quarta-feira, 30 de novembro de 2011

POEMA SEM DATA





Foi numa das minhas viagens...
Era mar-alto e luar...
Cessara o ruído da noite a bordo.
Um a um, grupo a grupo, recolheram-se os passageiros,
A banda era só uma estante que ficara a um canto não sei porquê...
Só na sala de fumo em silêncio jogava xadrez...
A vida soava pela porta aberta para a casa das máquinas...
Só... E um era uma alma nua diante do Universo...
(Ó minha vila natal em Portugal tão longe!
Por que não morri eu criança quando só te conhecia a ti?)


Ah, quando nos fazemos ao mar,
Quando largamos da terra, quando a vemos perdendo de vista,
Quando tudo se vai enchendo de vento puramente marítimo,
Quando o costa se torna uma linha sombria,
Nessa linha cada vez mais vaga ao anoitecer (pairam luzes) -
Ah, então que alegria de liberdade para quem se sente.
Cessa de haver razão para existir socialmente.
Não há razões para amar, odiar, dever,
Não há leis, não há mágoas que tenham sabor humano...
Há só a Partida Abstracta, o movimento das águas,
O movimento do afastamento, o som
Das ondas arrulhando à proa,
E uma grande paz intranquila entrando suave, no espírito.


Ah, ter toda a minha vida
Fixa instavelmente num momento destes,
Ter todo o sentido da minha duração sobre a terra
Tornado um afastamento dessa costa onde deixei tudo -
Amores, irritações, tristezas, cumplicidades, deveres,
A angústia inquieta dos remorsos,
A fadiga da inutilidade de tudo,
A saciedade até das coisas imaginadas,
A náusea, as luzes,
As pálpebras pesadas sobre a minha vida perdida...


Eia p'ra longe, p'ra longe! P'ra longe, ó barco sem causa,
Para a irresponsabilidade pré-histórica das águas eternas,
P'ra longe, p'ra sempre para longe, ó morte.
Quando souber onde para longe e por que para longe, ó vida...


ÁLVARO DE CAMPOS





Sem comentários: