quinta-feira, 13 de junho de 2013

ANIVERSÁRIO

Amigos: completam-se hoje 125 anos sobre a data de nascimento do Fernando Pessoa. Neste cantinho não se podia deixar passar esta data sem a festejarmos e rendermos uma especial homenagem ao Poeta Universal que trouxe para a nossa Pátria a admiração do mundo inteiro. Pátria: essa palavra que ele tantas vezes repetiu, em “voz bem alta”, lamentando aqueles que têm vergonha de a pronunciar. Então, como agora!
Peço licença para começar esta homenagem com um poema (se é que o chega a ser…) que eu fiz; eu que não sou poeta… Mesmo nada valendo pela sua forma, o seu conteúdo representa tudo o que eu gostaria de lhe dizer, mas com a beleza que o Poeta merece, para a qual, não tenho o necessário talento. Fica a intenção!


  FERNANDO PESSOA



O Poeta que encheu o mundo                                         
Com a música das suas palavras
 Que, com seu sentido profundo,
Incendeiam nossas almas!...


Vieste para ser quanto foste;
Ninguém poderá ser mais!
Estrela viva em céu de Agosto
Brilho e beleza sem iguais!...

O perfume dos teus poemas, – intensos, tantos –,
São para o mundo a eterna memória
Dos que foram Génios ou que foram Santos,
 Para sempre gravados na História!

FERNANDO RANITO

ANIVERSÁRIO

No tempo em que festejavam o dia dos meus anos
Eu era feliz e ninguém estava morto.
Na casa antiga, até eu fazer anos era uma tradição de há séculos,
E a alegria de todos, e a minha,  estava certa como uma religião qualquer.

No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,
Eu tinha a grande saúde de não perceber coisa nenhuma,
De ser inteligente para entre família,
E de não ter as esperanças que os outros tinham por mim.
Quando vim a ter esperança, já não sabia ter esperanças.
Quando vim a olhar para a vida, perdera o sentido da vida.

Sim, o que foi de suposto a mim mesmo,
O que fui de coração e parentesco,
O que fui de serões de meia-província,
O que fui de amarem-me e eu ser menino,
O que fui - ai meu Deus!, o que só hoje sei que fui...
A que distância!...
(Nem o eco...)
O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!

O que eu hoje sou é como a humidade no corredor do fim da casa,
Pondo grelado nas paredes...
O que eu sou hoje (e a casa dos que me amaram treme através das minhas lágrimas),
O que eu sou hoje é terem vendido a casa,
É terem morrido todos,
E estar eu sobrevivente a mim mesmo como um fósforo frio...

No tempo em que festejavam o dia dos meus anos...
Que meu amor, como uma pessoa, esse tempo!
Desejo físico da alma de se encontrar ali outra vez,
Por uma viajem metafísica e carnal,
Com uma dualidade de eu para mim...
Comer o passado como pão de fome, sem tempo de manteiga nos dentes!

Vejo tudo outra vez com uma nitidez que me cega para o que há aqui...
A mesa posta com mais lugares, com melhores desenhos na louça, com mais copos,
O aparador com muitas coisas, - doces, frutas, o resto na sombra debaixo do alçado -,
As tias velhas, os primos diferentes, e tudo era por minha causa,
No tempo em que festejavam o dia dos meus anos...

Pára, meu coração!
Não penses! Deixa o pensar na cabeça!
Ó meu Deus, meu Deus, meu Deus!
Hoje já não faço anos.
Duro.
Somam-se-me dias.
Serei velho quando for.
Mais nada.
Raiva de não ter trazido o passado na algibeira!...

O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!...

ÁLVARO DE CAMPOS, 13 DE JUNHO DE 1930

Sim, sei bem
Que nunca serei alguém.
    Sei de sobra
Que nunca terei uma obra.
    Sei, enfim,
Que nunca saberei de mim.
    Sim, mas agora,
Enquanto dura esta hora,
    Este luar, estes ramos,
Esta paz em que estamos,
    Deixem-me crer
O que nunca poderei ser.

RICARDO REIS



TABACARIA

Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.

Janela do meu quarto,
Do meu quarto de um dos milhões do mundo que ninguém sabe quem é
(E se soubesse quem é, o que saberiam?)
Dais para o mistério de uma rua cruzada constantemente por gente,
Para uma rua inacessível a todos os pensamentos,
Real, impossivelmente real, certa, desconhecidamente certa,
Como o mistério das coisas por baixo das pedras e dos seres,
Com a morte a pôr humidade nas paredes e cabelos brancos nos homens,
Com o destino a conduzir a carroça de tudo pela estrada de nada.

Estou hoje vencido, como se soubesse a verdade.
Estou hoje lúcido, como se estivesse para morrer,
E não tivesse mais irmandade com as coisas
Senão uma despedida, tornando-se esta casa e este lado da rua
A fileira das carruagens de um combóio, e uma partida apitada
De dentro da minha cabeça,
E uma sacudidela dos meus nervos e um ranger de ossos na ida.

Estou hoje perplexo, como quem pensou, achou e esqueceu.
Estou hoje dividido entre a lealdade que devo
À Tabacaria do outro lado da rua, como coisa real por fóra,
E à sensação de que tudo é sonho, como coisa real por dentro.

Falhei em tudo.
Como não fiz propósito nenhum, talvez tudo fosse nada.
A aprendizagem que me deram
Desci dela pela janela das trazeiras da casa.
Fui até ao campo com grandes propósitos
Mas lá encontrei só ervas e árvores,
E quando havia gente era igual à outra.
Saio da janela, sento-me numa cadeira. Em que hei-de pensar?

Que sei eu do que serei, eu que não sei o que sou?
Ser o que penso? Mas penso ser tanta coisa!
E há tantos que pensam ser a mesma coisa que não pode haver tantos!
Génio? Neste momento
Cem mil cérebros se concebem em sonho génios como eu,
E a história não marcará, quem sabe?, nem um,
Nem haverá senão estrume de tantas conquistas futuras.
Não, não creio em mim.
Em todos os manicómios há doidos malucos com tantas certezas!
Eu que não tenho nenhuma certeza, sou mais certo ou menos certo?
Não, nem em mim...
Em quantas mansardas e não-mansardas do mundo
Não estão nesta hora génios-para-si-mesmos sonhando?
Quantas aspirações altas e nobres e lúcidas -
Sim, verdadeiramente altas e nobres e lúcidas -
E quem sabe se realizáveis,
Nunca verão a luz do sol real nem acharão ouvidos de gente?
O mundo é para quem nasce para o conquistar
E não para quem sonha que pode conquistá-lo, ainda que tenha razão.
Tenho sonhado mais que o que Napoleão fez.
Tenho apertado ao peito hipotético mais humanidades do que Cristo.
Tenho feito filosofias em segredo que nenhum Kant escreveu.
Mas sou, e talvez serei sempre, o da mansarda,
Ainda que não more nela;
Serei sempre o que não nasceu para isso;
Serei sempre o que só tinha qualidades;
Serei sempre o que esperou que lhe abrissem a porta ao pé de uma parede sem porta,
E cantou a cantiga do infinito numa capoeira,
E ouviu a voz de Deus num poço tapado.
Crer em mim? Não, nem em nada.
Derrame-me a Natureza sobre a cabeça ardente
O seu sol, a sua chuva, o vento que me acha o cabelo,
E o resto que venha se vier, ou tiver que vir, ou não venha.
Escravos cardíacos da estrêlas,
Conquistámos todo o mundo antes de nos levantar da cama;
Mas acordámos e ele é opaco,
Levantámo-nos e ele é alheio,
Saímos de casa e ele é a terra inteira,
Mais o sistema solar, a Via Láctea e o Indefinido.

