ABDICAÇÃO
I
Sombra fugaz, vulto da apetecida
Imagem de um ansiado e incerto bem,
Aereamente e aladamente vem
E um pouco abranda em mim o horror
da vida.
O esforço inútil, a penosa lida,
De que, salvo sofrer, nada provém,
O receio, a incerteza e o desde
Mitiga e sara, como a quem olvida.
Irreal embora, o teu momento é teu.
Nesse minuto, em que deveras prendes
Toda a alma, e és o seu sol e o seu
céu,
És toda a vida, e o resto é a sombra
e o trilho.
'Splende em verdade, ó sombra, enquanto
'splendes,
E eu morra para mim nesse teu
brilho.
II
A minha vida é um barco abandonado,
Infiel, no ermo porto, ao seu
destino.
Porque não ergue ferro e segue o
atino
De navegar, casado com o seu fado?
Ah, falta quem o lance ao mar, e
alado
Torne o seu vulto em velas;
peregrino
Frescor de afastamento, no divino
Amplexo da manhã, puro e salgado.
Morto corpo da acção, sem a vontade
Que o viva, vulto estéril de viver,
Boiando á tona inútil da saudade -
Os limos esverdeiam tua quilha,
O vento embala-te sem te mover,
E é para além do mar a ansiada Ilha.
III
Entre o abater rasgado dos pendões
E o cessar dos clarins na tarde
alheia,
A derrota ficou como uma cheia
Do mal cobriu os vagos batalhões.
Foi em vão que o Rei louco os seus
varões
Trouxe ao prolixo prélio, sem a
ideia.
Água que mão infiel verteu na areia.
Tudo morreu, sem rasto e sem razões.
A noite cobre o campo, que o Destino
Com a morte tornou abandonado.
Cessou, com cessar tudo, o desatino.
Só no luar que nasce os pendões rotos
'Strelam no absurdo campo desolado
Uma derrota heráldica de ignotos.
IV
São vãos, vãos o meu sonho e a minha
vida,
As imagens que busco, dor-recreio,
Para o meu ócio de cansaço cheio,
Para o meu ser deposto e fé perdida.
Nada vale. Renova a despedida
Todos os dias renovada, ó anseio
Que nem em ti sabes querer, baqueio
Surdo e ignóbil da púrpura e da
lida.
Réu confesso da tua impenitente
Indecisão, de inútil reprovada,
E, reprovada, vil por persistente,
Aceita o nada a que te o Fado
obriga,
E abdica, qual rainha destronada
Que for mendiga, e torna a ser
mendiga.
V
Toma-me, ó noite eterna, nos teus
braços
E chama-me teu filho.
Eu sou um rei
Que voluntariamente abandonei
O meu trono de sonhos e cansaços.
Minha espada, pesada a braços
lassos,
Em mão viris e calmas entreguei;
E meu ceptro e coroa - eu os deixei
Na antecâmara, feitos em pedaços
Minha cota de malha, tão inútil,
Minhas esporas de um tinir tão
fútil,
Deixei-as pela fria escadaria.
Despi a realeza, corpo e alma,
E regressei à noite antiga e calma
Como a paisagem ao morrer do dia.
VI
Forma inútil, que surges vagarosa
Do meu caminho, e aumentas minha
dor:
Tua postiça luz não tem calor,
Teu vulto esfolha-se, como uma rosa.
Porque tão falsamente piedosa
Na hora mais negra do meu amargor
Vens com teu brilho errar o meu
torpor
Que mais valia que esta 'sp'rança
ansiosa?
Por que a mão irreal para mim
'stendes
Se não me guiarás, nem me conheces?
Se nada podes dar, para que
'splendes?
Ah, deixa ao menos imitar o sono
Meu ser, morto na 'strada onde tu
desces,
Sozinho ao menos com seu abandono!
VII
Com a expressão a dor menos se apaga
E a dor maior se anima, como o vento
Apaga o lume frágil de um momento,
E a grande chama sacudindo afaga.
Toda a esperança morta, a ânsia
vaga,
A mágoa certa do meu pensamento,
Com exprimir-se, mais conhece o
aumento,
Porque é consciente e com mais
Mas não dizer a dor é ter só dor
Dizê-la é aceitá-la, e aceitá-la
É por presente tê-la, a ter maior.
FERNANDO PESSOA, 18 DE SETEMBRO DE
1917
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