”…
Cesso de sorrir…
Pára-me o coração…
E, de repente,
Essa querida e maldita melodia
Rompe do aparelho inconsciente…
Numa memoria súbita e presente
Minha alma se extravia…
O grande luar de África fazia
A encosta arborizada reluzente.
A sala em nossa casa era ampla,
e estava
Posta onde, até ao mar, tudo se
dava
À clara escuridão do luar
ingente…
Mas só eu, à janela.
Minha mãe estava ao piano
E tocava…
Exactamente
“Un soir à Lima”.
Meu Deus, que longe, que
perdido, que isso está!
Que é do seu alto porte?
Da sua voz continuamente
acolhedora?
Do seu sorrido carinhoso e
forte?
O que hoje há
Que mo recorda é isto que oiço
agora
Un soir à Lima.
Prossegue na radiophonia
A nossa, a nossa melodia
O mesmo “Um soir à Lima”.
Seu cabelo grisalho era tão
lindo
Sob a luz
E eu nunca pensei que ela
morresse
E me deixasse entregue a quem
sou!
Morreu, mas eu sou sempre o seu
menino.
Ninguém é homem para a sua mãe!
E inda através de lágrimas não
falha
À memória que tenho
O recorte perfeito de medalha
Daquele perfeitíssimo perfil.
Chora, ao lembrar-te, mãe,
romana e já grisalha,
Meu coração sempre infantil.
Vejo teus dedos no teclado e há
Luar lá fora eternamente em mim.
Tocas em meu coração, sem fim,
Un soir à Lima.
O silêncio fatal das coisas
findas
As tuas mãos pequenas e tão lindas
Com escrúpulo risonho e familiar
Com um sorriso em que não há
Nada senão o eternamente humano,
Tiravas da quietude do piano
Um soir à Lima.
Tinhas, perfil, um rosto de
medalha
Eras de frente, e olhando, a
minha mãe.
Como hoje o teu olhar me falha
E o teu perfil me lembra bem.
“Os pequenos dormiram logo?”
“Ora, dormiram logo”.
“Esta está quase a dormir”
E tu, sorrindo ao responder,
continuavas
O que tocavas –
Atentamente tocavas –
Um soir à Lima.
Tudo que fui quando não era
nada,
Tudo que amei e sei só eu a
verdade
Que o amei por não ter hoje
estrada,
Que tenha qualquer realidade.
Por não ter dele mais que
saudade –
Tudo isso vive em mim
Por luzes, música e a visão
Que não tem fim
Dessa hora eterna no meu
coração,
Em que voltavas
A folha irreal da música a tocar
E eu te ouvia e via
Continuar
A eterna melodia
Que está
No fundo eterno desta nostalgia
De quando, mãe, tocavas
Un soir à Lima.
E o aparelho indiferente
Traz da emissora inconsciente
Un soir à Lima.
Eu não sabia então que era
feliz.
Hoje, que o já não sou, sei bem
que o era.
“Esta também já está a dormir…”
“Não está”.
Ficávamos todos a sorrir
E eu, distraidamente vou
Continuando a ouvir,
Longe do Luar que há
E que lá fora existe duro e só,
O que me faz sonhar sem o sentir,
O que hoje faz que tenha de mim
dó,
Esse canto sem voz, teclado e
brando
Que minha mãe estava tocando -
Un soir à Lima.
Não ter aqui numa gaveta,
Não ter aqui numa algibeira,
fechada, haurida, completa,
Essa cena inteira!
Não poder arrancar
Do espaço, do tempo, da vida
E isolar
Num lugar
Da alma em que ficasse possuída
Eternamente
Viva, quente,
Essa sala, essa hora,
Toda a família e a paz e a
musica que há
Mas real como ali está
Ainda, agora,
Quando, mãe, mãe, tocavas
Un soir à Lima.
Mãe, mãe, fui teu menino
Tão bem dobrado
Na sua educação
E hoje sou o trapo que o Destino
Fez enrolado e atirado
Para um canto do chão.
Jazo, mesquinho,
Mas ao meu coração
Sobe, num torvelinho
A memoria de quanto ouvi do que
há
No que há de carícia, de lar, de
ninho,
Ao relembrar o ouvi, hoje, meu
Deus, sozinho,
Un soir à Lima.
Onde é que a hora, e o lar e o
amar está
Quando, mãe, mãe, tocavas
Un soir à Lima?
E num recanto de cadeira grande
Minha irmã,
Pequena e encolhidinha
Não sabe se dorme se não.
Eu tenho sido tanta coisa vil!
Tenho traído tanto do que sou!
Meu espírito sedento
De raciocinador subtil
Quantas vezes prolixamente
errou!
Quantas vezes até o sentimento
Inanimadamente me enganou!
Já que não tenho lar,
Deixa-me estar
Nesta visão
Do lar de então,
Deixa-me ouvir, ouvir, ouvir –
Eu à janela
Do nunca mais deixar de sentir,
Nessa sala, a nossa sala, quente
Da África ampla onde o luar está
Lá fora vasto e indiferente
Nem mal nem bem
E onde, no meu coração
Mãe, mãe
Tocas visivelmente,
Tocas eternamente
Un soir à Lima.
Meu padrasto
(Que homem! que alma! que
coração!)
