PASSOS DA CRUZ
I
Esqueço-me das horas transviadas...
O outono mora mágoas nos outeiros
E põe um roxo vago nos ribeiros...
Hóstia de assombro a alma, e toda
estradas...
Aconteceu-me esta paisagem, fadas
De sepulcros a orgíaco... Trigueiros
Os céus da tua face, e os
derradeiros
Tons do poente segredam nas
arcadas...
No claustro sequestrando a lucidez
Um espasmo apagado em ódio à ânsia
Põe dias de ilhas vistas do convés
No meu cansaço perdido entre os
gelos,
E a cor do outono é um funeral de
apelos
Pela estrada da minha dissonância...
II
Há um poeta em mim que Deus me
disse...
A primavera esquece nos barrancos
As grinaldas que trouxe dos arrancos
Da sua efémera e espectral ledice...
Pelo prado orvalhado a meninice
Faz soar a alegria os seus
tamancos...
Pobre de anseios teu ficar nos
bancos
Olhando a hora como quem sorrisse...
Florir do dia a capitéis de Luz...
Violinos do silêncio enternecidos...
Tédio onde o só ter tédio nos
seduz...
Minha alma beija o quadro que pintou
Sento-me ao pé dos séculos perdidos
E cismo o seu perfil de inércia e
voo
III
Adagas cujas jóias velhas galas.
Opalesci amar-me entre mãos raras,
E, fluido a febres entre um lembrar
de aras,
O convés sem ninguém cheio de
malas...
O íntimo silêncio das opalas
Conduz orientes até jóias caras,
E o meu anseio vai nas rotas claras
De um grande sonho cheio de ócio e
salas...
Passa o cortejo imperial, e ao longe
O povo só pelo cessar das lanças
Sabe que passa o seu tirano, e
estruge
Sua ovação, e erguem as crianças...
Mas no teclado as tuas mãos pararam
E indefinidamente repousaram...
IV
Ó tocadora de harpa, se eu beijasse
Teu gesto, sem beijar as tuas mãos!,
E, beijando-o, descesse plos desvãos
Do sonho, até que enfim eu o
encontrasse
Tornado Puro Gesto, gesto-face
Da medalha sinistra - reis cristãos
Ajoelhando inimigos e irmãos
Quando processional o andor
passasse!...
Teu gesto que arrepanha e se
extasia...
O teu gesto completo, lua fria
Subindo, e em baixo, negros os
juncais...
Caverna em estalactites o teu
gesto...
Não poder eu prendê-lo, fazer mais,
Que vê-lo e que perdê-lo!... E o
sonho é o resto...
V
Ténue, roçando sedas pelas horas,
Teu vulto ciciante passa e esquece,
E dia a dia adias para prece
O rito cujo ritmo só decoras...
Um mar longínquo e próximo humedece
Teus lábios onde, mais que em ti,
descoras...
E, alada, leve, sobre a dor que
choras,
Sem qu'rer saber de ti a tarde
desce...
Erra no ante-luar a voz dos
tanques...
Na quinta imensa gorgolejam águas,
Na treva vaga ao meu ter dor estanques.
Meu império é das horas desiguais,
E dei meu gesto lasso às algas
mágoas
Que há para além de sermos outonais.
..
VI
Venho de longe e trago no perfil,
Em forma nevoenta e afastada,
O perfil de outro ser que desagrada
Ao meu actual recorte humano e vil.
Outrora fui talvez, não Boabdil,
Mas o seu mero último olhar, da
estrada
Dado ao deixado vulto de Granada,
Recorte frio sob o unido anil.
Hoje sou a saudade imperial
Do que já na distância de mim vi..
Eu próprio sou aquilo que perdi.
E nesta estrada para Desigual
Florem em esguia glória marginal
Os girassóis do império que morri.
VII
Fosse eu apenas, não sei onde ou
como
Uma cousa existente sem viver,
Noite de Vida sem amanhecer
Entre as sirtes do meu dourado
assomo...
Fada maliciosa ou incerto gnomo
Fadado houvesse de não pertencer
Meu intuito gloríola com ter
A árvore do meu uso o único pomo...
Fosse eu uma metáfora somente
Escrita nalgum livro insubsistente
Dum poeta antigo, de alma em outras
gamas,
Mas doente, e, num crepúsculo de
espadas,
Morrendo entre bandeiras
desfraldadas
Na última tarde de um império em
chamas...