(Como chocolates, pequena;
Come chocolates!
Olha que não há mais metafísica no mundo senão chocolates.
Olha que as religiões todas não ensinam mais que a confeitaria.
Come, pequena suja, come!
Pudesse eu comer chocolates com a mesma verdade com que comes!
Mas eu penso e, ao tirar o papel de prata, que é de folha de estanho,
Deito tudo para o chão, como tenho deitado a vida.)

Mas ao menos fica da amargura do que nunca serei
A caligrafia rápida deste versos,
Pórtico partido para o Impossível.
Mas ao menos consagro a mim mesmo um desprezo sem lágrimas,
Nobre ao menos no gesto largo com que atiro
A roupa suja que sou, sem rol , p'ro decurso das coisas,
E fico em casa sem camisa.

(Tu, que consolas, que não existe e por isso consolas,
Ou deusa grega, concebida como estátua que fosse viva,
Ou patrícia romana, impossivelmente nobre e nefasta,
Ou princesa de trovadores, gentilíssima e colorida,
Ou marquesa do século dezoito, decotada e longínqua,
Ou cocotte célebre do tempo dos nossos pais,
Ou não sei o quê moderno - não concebo bem o quê -
Tudo isso, seja o que for, que sejas, se pode inspirar que inspire!
Meu coração é um balde despejado.
Como os que invocam espíritos invocam espíritos invoco
A mim mesmo e não encontro nada.
Chego à janela e vejo a rua com uma nitidez absoluta.
Vejo as lojas, vejo os passeios, vejo os carros que passam,
Vejo os entes vestidos que se cruzam,
Vejo os cães que também existem,
E tudo isso me pesa como uma condenação ao degredo.
E tudo isso é estrangeiro, como tudo.)

Vivi, estudei, amei e até cri,
E hoje não há mendigo que eu não inveje só por não ser eu.
Olho a cada um os andrajos, e as chagas e a mentira,
E penso: talvez nunca vivesses nem estudasses nem amasses nem cresses
(Porque é possível fazer a realidade de tudo isso sem fazer nada disso);
Talvez tenhas existido apenas, como um lagarto a quem cortam o rabo
E que é rabo para aquém do lagarto remexidamente.

Fiz de mim o que não soube,
E o que podia fazer de mim não o fiz.
O dominó que vesti era errado.
Conheceram-me logo por quem era e não desmenti, e perdi-me.
Quando quis tirar a máscara,
Estava pegada à cara.
Quando a tirei e me vi ao espelho,
Já tinha envelhecido.
Estava bêbado, já não sabia vestir o dominó que não tinha tirado.
Deitei fora a máscara e dormi no vestiário
Como um cão tolerado pela gerência
Por ser inofensivo
E vou escrever esta história para provar que sou sublime.

Essência musical dos meus versos inúteis,
Quem me dera encontrar-te como coisa que eu fizesse,
E não ficasse sempre defronte da Tabacaria de defronte,
Calcando aos pés a consciência de estar existindo,
Como um tapete em que um bêbado tropeça
Ou um capacho que os ciganos roubaram e que não valia nada.

Mas o Dono da Tabacaria chegou à porta e ficou à porta.
Olho-o com o desconforto da cabeça mal voltada
E com o desconforto da alma mal-entendendo.
Ele morrerá e eu morrei.
Ele deixará a tabuleta, eu os versos.
A certa altura morrerá a tabuleta também e os versos também.
Depois de certa altura morrerá a rua onde esteve tabuleta,
E a língua em que foram escritos os versos.
Morrerá depois o planeta girante em que tudo isto se deu.
Em outros satélites de outros sistemas qualquer coisa como gente
Continuará fazendo coisas como versos e vivendo por baixo de coisas como tabuletas.
Sempre uma coisa defronte da outra,
Sempre uma coisa tão inútil como a outra,
Sempre o impossível tão estúpido como o real,
Sempre o mistério do fundo tão certo como o sono do mistério da superfície,
Sempre isso, ou sempre outra coisa ou nem uma coisa nem outra.

Mas um homem entrou na Tabacaria (para comprar tabaco?),
E a realidade plausível cai de repente em cima de mim.
Semiergo-me, convencido, humano
E vou tencionar escrever estes versos em que digo o contrário.

Acendo um cigarro ao pensar em escreve-los
E saboreio no cigarro o prazer da libertação de todo os pensamentos.
Sigo o fumo como a uma rota própria,
E gozo, num momento sensitivo e competente,
A libertação de todas as especulações
E a consciência de que a metafísica é uma consequência de estar mal disposto.

Depois deito-me para trás na cadeira
E continuo fumando.
Enquanto o Destino mo conceder continuarei fumando.

(Se eu casasse com a filha da minha lavadeira
Talvez fosse feliz.)
Visto isto, levanto-me da cadeira. Vou à janela.

O homem sai da Tabacaria (metendo o troco na algibeira das calças?).
Ah, conheço-o: é o Esteves sem metafísica.
(O Dono da Tabacaria chegou à porta)
Como por um instinto divino o Esteves voltou-se e viu-me.
Acenou-me adeus e gritei-lhe Adeus ó Esteves! e, o universo
Reconstrui-se-me sem ideal nem esperança, e o Dono da Tabacaria sorriu.


ÁLVARO DE CAMPOS, 15 DE JANEIRO DE 1928





UN SOIR Á LIMA

Vem a voz da radiophonia e dá
A notícia num arrastamento vão:
“A seguir
Un Soir à Lima”…

Cesso de sorrir…
Pára-me o coração…

E, de repente,
Essa querida e maldita melodia
Rompe do aparelho inconsciente…
Numa memoria súbita e presente
Minha alma se extravia…

O grande luar de África fazia
A encosta arborizada reluzente.

A sala em nossa casa era ampla, e estava
Posta onde, até ao mar, tudo se dava
À clara escuridão do luar ingente…
Mas só eu, à janela.
Minha mãe estava ao piano
E tocava…
Exactamente
“Un soir à Lima”.

Meu Deus, que longe, que perdido, que isso está!
Que é do seu alto porte?
Da sua voz continuamente acolhedora?
Do seu sorrido carinhoso e forte?
O que hoje há
Que mo recorda é isto que oiço agora
Un soir à Lima.
Prossegue na radiophonia
A nossa, a nossa melodia
O mesmo “Um soir à Lima”.

Seu cabelo grisalho era tão lindo
Sob a luz
E eu nunca pensei que ela morresse
E me deixasse entregue a quem sou!
Morreu, mas eu sou sempre o seu menino.
Ninguém é homem para a sua mãe!


E inda através de lágrimas não falha
À memória que tenho
O recorte perfeito de medalha
Daquele perfeitíssimo perfil.
Chora, ao lembrar-te, mãe, romana e já grisalha,
Meu coração sempre infantil.
Vejo teus dedos no teclado e há
Luar lá fora eternamente em mim.
Tocas em meu coração, sem fim,
Un soir à Lima.

O silêncio fatal das coisas findas
As tuas mãos pequenas e tão lindas
Com escrúpulo risonho e familiar
Com um sorriso em que não há
Nada senão o eternamente humano,
Tiravas da quietude do piano
Um soir à Lima.

Tinhas, perfil, um rosto de medalha
Eras de frente, e olhando, a minha mãe.
Como hoje o teu olhar me falha
E o teu perfil me lembra bem.

“Os pequenos dormiram logo?”
“Ora, dormiram logo”.
“Esta está quase a dormir”
E tu, sorrindo ao responder, continuavas
O que tocavas –
Atentamente tocavas –
Um soir à Lima.

Tudo que fui quando não era nada,
Tudo que amei e sei só eu a verdade
Que o amei por não ter hoje estrada,
Que tenha qualquer realidade.
Por não ter dele mais que saudade –
              Tudo isso vive em mim
Por luzes, música e a visão
Que não tem fim
Dessa hora eterna no meu coração,
Em que voltavas
A folha irreal da música a tocar
E eu te ouvia e via
Continuar
A eterna melodia
Que está
No fundo eterno desta nostalgia

 De quando, mãe, tocavas
Un soir à Lima.

