segunda-feira, 30 de setembro de 2013

FERNANDO PESSOA E DEUS



Se a obra de Fernando Pessoa tem sido cada vez mais estudada e aprofundada, a sua vida íntima não o tem sido menos, entrando-se, no meu entender, no campo da descarada profanação! Desde o “Génio e a Loucura” até à “Misoginia e a homossexualidade”, tudo tem sido escrito e, na maioria dos casos, inventado.

Desde que o seu primeiro biógrafo (?), o João Gaspar Simões, “descobriu” que o Poeta era um “bêbado”, q eu chegava a passar fome, que tinha morrido com uma cirrose, tem sido um nunca acabar de invenções que, mesmo quando documentalmente rebatidas, têm, lamentavelmente, permanecido.

Há, no entanto, um aspecto que julgo que nunca foi abordado ou, quando o foi, criou uma perspectiva inversa da realidade: o relacionamento do Fernando Pessoa com Deus. O mais recente “quase biógrafo”, o brasileiro Cavalcantti , classificou-o de “Ateu”…

Creio que muitos confundem a obra heterónima com o pensamento do cidadão Fernando António Nogueira Pessoa o que, como é evidente, é um erro tremendo!
O que ele escreveu como Campos, Caeiro, Reis ou Soares, faz parte do que o Poeta designou como “Um drama em gente”, um drama em que o autor escreve as falas para os seus personagens. Ficções, ainda que das mais sublimes ficções que algum dia se criaram. O próprio autor o deixou escrito, na célebre carta de Janeiro de 1935 para o jovem crítico e director da revista “Presença” , Adolfo Casais Monteiro: “outrava-se” para escrever a obra dos seus principais, se não únicos, heterónimos. Cita, como exemplo, o Poema VIII do “Guardador de Rebanhos”, declarando que ele, Fernando Pessoa, nunca seria capaz de escrever tão desrespeitoso poema.

E no entanto, ele foi um Homem profundamente religioso! E um Homem religioso não tem de ser adepto ou praticante de uma qualquer Igreja organizada. O perguntar-se permanentemente sobre os “porquês”, os “para quês” e os “comos” da vida que se vive, é isso que faz um Homem ser religioso.

Toda a obra ortónima nos mostra essa angústia existencial, esse desejo de querer ir mais longe na sua relação com a vida. E só a sua leitura atenta bastaria para demonstrar o seu sentido religioso. Mas há muitas outras provas, das quais destaco um trecho de uma extensa carta para o seu amigo açoriano, Armando Cortes Rodrigues, com data de 19 de Janeiro de 1915:

“… E daí a minha “crise” toda. Não é crise para eu me lamentar. É a da se encontrar só quem se adiantou demais aos companheiros de viagem – desta viagem que os outros fazem para se distrair e que acho tão grave, tão cheia de termos de pensar no seu fim, de reflectir o que diremos ao Desconhecido para cuja casa a nossa inconsciência guia os nossos passos…. Viagem essa, meu querido Amigo, que é entre almas e estrelas, pela Floresta dos Pavores… e Deus, fim da estrada infinita, à espera no silêncio da Sua grandeza… “

Este documento, estranhamente esquecido pelos que tem escrito sobre o Poeta, é suficientemente claro e definitivo, para que possa ser esquecido.

Mas para demonstrar, através da Obra, o que pretendo, referirei, de seguida, alguns passos dos poemas a que eu chamarei “de Deus”. E são mais de 15.

Até o Eng. Álvaro de Campos:

           Ali não havia electricidade.
            Por isso foi à luz de uma vela mortiça
            Que li, inserto na cama,
            O que estava à mão para ler –
            As Bíblia, em português, porque (coisa curiosa) eram protestantes.
            E reli a Primeira Epístola aos Coríntios.
            Em torno de mim o sossego excessivo das noites de província
            Fazia um grande barulho ao contrário,
            Dava-me uma tendência de choro para a desolação.
             A Primeira Epístola aos Coríntios…
            Reli-a à luz de uma vela subitamente antiquíssima,
            E um grande mar de emoção chorava dentro de mim…

            Sou nada…
            Sou uma ficção…
            Que ando eu a querer de mim ou de tudo neste mundo?
            “Se eu não tivesse caridade”…

            E a soberana voz manda, do alto dos séculos,
            A grande mensagem com que a alma fica livre…
            “Se eu não tivesse caridade”..
            Meus Deus e eu não tenho caridade

Alguns exemplos do ortónimo:
1)      

