I
A criança que fui chora na estrada.
Deixei-a ali quando vim ser quem
sou;
Mas hoje, vendo que o que sou é
nada,
Quero ir buscar quem fui onde ficou.
Ah, como hei-de encontrá-lo? Quem
errou
A vinda tem a regressão errada.
Já não sei de onde vim nem onde
estou.
De o não saber, minha alma está
parada.
Se ao menos atingir neste lugar
Um alto monte, de onde possa enfim
O que esqueci, olhando-o, relembrar,
Na ausência, ao menos, saberei de
mim,
E, ao ver-me tal qual fui ao longe,
achar
Em mim um pouco de quando era assim.
II
Dia a dia mudamos para quem
Amanhã não veremos. Hora a hora
Nosso diverso e sucessivo alguém
Desce uma vasta escadaria agora.
E uma multidão que desce, sem
Que um saiba de outros. Vejo-os meus
e fora.
Ah, que horrorosa semelhança têm!
São um múltiplo mesmo que se ignora.
Olho-os. Nenhum sou eu, a todos
sendo.
E a multidão engrossa, alheia a
ver-me,
Sem que eu perceba de onde vai
crescendo.
Sinto-os a todos dentro em mim
mover-me,
E, inúmero, prolixo, vou descendo
Até passar por todos e perder-me.
III
Meu Deus! Meu Deus! Quem sou, que
desconheço
O que sinto que sou? Quem quero ser
Mora, distante, onde meu ser
esqueço,
Parte, remoto, para me não ter.
FERNANDO PESSOA, 22 DE SETEMBRO DE
1933
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