E o aparelho indiferente
Traz da emissora inconsciente
Un soir à Lima.

Eu não sabia então que era feliz.
Hoje, que o já não sou, sei bem que o era.

“Esta também já está a dormir…”
“Não está”.
Ficávamos todos a sorrir
E eu, distraidamente vou
Continuando a ouvir,
Longe do Luar que há
E que lá fora existe duro e só,
O que me faz sonhar sem o sentir,
O que hoje faz que tenha de mim dó,
Esse canto sem voz, teclado e brando
Que minha mãe estava tocando -
Un soir à Lima.

Não ter aqui numa gaveta,
Não ter aqui numa algibeira, fechada, haurida, completa,
Essa cena inteira!
Não poder arrancar
Do espaço, do tempo, da vida
E isolar
Num lugar
Da alma em que ficasse possuída
Eternamente
Viva, quente,
Essa sala, essa hora,
Toda a família e a paz e a musica que há
Mas real como ali está
Ainda, agora,
Quando, mãe, mãe, tocavas
Un soir à Lima.

Mãe, mãe, fui teu menino
Tão bem dobrado
Na sua educação
E hoje sou o trapo que o Destino
Fez enrolado e atirado
Para um canto do chão.

Jazo, mesquinho,
Mas ao meu coração
Sobe, num torvelinho
A memoria de quanto ouvi do que há
No que há de carícia, de lar, de ninho,
Ao relembrar o ouvi, hoje, meu Deus, sozinho,
Un soir à Lima.

Onde é que a hora, e o lar e o amar está
Quando, mãe, mãe, tocavas
Un soir à Lima?

E num recanto de cadeira grande
Minha irmã,
Pequena e encolhidinha
Não sabe se dorme se não.

Eu tenho sido tanta coisa vil!
Tenho traído tanto do que sou!
Meu espírito sedento
De raciocinador subtil
Quantas vezes prolixamente errou!
Quantas vezes até o sentimento
Inanimadamente me enganou!


Já que não tenho lar,
Deixa-me estar
Nesta visão
Do lar de então,
Deixa-me ouvir, ouvir, ouvir –
Eu à janela
Do nunca mais deixar de sentir,
Nessa sala, a nossa sala, quente
Da África ampla onde o luar está
Lá fora vasto e indiferente
Nem mal nem bem
E onde, no meu coração
Mãe, mãe
Tocas visivelmente,
Tocas eternamente
Un soir à Lima.

Meu padrasto
(Que homem! que alma! que coração!)
Reclinava o seu corpo basto
De atleta sossegado e são
Na poltrona maior
E ouvia, fumando e cismando,
E o seu olhar azul não tinha cor.
E minha irmã, criança,
No recanto da sua poltrona
Enrolada, ouvia a dormir
E a sorrir
Que estava alguém tocando
Se calhar uma dança…

E eu, de pé, ante a janela
Via todo o luar de toda a África inundar
A paisagem e o meu sonhar.

Onde tudo isso está!
Un soir à Lima,
Quebra-te, coração!

Mas entorpeço.
Não sei se vejo se adormeço,
Se sou quem fui,
Não sei se lembro, nem se esqueço.
Há qualquer coisa que indistinta flui
Entre quem sou e o que eu era
E é como um rio, ou uma brisa, ou um sonhar,
Qualquer coisa que não espera,
Que se suspende de repente
E, do fundo aonde parecia ir acabar,
Surge, cada vez mais distintamente,
Num halo de suavidade
E nostalgia,
Onde o meu coração ainda está,
Um piano, uma figura, uma saudade…
Durmo encostada a essa melodia –
E oiço que minha mãe toca,
Oiço, já com o sal das lágrimas na boca,
Un soir à Lima.