  ASCENSÃO

            Quanto mais desço em mim mais subo em Deus…
            Sentei-me no lar da vida e achei-o frio,
            Mas pus tão alta fé nos sonhos meus
            Que ardente rio
            De Puro Compreender a alto Amor,
            Da chama espiritual e interior                                                
            Dou nova luz ao meu alheio olhar
            E às minhas faces cor…
            E esta fé, esta lívida alegria
            Com que, alma de joelhos, creio e adoro,
            É a minha própria sombra que me guia
            Para um fim que eu ignoro…
            Porque Deus faz de mim o seu altar
            Quando Ele me nasceu tal como sou,
            Se p´ra minha lama volvo um quasi-olhar
            Não me vejo onde estou.
            Eu tenho Deus em mim…Em Deus existo
            Quando crê, cega, acha-o minha fé calma…
            Maria-Virgem concebeu um Cristo
            Dentro em minha alma…
            Alma fria de Altura; que aos seus céus
            Dentro em si próprio acha… Para si morta
            Em Deus... Mas o que é Deus? E existe Deus?
            Isso que importa?


2)

            VISÃO

           Minha alma fica em si. O exterior
           É o que ela de comum com outros tem;
           O ponto em que se tocam e convém
           Às almas e aos sonhos.

          ::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::

           Quando não vejo e vejo Deus…
           Vejo a sombra de Deus…Além de mim
           Estou então…O individual é a minha
           Imagem
           Mas tudo em sua essência é ideia…A cor
           É a ideia,
           De modo que em tudo vejo Deus
           Mundo translúcido de Deus.


3)
         
            ALÉM DEUS

                     I

           Abismo

           Olho o Tejo de tal arte
           Que me esqueceu estar olhando

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           Perde tudo o ser, ficar,
           E do pensar se me some.
           Fico sem poder ligar
           Ser, ideia, alma de nome
           A mim, à terra e aos céus…

           E súbito encontro Deus.



                        III

         
           A Voz de Deus
           

           Brilha uma voz na noute…
           Dentro de Fora ouvi-a…
           “Ó Universo, eu sou-te”…

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          Cinzas de ideia e de nome
           E em mim, e a voz:”Ó mundo
           Sermente  em ti eu sou-me”
           Mero eco de mim, me inundo
           De ondas de negro lume
           Em que p’ra Deus me afundo.        


4)

           Cabeça augusta, que uma luz contorna,
           Que há entre mim e o mundo que me faz
           (Por que em espinhos a auréola se torna?)
           Ansiar a minha morte a tua paz?

           A tua história, - Pilatos ou Caifás
 Que tem? São sonhos que o narrar transtorna.
           Não é esse o Calvário a que te traz
Tua sina onde todo o fel se entorna.

Não. É em mim que se o Calvário ergueu.
É meu coração abandonado   
Que Ele, cabeça augusta, alto sofreu.

Quem na cruz onde está ermo e pregado
O pregou? Foi Romano ou foi Judeu?
Bate-me o coração. Meu Deus, fui eu!


Fechando com chave de ouro, eis o que escreveu o Bernardo Soares, no Livro do Desassossego:

                                    PRECE

               

Senhor, que és o céu e a terra, e que és a vida e a morte! O Sol és tu a Lua és tu e o vento és tu! Tu és os nossos corpos e as nossas almas e o nosso amor és tu também. Onde nada mais está tu habitas e onde tudo está, - (o teu templo) -, eis o teu corpo.


Dá-me alma para te servir e alma para te amar. Dá-me vista para te ver sempre no céu e na terra, ouvidos para te ouvir no vento e no mar, e mãos para trabalhar em teu nome.

Torna-me puro como a água e alto como o Céu. Que não haja lama nas estradas dos meus pensamentos nem folhas mortas nas lagoas dos meus propósitos. Faze com que eu saiba amar os outros como irmãos e servir-te como a um pai.

Minha vida seja digna da tua presença, Meu corpo seja digno da terra, tua cama. Minha alma possa aparecer diante de ti como um filho que volta ao lar.

Torna-me grande como o Sol, para que eu te possa adorar em mim; torna-me puro como a Lua, para que eu te possa rezar em mim; e torna-me claro como o dia para que eu te possa ver sempre em mim e rezar-te e adorar-te.



         

Os poemas citados, mostram, com muita clareza, o modo como o Fernando Pessoa encarava a questão de Deus. Mesmo no primeiro dos poemas referido, o Álvaro de Campos demonstra que o Poeta conhecia, pormenorizadamente, a Bíblia. E só quem acredite na Bíblia a lê.


FERNANDO RANITO, 30 DE SETEMBRO DE 2013

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