O BARCO ABANDONADO
O esforço é doloroso...
Deixemo-nos ir
Pelo mundo ocioso
Como que a sorrir...
Numa incerta mágoa,
Num sem querer mudo,
Sejamos como a água
Que reflecte tudo...
De que serve a vida?
Para quê a dor?
O bom soi convida
A um feliz torpor...
Vamos indo, indo,
Sem se definir
Ao nosso (...) infindo
P'ra onde queremos ir...
Lá iremos ter...
Lá - parte nenhuma
Vida que viver...
Sussurro de espuma...
Mágoa incerta e vasta,
Céu azul e claro...
Como a dor contrasta
Com o ócio em que paro...
Que quero eu dizer
Com a minha vida?
Saiba eu não o saber...
Leve a alma dormida.
Estrela em sossego,
Feneça no afago
Duma brisa ao cego
Silêncio dum lago.
P'ra além do momento
Há todo o céu fundo,
E o movimento
Do abstracto mundo.
Que importa? Nas águas
Quando se reflecte
O verdor das fráguas
Nada se promete...
Tudo é como é
Sem que seja nada...
Quem me dera a fé
E o sol sobre a estrada!
A alma não tem cor...
O sol, que desponte
Mas nunca o amor...
Grácil, fugidia
Demora da vida
Na tristeza fria
Que a faz comovida...
O sonho em botão,
A dor em acerto
Com a conclusão
Do mistério incerto.
Palavras perdidas...
A casa da alma
Quem me dera a calma
E as horas idas!
FERNANDO PESSOA, 12 DE FEVEREIRO DE 1915
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