O véu das lágrimas não cega.
Vejo, a chorar,
O que essa música me entrega –
A mãe que eu tinha, o antigo lar,
A criança que fui,
O horror do tempo que flui,
O horror da vida, porque é só matar.
Vejo, e adormeço
E no torpor em que me esqueço
Que existo ainda nesta mundo que há…
Estou vendo minha mãe tocar.
E essas mãos brancas e pequenas,
Cuja carícia nunca mais me afagará.
Tocam ao piano, cuidadosamente e serenas,
Un soir à Lima.

 Ah, vejo tudo claro!
Estou outra vez ali.
Afasto do luar externo e raro
Os olhos com que o vi.
             
              Mas, quê? Divago, e a musica acabou…
Divago, como sempre divaguei
Sem ter na alma a certeza de quem sou,
              Nem verdadeira fé ou firme lei.

Divago, crio eternidades minhas
Num ópio de memória e de abandono.
Entronizo fantásticas rainhas
Sem para elas ter um trono.

Sonho porque me banho
No rio irreal da música evocada.
Minha alma é uma criança esfarrapada
Que dorme num recanto obscuro.
De meu só tenho,
Na realidade certa e acordada,
Os trapos da minha alma abandonada
E a cabeça que sonha contra o muro.

Mas, mãe, não haverá
Um Deus que me não torne tudo vão,
Um outro mundo em que isto agora está?
Divago ainda: tudo é ilusão.
Un soir à Lima…

A minha raiva de animal humano
A quem tiraram a mãe,
E não tem
Para o menino que lhe na alma há,
Para lhe encher o coração,
mais que esta visão –
As tuas mãos pequenas pelo piano
Quando, oh meu Deus, tocavas
Un soir à Lima.

Ai, mas é engano.
Aqui sou velho
Não há sala nem piano
Nem tu existes a tocar.
Há um aparelho mudo
De onde o som vem de longe, e dói.
Como é que eu te darei um beijo agora?

O raciocinador exacto
Com alma está em mil pedaços,
Em mil pedaços que nem há…
Deixa-me dormir
E sonhar de estar vendo, a ouvir,
Un soir à Lima.

E era nesta calma,
Nesta felicidade
Em que existia uma alma
(Meu Deus, que saudade!).
Que, sob a luz que dourava,
(Hoje onde é que isso está?)
               Longe de onde o luar prateava,
              Minha mão tocava
Medalha atenta e humana ao piano.
Un soir à Lima.

Desde então
Tenho atravessado
Muitas vidas,
As mais das vezes tenho errado.
Meu coração
Pesa de coisas esquecidas.
Desde quando,
Nesse brando
Conforto do meu lar extinto
Eu, à janela, ouvia, hirto e sonhando,
Ermo e indistinto,
O que há
Em toda a música de intuição e instinto,
Quanto tenho deixado morrer
Dentro do que quis ser,
Quanto tenho deixado
Só pensado.
Quanto, quanto,
Tem sido para mim somente sonho,
Somente o encanto
Tristemente risonho
De o ter sonhado,
Quem sabe se a saudade
Transmutada num devaneio meio humano
De quanto nessa noite está,
Longínqua em que, mamã, ao piano
Tocavas sob a crua claridade,
Un soir à Lima.

Pesa-me o coração. Um torpor denso
Ocupa-me a consciência
E um frio informe, desolado e denso
Não me deixa pensar.

Num baloiçar-me, num embalar
Relembro tudo, relembro em vão.
Meu Deus, isso tudo onde está?
Un soir à Lima…
Quebra-te, coração!...



Sorrias, rindo, para mim
Esse sorriso que teve fim,
E continuavas tocando
Un soir à Lima.

E é uma emissora indiferente
Que por um aparelho inconsciente
Em música, só, música me dá
A angustia viva que me vem
De te ver, por me lembrar,
Minha mãe. minha mãe,
Tão tranquila, tocar
Un soir à Lima.
.

Quebra-te, coração…


FERNANDO PESSOA, 22 DE SETEMBRO DE 1935  

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