VIII
Ignorado ficasse o meu destino
Entre pálios (e a ponte sempre à
vista),
E anel concluso a chispas de
ametista
A frase falha do meu póstumo hino...
Florescesse em meu glabro desatino
O himeneu das escadas da conquista
Cuja preguiça, arrecadada, dista
Almas do meu impulso cristalino...
Meus ócios ricos assim fossem, vilas
Pelo campo romano, e a toga traça
No meu soslaio anónimas (desgraça
A vida) curvas sob mãos intranquilas...
E tudo sem Cleópatra teria
Findado perto de onde raia o dia...
IX
Meu coração é um pórtico partido
Dando excessivamente sobre o mar.
Vejo em minha alma as velas vãs
passar
E cada vela passa num sentido.
Um soslaio de sombras e ruído
Na transparente solidão do ar
Evoca estrelas sobre a noite estar
Em afastados céus o pórtico ido...
E em palmares de Antilhas
entrevistas
Através de, com mãos eis apartados
Os sonhos, cortinados de ametistas,
Imperfeito o sabor de compensando
O grande espaço entre os troféus
alçados
Ao centro do triunfo em ruído e
bando...
X
Aconteceu-me do alto do infinito
Esta vida. Através de nevoeiros,
Do meu próprio ermo ser fumos
primeiros,
Vim ganhando, e através estranhos
ritos
De sombra e luz ocasional, e gritos
Vagos ao longe, e assomos
passageiros
De saudade incógnita, luzeiros
De divino, este ser fosco e
proscrito...
Caíu chuva em passados que fui eu.
Houve planícies de céu baixo e neve
Nalguma cousa de alma do que é meu.
Narrei-me à sombra e não me achei
sentido.
Hoje sei-me o deserto onde Deus teve
Outrora a sua capital de olvido...
XI
Não sou eu quem descrevo. Eu sou a
tela
E oculta mão cobra alguém em mim.
Pus a alma no nexo de perdê-la
E o meu princípio floresceu em Fim.
Que importa o tédio que dentro em
mim gela,
E o leve outono, e as galas, e o
marfim,
E a congruência da alma que se vela
Com os sonhados pálios de cetim?
Disperso. E a hora como um leque
fecha-se...
Minha alma é um arco tendo ao fundo
o mar.
O tédio? A mágoa? A vida? O sonho?
Deixa-se...
E, abrindo as asas sobre Renovar,
A erma sombra do voo começado
Pestaneja no campo abandonado.
XII
Ela ia, tranquila pastorinha,
Pela estrada da minha imperfeição.
Seguia-a, como um gesto de perdão,
O seu rebanho, a saudade minha.
'Em longes terras hás-de ser rainha'
Um dia lhe disseram, mas em vão.
Seu vulto perde-se na escuridão.
Só sua sombra ante meus pés
caminha...
Deus te dê lírios em vez desta hora,
E em terras longe do que eu hoje
sinto
Serás, rainha não, mas só pastora -
Só sempre a mesma pastorinha a ir,
E eu serei teu regresso, esse
indistinto
Abismo entre o meu sonho e o meu
porvir.
XIII
Emissário de um rei desconhecido,
Eu cumpro informes instruções de
além,
E as bruscas frases que aos meus
lábios vêm
Soam-me a um outro e anómalo sentido...
Inconscientemente me divido
Entre mim e a missão que o meu ser
tem,
E a glória do meu Rei dá-me o desdém
Por este humano povo entre quem
lido...
Não sei se existe o Rei que me
mandou.
Minha missão será eu a esquecer,
Meu orgulho o deserto em que em mim
estou...
Mas há! eu sinto-me altas tradições
De antes de tempo e espaço e vida
ser...
Já viram Deus as minhas sensações...
XIV
Como uma voz de fonte que cessasse
(E uns para os outros nossos vãos
olhares
Se admiraram), p'ra além dos meus
palmares
De sonho, a voz que do meu tédio
nasce
Parou... Apareceu já sem disfarce
De música longínqua, asas nos ares,
O mistério silente como os mares,
Quando morreu o vento e a calma
pasce...
A paisagem longínqua só existe
Para haver nela um silêncio em
descida
P'ra o mistério, silêncio a que a
hora assiste...
E, perto ou longe, grande lago mudo,
O mundo, o informe mundo onde há a
vida...
E Deus, a Grande Ogiva ao fim de
tudo...
FERNANDO PESSOA, POEMA SEM DATA
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