Reclinava o seu corpo basto
De atleta sossegado e são
Na poltrona maior
E ouvia, fumando e cismando,
E o seu olhar azul não tinha
cor.
E minha irmã, criança,
No recanto da sua poltrona
Enrolada, ouvia a dormir
E a sorrir
Que estava alguém tocando
Se calhar uma dança…
E eu, de pé, ante a janela
Via todo o luar de toda a África
inundar
A paisagem e o meu sonhar.
Onde tudo isso está!
Un soir à Lima,
Quebra-te, coração!
Mas entorpeço.
Não sei se vejo se adormeço,
Se sou quem fui,
Não sei se lembro, nem se
esqueço.
Há qualquer coisa que indistinta
flui
Entre quem sou e o que eu era
E é como um rio, ou uma brisa,
ou um sonhar,
Qualquer coisa que não espera,
Que se suspende de repente
E, do fundo aonde parecia ir
acabar,
Surge, cada vez mais
distintamente,
Num halo de suavidade
E nostalgia,
Onde o meu coração ainda está,
Um piano, uma figura, uma
saudade…
Durmo encostada a essa melodia –
E oiço que minha mãe toca,
Oiço, já com o sal das lágrimas
na boca,
Un soir à Lima.
O véu das lágrimas não cega.
Vejo, a chorar,
O que essa música me entrega –
A mãe que eu tinha, o antigo
lar,
A criança que fui,
O horror do tempo que flui,
O horror da vida, porque é só
matar.
Vejo, e adormeço
E no torpor em que me esqueço
Que existo ainda nesta mundo que
há…
Estou vendo minha mãe tocar.
E essas mãos brancas e pequenas,
Cuja carícia nunca mais me
afagará.
Tocam ao piano, cuidadosamente e
serenas,
Un soir à Lima.
Ah, vejo tudo claro!
Estou outra vez ali.
Afasto do luar externo e raro
Os olhos com que o vi.
Mas, quê? Divago, e a musica acabou…
Divago, como sempre divaguei
Sem ter na alma a certeza de
quem sou,
Nem verdadeira fé ou firme lei.
Divago, crio eternidades minhas
Num ópio de memória e de
abandono.
Entronizo fantásticas rainhas
Sem para elas ter um trono.
Sonho porque me banho
No rio irreal da música evocada.
Minha alma é uma criança
esfarrapada
Que dorme num recanto obscuro.
De meu só tenho,
Na realidade certa e acordada,
Os trapos da minha alma
abandonada
E a cabeça que sonha contra o
muro.
Mas, mãe, não haverá
Um Deus que me não torne tudo
vão,
Um outro mundo em que isto agora
está?
Divago ainda: tudo é ilusão.
Un soir à Lima…
A minha raiva de animal humano
A quem tiraram a mãe,
E não tem
Para o menino que lhe na alma
há,
Para lhe encher o coração,
mais que esta visão –
mais que esta visão –
As tuas mãos pequenas pelo piano
Quando, oh meu Deus, tocavas
Un soir à Lima.
Ai, mas é engano.
Aqui sou velho
Não há sala nem piano
Nem tu existes a tocar.
Há um aparelho mudo
De onde o som vem de longe, e
dói.
Como é que eu te darei um beijo
agora?
O raciocinador exacto
Com alma está em mil pedaços,
Em mil pedaços que nem há…
Deixa-me dormir
E sonhar de estar vendo, a
ouvir,
Un soir à Lima.
E era nesta calma,
Nesta felicidade
Em que existia uma alma
(Meu Deus, que saudade!).
Que, sob a luz que dourava,
(Hoje onde é que isso está?)
Longe de onde o luar prateava,
Minha mão tocava
Minha mão tocava
Medalha atenta e humana ao
piano.
Un soir à Lima.
Desde então
Tenho atravessado
Muitas vidas,
As mais das vezes tenho errado.
Meu coração
Pesa de coisas esquecidas.
Desde quando,
Nesse brando
Conforto do meu lar extinto
Eu, à janela, ouvia, hirto e
sonhando,
Ermo e indistinto,
O que há
Em toda a música de intuição e
instinto,
Quanto tenho deixado morrer
Dentro do que quis ser,
Quanto tenho deixado
Só pensado.
Quanto, quanto,
Tem sido para mim somente sonho,
Somente o encanto
Tristemente risonho
De o ter sonhado,
Quem sabe se a saudade
Transmutada num devaneio meio
humano
De quanto nessa noite está,
Longínqua em que, mamã, ao piano
Tocavas sob a crua claridade,
Un soir à Lima.
Pesa-me o coração. Um torpor
denso
Ocupa-me a consciência
E um frio informe, desolado e
denso
Não me deixa pensar.
Num baloiçar-me, num embalar
Relembro tudo, relembro em vão.
Meu Deus, isso tudo onde está?
Un soir à Lima…
Quebra-te, coração!...
Sorrias, rindo, para mim
Esse sorriso que teve fim,
E continuavas tocando
Un soir à Lima.
E é uma emissora indiferente
Que por um aparelho inconsciente
Em música, só, música me dá
A angustia viva que me vem
De te ver, por me lembrar,
Minha mãe. minha mãe,
Tão tranquila, tocar
Un soir à Lima.
.
Quebra-te, coração…
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