terça-feira, 17 de fevereiro de 2015

FAZ ESTE ANO 102 ANOS




ALÉM-DEUS

I

ABISMO

Olho o Tejo, e de tal arte
Que me esquece olhar olhando,
E súbito isto me bate
De encontro ao devaneando -
O que é ser rio, e correr?
O que é está-lo eu a ver?

Sinto de repente pouco,
Vácuo, o momento, o lugar.
Tudo de repente é oco -
Mesmo o meu estar a pensar.
Tudo - eu e o mundo em redor -
Fica mais que exterior.

Perde tudo o ser, ficar,
E do pensar se me some.
Fico sem poder ligar
Ser, ideia, alma de nome
A mim, à terra e aos céus...

E súbito encontro Deus.

II

PASSOU

Passou, fora de Quando,
De Porquê, e de Passando...,

Turbilhão de Ignorado,
Sem ter turbilhonado....

Vasto por fora do Vasto
Sem ser que a si se assombra...

O universo é o seu rasto...
Deus é a sua sombra...

III

A VOZ DE DEUS

Brilha uma voz na noute...
De dentro de Fora ouvi-a....
Ó Universo, eu sou-te...
Oh, o horror da alegria
Deste pavor, do archote
Se apagar, que me guia!

Cinzas de ideia e de nome
Em mim, é a voz: Ó mundo
Sermente em ti eu sou-me...
Mero eco de mim, me inundo
De ondas de negro lume
Em que p´ra Deus me afundo.

IV

A QUEDA

Da minha ideia do mundo
Caí...
Vácuo além de profundo,
Sem ter Eu nem Ali...

Vácuo sem si próprio, caos
De ser pensado como ser...
Escada absoluta sem degraus...
Visão que se não pode ver...

Além-Deus! Além-Deus! Negra calma...
Clarão de Desconhecido...
Tudo tem outro sentido, ó alma,
Mesmo o ter-um-sentido...

V

BRAÇO SEM CORPO
BRANDINDO UM GLÁDIO

Entre a árvore e o vê-la
Onde está o sonho?
Que arco da ponte mais vela
Deus?... E eu fico tristonho
Por não saber se a curva do poente
É a curva do horizonte...

Entre o que vive e a vida
P'ra que lado corre o rio?
Árvore de folhas vestida -
Entre isso e Árvore há fio?
Pombas voando - o pombal
Está-lhes sempre à direita, ou é real?

Deus é um grande Intervalo,
Mas entre quê e quê?...
Entre o que digo e o que calo
Existo? Quem é que me vê?
Erro-me... E o pombal elevado
Está em torno da pomba, ou de lado?


FERNANDO PESSOA, 1913

Sem comentários: